Por: Patricia Fachin | 20 Junho 2022 | Foto: DAQUI
Como a “esquerda tem mais dificuldades para dialogar com evangélicos, por achar que igrejas servem apenas para manipular pessoas, e por ter percepções sobre valores morais muito diferentes, evangélicos tendem a se aproximar de políticos do espectro oposto”, afirma o antropólogo.
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Juliano Spyer é mestre em Antropologia Digital e doutor em Antropologia pela University College London. É pesquisador do Cecons/UFRJ e criador do Observatório Evangélico.
Confira a entrevista.
IHU – Geralmente, as pesquisas sobre evangélicos destacam alguns perfis: eles são, em sua maioria, mulheres, negros e pobres. A partir das suas pesquisas, quem são e qual é o perfil dos evangélicos brasileiros?
Juliano Spyer – Há um problema em usar o termo “evangélicos”.
Talvez porque o Brasil seja uma nação – ainda – católica, nós estejamos acostumados a usar o catolicismo como referência. Mas a Igreja Católica é uma igreja, uma organização vertical com poder central e hierarquias de comando.
Essa referência não serve para o campo evangélico, cuja configuração é por essência fragmentada. É complicado falar sobre “evangélicos” como um grupo unificado porque existem milhares de igrejas e elas têm diferenças maiores ou menores umas em relação às outras.
Existe, por exemplo, a Congregação Cristã do Brasil,
- que tem em torno de três milhões de fiéis,
- que é uma organização discreta,
- que não tem participação na política
- e que trata o dízimo como uma questão de consciência individual;
e existe a Igreja Universal, uma igreja com mais ou menos o mesmo número de fiéis,
- que é debatida nacionalmente,
- é uma liderança na chamada bancada evangélica,
- tem uma rede de comunicação que inclui uma TV,
- tem um partido político, o Republicanos,
- e tem um posicionamento agressivo em relação à cobrança do dízimo.
Os dados sobre religião do Censo de 2010 indicam que, à época, aproximadamente 15 milhões de brasileiros pertenciam a igrejas de denominações pequenas.
Estas são organizações que existem em bairros, com apenas uma ou poucas igrejas.
- Mas geralmente, quando pensamos em evangélicos,
- pensamos nos representantes, geralmente a liderança, de algumas igrejas muito grandes e conhecidas,
- ou associamos todos os fiéis a atos como os ataques a terreiros de candomblé.
Isso é um problema porque estimula uma guerra cultural que, hoje, por exemplo, é usada politicamente por algumas igrejas, principalmente para promover o apoio ao presidente Bolsonaro.
Os dados sobre religião do Censo de 2010 indicam que, à época, aproximadamente 15 milhões de brasileiros pertenciam a igrejas de denominações pequenas. Estas são organizações que existem em bairros, com apenas uma ou poucas igrejas – Juliano Spyer – Tweet
IHU – Algumas pesquisas também ressaltam a relação dos negros com as religiões de matriz africana, que seriam suas religiões de origem. As suas pesquisas, por outro lado, chamam a atenção para a inserção dos negros entre os evangélicos. Pode nos contar um pouco sobre a participação e adesão dos negros ao pentecostalismo?
Juliano Spyer – Importante esclarecer: eu não pesquiso nem pesquisei cristianismo evangélico.
“O Povo de Deus” é um livro de divulgação: ele apresenta o resultado de trabalhos de sociólogos e antropólogos da religião. A pessoa que levantou esse tema sobre a relação entre raça e religião a partir de um dado demográfico foi o pastor batista Marcos Davi de Oliveira, que é historiador e autor do livro “A Religião Mais Negra do Brasil”.
Ele apontou para a informação, disponível nos Censos, que
- costumamos pensar nas religiões de matriz africana como sendo a religião dos afrodescendentes,
- mas o número de negros e pardos fiéis de igrejas evangélicas é muito maior.
O sociólogo Renan Willian dos Santos comenta, sobre esse tema, que a questão não tem a ver com raça, mas com classe social.
- O cristianismo evangélico mobiliza principalmente pessoas de baixa renda e a maior parte das pessoas de baixa renda são negros e pardos.
- Não haveria nada na religiosidade evangélica, segundo o Renan, que dialoga com a ancestralidade e com a religiosidade afro.
É notável, no entanto,
- como o cristianismo pentecostal se popularizou a partir de um pastor afrodescendente nos EUA, influenciado pela religiosidade das igrejas da população negra do sul dos EUA.
- A presença do canto, da incorporação espiritual, o falar em línguas, uma liturgia vibrante, estão presentes no pentecostalismo que chegou ao Brasil.
Esse vínculo dá margem para se entender que
- existem conexões dos povos afrodescendentes com esse ramo que é hoje um dos mais importantes do cristianismo,
- e revigorou o cristianismo, mesmo o catolicismo, oferecendo temas e práticas de maneiras novas para o cristianismo.
O cristianismo evangélico mobiliza principalmente pessoas de baixa renda e a maior parte das pessoas de baixa renda são negros e pardos – Juliano Spyer – Tweet
IHU – Os evangélicos também são apresentados por alguns pesquisadores como conservadores ou adeptos de ideais da extrema direita, mas, em contrapartida, suas pesquisas destacam a atuação de evangélicos pobres em pautas de “justiça social, empoderamento feminino e combate ao racismo”. Pode nos dar exemplos de como essas pautas têm sido defendidas na prática? De que modo esses grupos se mobilizam politicamente?
Juliano Spyer – Reitero aqui que não sou pesquisador desse campo. Me envolvi com o assunto porque fiz pesquisa em um bairro pobre em que havia
- uma igrejinha católica,
- nove terreiros de candomblé
- e mais de 80 igrejas evangélicas.
Não há como estudar o mundo popular sem estar de alguma forma dialogando com este aspecto, o das igrejas e dos evangélicos.
- Também não descreveria evangélicos – de qualquer denominação – como adeptos de ideais de extrema direita.
- Esse termo, para mim, faz referência a visões xenofóbicas e racistas que eu, pelo menos, não conheci durante os 18 meses em que fiz pesquisa de campo
(meu tema do doutorado foi o uso da internet pelo brasileiro pobre e as consequências disso; meu livro “Mídias sociais no Brasil emergente”, resultado dessa pesquisa, publicado pela UCL Press/Educ, pode ser baixado gratuitamente em PDF).
Percebo a maioria dos evangélicos abraçando, com maior ou menor intensidade, valores conservadores.
- São, em geral, contra o aborto ou pelo menos contra a ampliação do que já está contemplado em lei sobre esse assunto,
- e defendem a família “tradicional” ou heteronormativa.
- Também são contra a legalização da maconha e isso é especialmente forte entre mulheres evangélicas que vivem nas periferias e sentem que seus filhos estão mais expostos a se envolverem com o consumo e o comércio de drogas.
Sobre a ação social de grupos evangélicos, ela acontece principalmente na oferta de serviços de recuperação de dependentes de substâncias e nas prisões.
O documentário “If I Give My Soul”, do sociólogo americano Andrew Johnson, registra este aspecto.
- Até onde eu sei, quem vai para a prisão precisa da proteção de uma organização criminosa para sobreviver.
- E é só pela conversão evangélica que essas organizações permitem que uma pessoa se desligue sem ser morta.
Sobre o empoderamento feminino, é um tema difícil de entender para pessoas das camadas médias e altas da sociedade.
- Porque, no ambiente financeiramente mais protegido das camadas médias e altas,
- a recomendação para a mulher que sofre abuso do companheiro é romper o relacionamento,
- e as igrejas evangélicas estimulam que a mulher não se separe,
- o que é lido como a promoção da subordinação.
Mas a separação
- traz consequências mais drásticas para a mulher pobre, que fica mais vulnerável nos bairros em que vive,
- e se/quando sua conversão eventualmente leva o companheiro para a igreja, essa mulher amplia seu poder na família na medida em que o homem sai do bar e transfere seu círculo de relacionamentos para a igreja.
Tudo isso é mais complexo do que pode ser explicado em poucas linhas, mas é importante que a pessoa que pensa sobre esse tema possa enxergá-lo a partir da lógica e das realidades do mundo popular e não a partir das lógicas do mundo em que ela está inserida.
Evangélicos são contra a legalização da maconha e isso é especialmente forte entre mulheres evangélicas que vivem nas periferias e sentem que seus filhos estão mais expostos a se envolverem com o consumo e o comércio de drogas – Juliano Spyer – Tweet
IHU – Há uma diferença nas pautas e na atuação política dos evangélicos pobres e evangélicos de classe média e alta? Em que sentido?
Juliano Spyer – Evangélicos pobres são majoritariamente pentecostais e têm se posicionado mais claramente contra o PT. Evangélicos das camadas médias e altas hoje, me parece, estão divididos entre o apoio a Bolsonaro e o combate a Bolsonaro.
IHU – O cristianismo evangélico melhora a vida do pobre brasileiro? Sim, não, por que e em que sentido? Pode nos dar alguns exemplos de como pode observar isso em suas pesquisas de campo na periferia de Salvador?
Juliano Spyer – Melhora por vários motivos.
- Primeiro, porque os recursos da família deixam de ser gastos com o consumo de bebidas alcoólicas e com relacionamentos extraconjugais.
- O dinheiro passa a ser investido em bens, na reforma da casa, em planos de saúde, em educação superior para os jovens.
Quando o homem para de beber, a mulher e os filhos também ficam menos expostos à violência domésticadecorrente do consumo do álcool.
Evangélicos pobres são majoritariamente pentecostais e têm se posicionado mais claramente contra o PT. Evangélicos das camadas médias e altas hoje, me parece, estão divididos entre o apoio a Bolsonaro e o combate a Bolsonaro – Juliano Spyer – Tweet
O protestantismo evangélico também tornou, involuntariamente, igrejas em escolas.
- O brasileiro pobre em geral não é estimulado a ler e a escrever em seu cotidiano. Seu trabalho independe disso.
- Na igreja, o convertido se sente envergonhado ao ver muitos de seus vizinhos acompanhando os comandos dos pastores em relação a abrir a Bíblia na página tal e ler com ele o trecho tal.
Essas ocasiões de alfabetização involuntária acontecem o tempo todo, especialmente nos cultos pentecostais.
- A disciplina da vida nas igrejas também favorece a evolução profissional do pobre
- e, de certo modo, a ética religiosa torna o evangélico um funcionário mais respeitoso e esforçado.
A presença na igreja e a adoção de rotinas novas
- também tornam o evangélico mais protegido em suas comunidades, menos exposto à violência urbana,
- porque ele é visto mais claramente, inclusive por seu modo de se vestir, como um trabalhador e uma pessoa comportada.
O cristianismo evangélico
- também é, no meu entendimento, o que existe hoje de mais eficiente
- para o tratamento de pessoas pobres que se tornaram dependentes de substâncias ou estão presas.
Isso realmente não é o ideal;
- seria bom que o Estado cumprisse essa função,
- mas considerando a quase total ausência do Estado nos bairros pobres – em todos os sentidos, da oferta de saúde à de educação e segurança –
- é ótimo que a igreja esteja lá se dedicando a esses temas.
Finalmente,
- a igreja serve como espaço de formação de redes de ajuda mútua
- para encontrar emprego para desempregados, assistência jurídica, consultas com médicos especialistas,
- e serve também como espaço para pais deixarem seus filhos durante o contraturno escolar, um período em que crianças e adolescentes ficam nas ruas nas periferias
- porque não existem outras alternativas de serviços como cursos de idiomas, escolinhas de esporte etc.
IHU – Qual é o peso político dos evangélicos hoje no país?
Juliano Spyer – Estatisticamente, eles representam em torno de 1/3 dos eleitores do país, considerando dados de 2019 do Datafolha sobre o crescimento do número de evangélicos no país.
E, diferente de todos os outros grupos,
- eles têm espaços de encontro recorrente nas igrejas.
- E as igrejas são como centros comunitários organizados, muitas vezes interligadas a outras igrejas.
É algo muito poderoso em um país desigual como o Brasil, em que apenas 12% da população, segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional – Inaf, tem treinamento para ler livros.
- A igreja é um espaço que confere segurança e proteção para pessoas que vivem expostas a muita vulnerabilidade
- e isso a torna um lugar importante para a realização de debates políticos e sociais.
Atualmente,
- porque a esquerda tem mais dificuldades para dialogar com evangélicos, por achar que igrejas servem apenas para manipular pessoas,
- e por ter percepções sobre valores morais muito diferentes – em relação a aborto, legalização da maconha, sexualidade etc. -,
- evangélicos tendem a se aproximar de políticos do espectro oposto.
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Patrícia Fachin
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