Em tempos de polarização político-ideológica, um livro com o nome de O diálogo possível parece querer colocar todo mundo na mesma mesa. O subtítulo esclarece a proposta: “Por uma reconstrução do debate público brasileiro”.
Foto: Reprodução
Na obra, o ensaísta e filósofo Francisco Bosco
- parte de um país com cultura popular e democracia esfaceladas
- e busca, assim, diagnosticar como foi que chegamos até aqui.
É por meio do diálogo que a sociedade pode ser reconstruída e, para isso, é preciso cutucar sem medo as feridas, diz Bosco, que também é apresentado do programa Papo de Segunda, no canal GNT.
“A reconstrução do debate público requer desaliená-lo, desmistificá-lo e desinflamá-lo”,diz Bosco, em entrevista à DW Brasil.
- “Os novos trilhos que proponho ao país […] requerem enfrentar conflitos distributivos, econômicos e sociais,
- com uma radicalidade que a redemocratização, mesmo em seus melhores momentos, procurou evitar.”
Para fazer esse percurso, ele não se furta em reconhecer a importância nem sequer de pensadores controversos — e menosprezados pelo mundo acadêmico —, como o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho (1947-2022), guru do bolsonarismo.
“Quer se queira ou não, Olavo de Carvalho é o intelectual mais influente do país nas últimas décadas. Penso que as ideias de Olavo de Carvalho contribuíram decisivamente para arruinar a democracia brasileira”,
considera Bosco, apontando, que a esquerda também teve um papel importante na gestação de uma “direita apoplética”.
Para o filósofo, nunca faltaram motivos para ódio no Brasil.
“O ódio é a própria matéria-prima de que foi feito o país […] O Brasil é um país misturado e desigual. A radicalidade dessa desigualdade sempre manteve um ódio social latente.”
A ENTREVISTA
DW Brasil: Em seu livro, o senhor parte do diagnóstico de que tanto a cultura popular quanto a democracia brasileiras foram gravemente feridas nos últimos anos. Foi uma trágica coincidência essa simultaneidade ou são os mesmos fatos que racharam os dois pilares da autoimagem nacional?
Francisco Bosco: São processos diferentes, mas é uma hipótese plausível a de que a corrosão da ideia de cultura popular tenha influenciado a fragilização da democracia.
- A cultura popular, tal como reconhecemos essa expressão,
- se consolidou na primeira metade do século 20, com o samba, o Carnaval e a apropriação do futebol, um esporte europeu, pela população negra e mestiça.
Mas, obviamente,
- esse momento é o estágio de autoconsciência e de “oficialização” de uma dinâmica de misturas bioculturais
- que começa nas primeiras décadas da colonização.
O ponto é que,
- na falta de marcos políticos ou sociais capazes de funcionar como emblemas de uma comunidade imaginada, ou seja, da nação brasileira,
- quem desempenhou esse papel no Brasil, ao longo do século 20, foi a cultura popular.
Ocorre, entretanto, que os feitos luminosos da cultura, como o protagonismo negro, o rebaixamento das hierarquias sociais e raciais etc., nunca se transportaram para a dimensão socioeconômica.
A consciência dessa discrepância começou desde pelo menos os anos 1950, com a geração de Florestan Fernandes [sociólogo], na USP [Universidade de São Paulo].
De lá para cá, foi se acirrando, em diversas levas:
- a obra de Abdias do Nascimento,
- a obra dos Racionais MCs
- e o identitarismo dos últimos anos são os principais marcos.
Essa perspectiva acabou por esvaziar a força da cultura popular como elemento unificador da sociedade.
Quando junho de 2013 eclode, logo em seguida, nos anos de 2014, 2015, o movimento identitário ganha muita força.
- A explicitação radical dos conflitos políticos e institucionais, em junho, ecoou na explicitação radical dos conflitos socioculturais pelos movimentos identitários.
- Tanto junho quanto as lutas identitárias tinham evidentes perspectivas democratizantes e igualitaristas,
- mas, por maus caminhos de toda sorte, levaram a um esgarçamento institucional, político, partidário, social e cultural, que acabou fragilizando a democracia brasileira.
E o que é preciso fazer para que o Brasil volte a respirar democracia e expressar ao mundo sua cultura popular?
Evidentemente não tenho uma resposta simples para isso. Meu livro parte da premissa de que
- o próprio debate público está disfuncional, e que é preciso antes de tudo reconstruí-lo,
- para desse modo conseguirmos refundar algum pacto social que recoloque o país nos trilhos,
- que devem ser trilhos a um tempo mais transformadores e mais estáveis do que os já trilhados.
A reconstrução do debate público requer desaliená-lo, desmistificá-lo e desinflamá-lo.
Os novos trilhos que proponho ao país, por sua vez,
- requerem enfrentar conflitos distributivos, econômicos e sociais,
- com uma radicalidade que a redemocratização, mesmo em seus melhores momentos, procurou evitar.
Isso, entretanto,
- não significa virar totalmente à esquerda;
- pode e deve ser feito incorporando princípios da direita, tanto liberal — política, civil e mesmo econômica — quanto conservadora.
Cada capítulo do livro é dedicado a esmiuçar essa dialética.
Logo nas primeiras páginas do seu livro, o senhor lembra das palavras do escritor Umberto Eco, que costumava dizer que a internet deu voz a uma legião de imbecis. No caso do contexto de polarização política — e muitas vezes ódio — atual do Brasil, a onda de extrema direita é resultado dessa digitalização acessível da comunicação ou o mundo digital apenas abriu a caixa de Pandora, ou seja, o brasileiro médio já pensava assim antes?
O ódio é a própria matéria-prima de que foi feito o país. Esse país surgiu
- do genocídio dos povos indígenas,
- do tráfico de escravos de populações africanas,
- da ambição desenfreada de bandeirantes, e por aí vai.
Em meio a isso,
- o desejo de liberdade,
- a informalidade assegurada pelos amplos territórios,
- a mistura generalizada…
Esses fatores produziram também uma riqueza e complexidade culturais notáveis.
O Brasil é um país misturado e desigual.
A radicalidade dessa desigualdade
- sempre manteve um ódio social latente, que irrompe sistematicamente em violência desorganizada
- e de tempos em tempos explode em colapso político e social, como agora.
Sem dúvida as redes sociais digitais contribuíram decisivamente para organizar o ódio e levá-lo a um outro patamar de infiltração na subjetividade de amplos grupos sociais.
Mas o que nunca faltou no país foi motivo para ódio.
Em seu livro, o senhor cita um vasto cardápio de pensadores, entre os quais Olavo de Carvalho, o autoproclamado filósofo guru do bolsonarismo, uma figura que costuma ser menosprezada pelo mundo acadêmico. Citá-lo é também reconhecê-lo? Ou é simplesmente localizá-lo nesse contexto de negacionismos?
Quer se queira ou não, Olavo de Carvalho é o intelectual mais influente do país nas últimas décadas.
Ele plantou a semente de uma direita conservadora que cresceu, à medida que o solo lhe foi sendo favorável, e virou uma mistura de conservadores, reacionários, militaristas e nacionalistas.
Penso que
- as ideias de Olavo de Carvalho
- contribuíram decisivamente para arruinar a democracia brasileira.
É verdade que seus livros contêm algumas páginas inteligentes, brilhantes mesmo; mas isso pouco importa diante do tamanho do estrago. O estrago está feito e vai ser complicado reverter.
Em meu livro, apresento o que considero serem os antídotos, mas não sou ingênuo.
Olavo levou décadas para construir essa direita radical, e contou com ventos favoráveis da história a partir de certo momento. Não será um livro como o meu, nem tampouco outros livros que já o criticaram e desconstruíram suas narrativas, que será capaz de em pouco tempo esvaziar a força de sua influência.
Agora,
- um ponto que concedo ao olavismo e que raramente a esquerda reconhece
- é que a esquerda teve um papel importante na gestação dessa direita apoplética.
A hegemonia acadêmica e cultural da perspectiva de esquerda, e toda a intimidação que ela acarretou,
- condenou as pessoas que se identificavam com a cosmovisão conservadora a fomentarem suas ideias em porões subjetivos ou sociais –
- de onde, quando tiveram a oportunidade, saíram à luz do dia com todo o ódio dos aprisionados.
MAIS SOBRE ESTE ASSUNTO:
Leave a Reply