frei Bento Domingues, O.P. – 08 maio 2022 – Foto: DAQUI
Jesus é a humanidade de Deus. A Igreja, não. A Igreja tem de
aprender a ser humana com Jesus e todos os seres humanos da
terra.
1. Comunicaram-me que, no dia 3 deste mês, o PÚBLICO e o 7Margens iam lembrar-se de que, nessa data, se cumpriram 30 anos das minhas crónicas neste jornal.
Não vou falar das crónicas, mas apetece-me relembrar a introdução que escrevi para o primeiro livro, editado pelo Mário Figueirinhas [1], porque tentei exprimir, por contrastes, uma teologia que implicava uma antropologia.
Há, no entanto, nessa introdução, o uso do termo homem para significar homem e mulher, mas que oculta as mulheres. Por isso, desde há muito, utilizo sempre a expressão ser humano.
Recordei, nessa introdução, que em 1935 pediram a Yves Congar, OP, um diagnóstico sobre o inquérito, então realizado pela famosa revista La Vie Intelectuelle, razões da “descrença actual”.
A análise teológica do longo processo do divórcio entre a Igreja e os movimentos científicos, culturais e sociais que agitaram a gestação do mundo moderno ficou condensada numa frase que sempre me impressionou:
“A uma religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião.”
Trinta anos mais tarde, em pleno Vaticano II, voltou a insistir no mesmo ponto:
“O maior obstáculo, que os seres humanos de hoje encontram no caminho da fé,
- vem da falta de ligação que julgam verificar entre, por um lado, a fé em Deus, no seu Reino
- e por outro, o ser humano e a sua obra terrestre.
É urgente mostrar o laço íntimo que os une. É na superação desse fosso que se deveria procurar a resposta mais eficaz às razões da descrença moderna” [2].
Teilhard de Chardin, em 1920, numa breve nota sobre a evangelização dos novos tempos, pressente a gravidade do que está a acontecer:
“Cristão e humano tendem cada vez mais a não coincidir. É este o grande cisma que ameaça a Igreja.”
Nos anos 50, esta impressão ainda não se tinha apagado:
“Indubitavelmente, por alguma razão obscura, há qualquer coisa que já não passa entre o ser humano e Deus, tal como é apresentado aos seres humanos de hoje. É como se o ser humano não tivesse diante de si a figura do Deus que procura adorar” [3].
Em 1960, o grande medievalista Marie-Dominique Chenu, OP, verifica que
“o novo mundo dos nossos dias ainda não foi integrado no pensamento cristão” [4].
Philippe Roqueplo, no começo da sua tese de doutoramento — Experiência do mundo, experiência de Deus? — mostrou a que ponto a teologia oficial permanecia impermeável a todas as tentativas de integrar, na experiênciacristã, as tarefas da construção do mundo e de acolhimento do Reino de Deus.
Percorreu o monumental Dictionnaire de Théologie Catholique, elaborado entre 1903 e 1950, constituído por 22 grandes e compactos volumes. Este dicionário pretendia abarcar “todas as questões que interessavam ao teólogo”.
Veja-se o resultado:
“Na entrada profissão, vem um artigo ‘profissão de fé’;
- em emprego: nada;
- em mulher: nada;
em amor: um terço de coluna assim distribuído:
- v. ‘caridade’; amor do próximo: v. ‘caridade’; amor próprio: algumas linhas que reenviam para ‘ambição’; amor puro: v. ‘caridade’;
- mas sobre amor humano propriamente dito: nada;
- em amizade: nada (…);
em vida: um artigo ‘vida eterna’ (…);
em mal: vinte colunas; em economia: nada; em política: nada;
em poder: finalmente um artigo de 103 colunas (quatro vezes mais que ‘mal’) sobre… ‘o poder do Papa na ordem temporal’.
Em técnica: nada;
em ciência: mais um longo artigo dividido em quatro pontos: ciência sagrada; ciência de Deus; ciência dos anjos e das almas separadas; ciência de Cristo…
mas sobre o que nós chamamos ciência: nada;
em arte: um longo artigo sobre… a arte cristã; em beleza: nada;
em valor: nada;
em pessoa: v. ‘hipóstase’;
em história: nada;
em leigo e laicado: nada, a não ser um longo artigo sobre o laicismo estigmatizado como uma heresia” [5].
Estas ausências revelam um sobrenaturalismo teológico ignorante da significação das realidades terrestres com as quais é tecida a história humana, lugar da experiência cristã.
Veio o Concilio Vaticano II. Abriu com uma generosa mensagem ao mundo feita pelos padres conciliares. A constituição pastoral Gaudium et Spes é um braço franco ao mundo contemporâneo:
- “As alegrias e as esperanças dos seres humanos de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo;
- e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração.
- Porque a sua comunidade é formada por seres humanos, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do Reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos.
- Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história” (nº 1).
2. É certo que João Paulo II percorreu o mundo, arrastou multidões e disse logo no começo do seu pontificado o essencial:
- “O ser humano, na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser
comunitário e social - — no âmbito da própria família, no âmbito de sociedades e de contextos bem diversos, no âmbito da própria nação, ou povo (e, talvez, ainda somente do clã ou da tribo), enfim, no âmbito de toda a humanidade —
- este ser humano é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua missão:
- ele é a primeira e fundamental via da Igreja, via traçada pelo próprio Cristo e via que imutavelmente conduz através do mistério da Encarnação e da Redenção” [6].
No entanto, muita gente considera que há posições das autoridades eclesiásticas, assumidas em nome da lei de Deus e da vontade de Cristo, que são actos da maior desumanidade.
De onde virá este profundo desencontro? Não sei.
Repetir que o ser humano concreto, em todas as suas coordenadas, é o primeiro caminho da Igreja ou acusar a Igreja de atraiçoar o seu próprio programa, não leva a lado nenhum.
Adianto a hipótese que tem guiado a minha colaboração no PÚBLICO.
A questão talvez esteja em identificar apressadamente a Igreja com o próprio Jesus Cristo.
Jesus sabia e sabe o que há no ser humano. Conhece a profundidade do nosso coração. Em todos os seus gestos e palavras canta e chora uma inesgotável ternura e compaixão pelo mundo.
Jesus é a humanidade de Deus. A Igreja, não. A Igreja tem de aprender a ser humana com Jesus Cristo e com todos os seres humanos da terra.
3. A celebração deste domingo é dedicada a evocar Cristo como Bom Pastor. As principais figuras do Bom Pastor que encontrei, no meio de muitas pessoas que vivem a espiritualidade do cuidado, foram
- o Papa João XXIII, nas audiências públicas a que fui fiel, enquanto estive em Roma por conselho de Giorgio La Pira,
- e o Papa Francisco que nos acompanha dia a dia.
Com eles, as parábolas do Novo Testamento, as pinturas que, desde as catacumbas até hoje, as tentam exprimir, são pessoas que incarnam a misericórdia divina por todos os que se sentem perdidos nas periferias da desumanidade.
NOTAS:
[1] Frei Bento Domingues, O.P., A Humanidade de Deus. Religião sem mundo,
mundo sem religião, Mário Figueirinhas Editor, Porto, 1995.
[2] Chrétiens en dialogue, Paris, Cerf, 1964, p. XXXIII.
[3] L’Avenir de l’homme, Paris, Seuil, 1959, p. 339.
[4] ICI, nº 111, 1960, p.121.
[5] ln Experience du monde: experience de Dieu?, Cerf, Paris, 1968, p.19-20.
[6] Redemptoris Hominis, n°14.
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Frei Bento Domingues
in Público, 08.05.2022
Fonte: https://www.publico.pt/2022/05/08/opiniao/opiniao/bons-pastores-2005312
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