Riccardo Cristiano – 04 Março 2022
Foto: ONOFRE, Metropolita de Kiev – 04 Março 2022| Foto: Facebook
O comentário é de Riccardo Cristiano, jornalista italiano, publicado em Formiche, 03-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
- Quando a guerra começou?
- A pergunta é decisiva não só para entender quando se poderia evitá-la, mas também para estabelecer quem é a vítima e quem é o carrasco.
Todo evento parece ter um início, mas não é assim, não há auroras seguras e entardeceres indiscutíveis ao longo da história. A guerra não escapa dessa evidência.
Se pensássemos em fazer a cronologia da guerra na Ucrânia, poderíamos partir
- da entrada dos tanques russos na Ucrânia há poucos dias, o
- u da anexação russa da Crimeia,
- ou da Praça Majdan.
Mas não seria indispensável voltar ao extermínio stalinista dos kulaki ucranianos, sobre o qual o Patriarcado de Moscou e de todas as Rússias também chegou a silenciar?
Mas talvez seja a história czarista, ou a da conversão da Rus’, há muitos séculos, o verdadeiro ponto de início.
- Putin menciona isso com frequência e de bom grado:
- mas essa história da unidade russa também poderia nos dizer que Moscou fazia parte dos territórios de Kiev.
Portanto, ter uma cronologia não fixa uma responsabilidade certa, um culpado e uma vítima. Mas muda a história. A cronologia que se escolhe muda a representação da realidade, embora a realidade assim delimitada não seja interpretável de uma única maneira.
Há um livro, lançado nestes dias, que nos explica muito bem a importância das cronologias. Quem o escreveu foi Lorenzo Trombetta e se intitula “Negoziazione e potere in Medio Oriente”[Negociação e poder no Oriente Médio], publicado pela editora Mondadori.
Esse livro nos ajuda a pensar:
- se escolhermos uma cronologia que parta da invasão destes dias, a responsabilidade é toda de Putin, isso é claro.
- Se voltássemos a 860 e à conversão da Rus’, a culpa poderia parecer dos separatistas ucranianos,
- que querem se separar da grande mãe Rússia, mesmo tendo ela nascido em Kiev e não em Moscou.
Procedendo assim, porém, não poderíamos mais fazer a história de nada. O fluxo dos eventos nos levaria para fora do tempo em vez de para a sua compreensão. E, acima de tudo, as grandes reviravoltas da história seriam apagadas, aquelas que não podemos ignorar. Apagar essas reviravoltas nos ajuda a apagar as nossas próprias responsabilidades. É por isso que o fazemos.
Por exemplo: ao voltar a 860,
- Putin apaga o significado do dia em que ordenou a invasão de um Estado soberano.
- Esse evento, essa decisão pesará sobre os russos, sobre todos os russos,
- mesmo sobre aqueles contrários a ela.
É impossível que não seja assim.
Assim, a partir daquele dia, nós nos confrontamos com a escolha de reagir a uma ação que desafia a ordem mundial e envolve um risco nuclear.
- Poderia ter sido evitada?
- Sim, se pensarmos que essa cronologia é falsa e esconde outra reviravolta histórica
- que evidencia as responsabilidades do Ocidente e da sua falsa consciência.
Essa reviravolta histórica
- remonta ao dia 21 de agosto de 2013, quando o Exército de Bashar al-Assad perpetrou o holocausto químico de Douma.
- Naquele dia, a Rússia ainda não havia intervindo na Síria.
Mas o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama,
- preferiu, em vez da intervenção militar destinada a impor No Fly Zones que impedissem que Assad massacrasse o seu próprio povo,
- um acordo sobre o desarmamento químico de Assad por meio de um entendimento com os russos.
O que os russos entenderam? O que os Putin entenderam?
- Entenderam que os Estados Unidos estava se retirando
- e, no seu relativismo ético, também aceitavam o Holocausto químico
- em troca de uma honrosa saída que os libertasse do temor de que aquelas armas acabassem em mãos mais perigosas do que as de Assad.
Assim, nos anos seguintes,
- ela prosseguiu com a anexação da Crimeia primeiro
- e depois com a intervenção fraterna na Síria.
Foi um autêntico genocídio,
- e, se hoje nos assustamos com o terrível risco de bombardeios de saturação na Ucrânia,
- não podemos nos esquecer de que aqueles bombardeios de saturação destruíram vários bairros sírios, do leste de Aleppo para baixo.
Assim, chegamos ao dia de hoje, no qual dizemos que
- Putin, depois de ter assassinado mulheres e crianças,
- não poderá voltar a participar da vida internacional como seu protagonista.
- Mas, ao dizer isso, apagamos o fato de que ele já fez isso na Síria, assim como o seu aliado Assad, que foi aceito a ponto de chegar à beira da readmissão internacional.
Então, ao dizer isso, também se diz que,
- para o Ocidente, a civilização existe apenas na Europa,
- a vida importa apenas na Europa.
Essa é a tese que emana daquilo que foi afirmado nestas horas
- tanto por quem critica Putin, dizendo que agora ele não poderá voltar a ser protagonista do cenário internacional,
- quanto por quem o defende, dizendo que a Otan o provocou.
Ambos esquecem que
- ele comete crimes contra a humanidade desde 2015,
- quando aniquilou cidades sírias inteiras, incluindo escolas, hospitais, abrigos e todo o restante que se possa imaginar,
- sem que isso tivesse qualquer custo, muito pelo contrário.
O eurocentrismo de quem remove essa questão tira credibilidade dos valores que propõe:
- como é possível que quem comete crimes de guerra ou crimes contra a humanidade não pode voltar a ser protagonista do cenário internacional,
- quando acaba de ser aceito há anos pelo mesmo sujeito?
Eis, então, que a lição ao mudar a cronologia se torna terrível.
- Se tivéssemos intervido na Síria em defesa dos valores da convivência civil em 2013, ou seja, antes da intervenção russa naquele país,
- teríamos não só defendido o princípio que se invoca hoje, demonstrando que acreditamos que os princípios valem porque são princípios, e não pelo lugar onde são ou não aplicados,
- mas também se teria evitado um conflito direto com a Rússia.
A intervenção na Síria em 2013 teria sido um aviso a Putin: podemos entrar em acordo, mas as linhas vermelhas existem. Certamente, era preciso coragem, e ninguém diz que foi absolutamente justo, porque a cronologia deveria contemplar outras passagens também.
Mas a reviravolta da história não teria sido ignorada e poderia ter nos impedido de chegar àquilo que temos diante de nós.
- Se hoje temos que considerar um conflito europeu com o risco nuclear que ele acarreta,
- isso ocorre porque absolutamente não nos interessamos em um genocídio que ocorreu entre 2013 e 2017,
- e quem o perpetrou entendeu aquilo que achava certo entender.
Agora, porém, na cronologia russa, entra de forma disruptiva o comunicado do primaz da Igreja Ortodoxa Russa na Ucrânia, fiel a Moscou, aquela que Putin define como perseguida pelos separatistas e em defesa de cujos fiéis ele teria intervindo.
O Metropolita Onofre, porém, diz o contrário e acusa Putin de cometer o mesmo pecado de Caim, matando o irmão.
O texto de Onofre subverte a narrativa eslavista do Kremlin e obriga a um relato não etnicista dos fatos.
- Retira a centralidade na cronologia eslava da questão da extensão da Otan a leste
- e coloca ali a questão da descoberta da fraternidade negada.
Ao fazer isso, Onofre também nos obriga a uma cronologia que não pode ignorar o ano de 2013.
.
Riccardo Cristiano
Fontes: https://www.ihu.unisinos.br/616609-metropolita-de-kiev-obriga-a-fazer-outra-cronologia-da-guerra
https://formiche.net/2022/03/kiev-cronologia-guerra-metropolita/
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VEJAMOS A ÍNTEGRA DO TEXTO ABAIXO
Queridos irmãos e irmãs! Fiéis da nossa Igreja Ortodoxa Ucraniana!
Como Primaz da Igreja Ortodoxa Ucraniana, faço um apelo a você e a todos os cidadãos da Ucrânia.
O problema atingiu . Mais lamentavelmente , a Rússia iniciou uma ação militar contra a Ucrânia e , neste momento fatídico , exorto você a não entrar em pânico, a ser orajosos e mostrar amor por sua pátria e uns pelos outros .
Exorto -vos , em primeiro lugar , a intensificar a oração arrependida pela Ucrânia , pelo nosso exército e pelo nosso povo , a esquecer as brigas e os mal- entendidos mútuos e a unir-nos no amor a Deus e à nossa pátria .
Neste momento trágico, oferecemos amor e apoio especial aos nossos soldados que guardam, protegem e defendem nossa terra e nosso povo. Que Deus os abençoe e os proteja !
Defendendo a soberania e integridade da Ucrânia, apelamos ao Presidente da Rússia e pedimos o fim imediato da guerra fratricida
Os povos ucraniano e russo saíram da pia batismal do Dnieper, e a guerra entre esses povque matou seu próprio irmão por inveja.
Tal guerra não tem justificativa nem com Deus nem com os homens .
Chamo todos ao bom senso, que nos ensina a resolver nossos problemas terrenos em diálogo mútuo e compreensão mútua, e espero sinceramente que Deus nos perdoe nossos pecados e que a paz de Deus reine em nossa terra e no mundo inteiro!
+ Onufri y,
Metropolita de Kiev e toda a Ucrânia
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