Embora simplificando muito, pode-se dizer que ao longo da história da humanidade reflexiva se impuseram três concepções fundamentais de mundo.
Assim:
- uma concepção dualista: na raiz, há dois princípios – o princípio do bem e o princípio do mal;
- uma concepção monista: em última análise, há só a matéria, ou Deus e a Natureza fazem uma só realidade;
- o monoteísmo: o Deus transcendente e pessoal, absolutamente perfeito em si mesmo, criou o mundo a partir do nada.
Porque é que Deus criou e continuamente cria?
Apresentou-se permanentemente como razão da criação a maior glória de Deus.
Mas um Deus que criasse para a sua maior glória
- seria um Deus carente e egoísta,
- portanto, um Deus contraditório, um Deus que não é Deus.
Assim, Deus não criou pelo seu interesse, mas apenas para o bem e a felicidade das criaturas.
O único interesse na criação é o bem-estar e a realização plena das criaturas.
Isto significa que Deus não tem inveja da felicidade do ser humano.
- Deus, na concepção cristã, é o contrário de um Deus invejoso,
- pois criou apenas por amor da criatura
- e permanentemente promove e potencia os dinamismos da sua total realização.
A outra consequência fundamental da concepção cristã da criação por Deus é a autonomia.
De facto, se Deus criou sem precisar de criar, portanto,
- se a criação tem como única razão a liberalidade generosa de Deus no seu excesso amoroso,
- o resultado do acto criador só podem ser criaturas autónomas.
Deus não absorve a criatura; pelo contrário, fá-la ser ela mesma, de tal modo que é necessário concluir que precisamente a presença criadora de Deus a toda a criatura implica e funda a sua autonomia e independência relacional.
Criação e autonomia encontram-se numa relação de proporção directa: quanto mais Deus está presente mais a criatura é autónoma.
- O mundo segue, portanto, as suas leis,
- e os seres humanos enquanto criaturas livres têm de procurar os caminhos para uma conduta humana em autonomia e dignidade.
Se a realidade mundana e humana existe porque Deus na sua liberdade originária criadora a quis,
- este mundo é mesmo real
- e não um simples lugar de passagem
- ou um mundo provisório a caminho da realidade verdadeira no outro mundo.
A relação viva com Deus também passa pela resposta à pergunta de cariz heideggeriano: o que é que corre na corrente?
Na corrente, corre a fonte, mas a corrente não é a fonte.
- Se a fonte for Deus e tudo o mais a corrente,
- então estamos sempre em Deus e em comunhão com todos e com tudo,
- ao mesmo tempo que somos remetidos para a autonomia solidária e a responsabilidade adulta.
“Fazer amor é sagrado. É tão sagrado comer como fazer amor ou rezar.”
Aí está uma afirmação que produzi numa comunicação ao III Simpósio do Clero, em Fátima, em 31 de Agosto de 1999, e que, apesar de constituir um simples parêntesis no discurso, foi objecto de primeira página em jornais diários.
- Uma evidência que foi notícia! Trata-se na realidade de uma evidência.
- Não se afirma, de facto, como doutrina oficial da Igreja que o casamento é um sacramento,
- significando sacramento precisamente que o amor em corpo é sagrado, experiência santa de Deus?
Quando se estuda a fenomenologia da religião, aparecem como categorias primeiras as do sagrado e do profano:
- há um espaço sagrado e um espaço profano, um tempo sagrado e um tempo profano.
- Mas, deste modo, não surge Deus acantonado nos espaços e nos tempos sagrados?
Depois,
- haveria o imenso espaço e tempo profanos, com pequeníssimas ilhas de sagrado,
- de tal modo que a quase totalidade da existência se passaria no profano (de pro-fanum: em frente e fora do templo). (Fanum: lugar consagrado, templo: NdR))
Aos poucos, a Bíblia dá indicações de que é necessário acabar com esta separação dicotómica do sagrado e do profano.
Diz-se expressamente que com a morte de Cristo o véu do Templo se rasgou de cima a baixo.
Se Deus criou exclusivamente por amor, toda a realidade é ao mesmo tempo sagrada e profana:
- tudo é profano, pois pertence à autonomia,
- e simultaneamente tudo é sagrado, pois Deus é sempre presença infinita a todas as criaturas.
O ser humano
- é tão religioso quando reza como quando estuda ou realiza qualquer outra dimensão do seu ser.
- Já não há o imenso deserto do profano, com pequenas ilhas de sagrado.
Como diz o filósofo e teólogo Andrés Torres Queiruga, num exemplo feliz, também no casamento, os que se amam
- tanto se amam na cama como quando trabalham para a família
- ou estão a comer, a descansar ou a passear.
Precisamos certamente de tempos e espaços de meditação, de celebração festiva, ritual e simbólica,
- não porque aí Deus esteja presente com mais intensidade,
- mas porque nós mesmos precisamos de dar-nos conta e tomar consciência mais intensamente de uma realidade que é sempre simultaneamente
- profana, no sentido de vivida autonomamente,
- e sagrada, no sentido de que está sempre imersa e referida a Deus, fonte do ser e de ser.
Isto não significa, porém, que concretamente o tempo seja homogéneo:
- de facto, o kairós, o instante do começo de uma pessoa, por exemplo,
- ou o instante da sua morte não formam um continuum no tempo.
Há o tempo qualitativo.
Por outro lado, este mundo em que nos encontramos não é um simples lugar de passagem:
- ele é real e verdadeiro, pois é o mundo de Deus, que ele mesmo quis e criou,
- para estabelecer uma aliança de liberdade com homens e mulheres livres.
O que se passa é que está ainda a caminho, em processo, ainda não chegou à sua consumação, ainda não é o que será, e nós próprios também não somos ainda o que seremos.
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Anselmo Borges
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/tudo-profano-tudo-sagrado-14512466.html
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