Eduardo Hoornaert, 27.11.2021
Imagem : Eis que estou à porta e bato / DAQUI
Como toda organização, a igreja católica está submetida à lei da fragilidade, da provisoriedade, do erro e do abuso, qualificações de todas as organizações humanas.
... O realmente inovador, na intuição protestante, consiste em estabelecer uma distinção clara entre o que vem de Deus e o que vem do homem:
… O que procede de Deus é sua vinda à humanidade. Deus vem! Essa vinda é única, permanente, sempre a mesma, dentro de contextos muito diferentes. Deus pode vir em muitos seres humanos que nem o sabem.
São conhecidas as palavras finais do discurso de Lutero diante da Dieta de Worms no dia 17 e abril de 1521:
não posso submeter minha fé ao papa ou ao concílio, porque fica claro como o dia que eles caíram no erro e na inconsistência.
Aqui, nessa breve frase,
- o incrivelmente corajoso e lúcido frade agostiniano operou uma distinção de importância ímpar:
- a distinção entre a fé e o seguimento de uma determinada religião.
Quinze anos depois, em 1536, um reformador suíço, chamado João Calvino,
- expressou, com palavras menos diretas e mais complexas, a mesma distinção,
- ao escrever um livro ao qual deu o título Institutio Christianae Religionis. (Instituição da Religião Cristã – NdR))
Durante séculos não existiram – por parte de grandes setores da cultura ocidental – condições psicológicas que possibilitassem alcançar a real dimensão dessa distinção e da intuição subjacente.
Hoje, temos condições de trocar opiniões acerca desse ponto importante.
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Aqui, vou me ater pincipalmente à distinção que se observa, embora de modo um tanto velado, no título do livro de Calvino: Institutio Christianae Religionis.
O que Calvino entende por ‘instituição’? Consultei um dicionário de língua latina e aprendi que o substantivo ‘institutio’ provém do verbo ‘instituere’, que, por sua vez, provém de ‘in-statuere’ (posicionar algo frente a outra coisa, inovar).
Ao longo dos tempos, o verbo ‘instituere’
- perdeu muito de sua afirmatividade original
- e passou a indicar uma realização qualquer.
O mesmo aconteceu com do substantivo ‘institutio’, que, em seu sentido original, significa ‘ação inovadora’, e foi perdendo sua pungência com o tempo.
Calvino volta ao sentido original, incisiva, do vocábulo.
E qual o sentido do genitivo ‘christianae religionis’?
A língua latina distingue entre genitivo ‘passivo’, chamado também ‘objetivo’, e genitivo ‘ativo’ ou ‘subjetivo’.
A expressão ‘amor Dei’, por exemplo, tanto pode significar
- o amor dirigido a Deus (genitivo passivo ou objetivo)
- quanto o contrário, ou seja, o amor que vem de Deus (genitivo ativo ou subjetivo).
Calvino usa aqui o genitivo passivo: A instituição é uma ação dirigida à religião.
- A religião cristã é objeto, e não sujeito, da instituição.
- A inovação (o evangelho) não provém da religião, mas afeta e desafia a religião.
Uma formulação complicada, sem dúvida. Mas lúcida.
Simplificando podemos dizer que Calvino entende por ‘instituição’ a vinda, frequentemente abrupta, de Deus, no acontecer humano.
Imagens bíblicas não faltam:
- o anjo de Ihwh vem do céu e segura os dois braços de Abraão para que ele não cometa o absurdo de imolar seu filho Isaac, seguindo um imperativo religioso (Gen. 22);
- o arbusto no deserto queima, mas não se consome, por grande surpresa de Moisés (Ex. 3,3);
- Paulo cai do cavalo; aparecem línguas de fogo sobre os apóstolos na Festa de Pentecostes (At. 2, 3).
Nem sempre a vinda de Deus é inesperada e abrupta.
O visionário redator do Apocalipse coloca na boca de Deus as seguintes palavras:
- Já estou chegando e batendo à porta.
- Quem ouvir minha voz e abrir a porta, eu entro em sua casa (Apocalipse, 3, 20).
Deus espera paciente e insistentemente na porta.
- Ele preza a liberdade de sua criatura e enxerga inclusive a possibilidade de não sei atendido, como adverte o teólogo uruguaio Juan Luís Segundo:
- se ninguém abrir, Deus aceita a derrota sabendo que sua criação fracassou. Deus criou um mundo que podia fracassar.
Para Calvino, fica abusivo falar em ‘instituição católica’ ou ‘instituição protestante’.
Só há uma instituição: o agir divino no acontecer humano.
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Relacionando instituição com religião,
- Calvino evidencia que Deus costuma se revelar dentro de um estabelecimento histórico concreto,
- ou seja, daquilo que se pode qualificar de ‘organização’.
A religião é uma organização. É da ordem dos instrumentos, das operacionalidades. Tomemos o caso da igreja católica, contra a qual Lutero se insurge com tanta veemência.
- Os historiadores situam o surgimento da igreja católica, tal qual se apresenta hoje, nos séculos IV e seguintes.
- No momento em que o movimento cristão resolve encaixar suas comunidades locais em ‘dioceses’, por exemplo,
- ele se transforma em organização ‘romana’.
Pois a diocese
- é uma subdivisão administrativa, a cobrir o imenso espaço do Império Romano,
- criada na finalidade de operacionalizar a cobrança de impostos, a cargo de coletores locais,
- em regiões submetidas a Roma (fora da Itália).
O elo entre a igreja católica e a organização romana da sociedade continua patente, até nos nossos dias.
- Ao adotar o sistema diocesano e os modos romanos de se relacionar com a sociedade,
- a igreja católica se torna uma organização particularmente resistente aos apelos da instituição divina.
Não entro aqui em detalhes acerca da evolução do paradigma ‘organização’ na história da igreja católica. Limito-me a dizer que,
- como toda organização, a igreja católica está submetida à lei da fragilidade, da provisoriedade, do erro e do abuso,
- qualificações de todas as organizações humanas.
Um condicionamento lucidamente percebido pelos reformadores do século XVI, particularmente por Lutero em sua fala diante da Dieta de Worms.
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O teólogo católico José Comblin, recentemente, fez uma declaração que se aproxima da intuição de Lutero e Calvino.
No dia 18 de março de 2010, numa conferência em El Salvador, ele pronunciou a seguinte frase: evangelho não é religião.
E explicou:
O contexto me obriga a partir da distinção entre o evangelho e a religião cristã ou católica.
- A teologia tradicional não parte dessa distinção, porque na cristandade tudo estava confundido. Não se buscava a distinção entre o que procede de Deus e o que procede dos homens.
- O que procede de Deus é sua vinda à humanidade. Deus vem! Essa vinda é única, permanente, sempre a mesma, dentro de contextos muito diferentes. Deus pode vir em muitos seres humanos que nem o sabem.
- Acontece também, e com frequência, que Deus fica diante de portas fechadas
(veja O Espírito Santo e a Tradição de Jesus, São Bernardo do Campo, Nhanduti Editora, 2012, pp. 35-36).
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Do acima exposto decorre que o realmente inovador, na intuição protestante, consiste em estabelecer uma distinção clara entre o que vem de Deus e o que vem do homem:
não posso submeter minha fé ao papa ou ao concílio, porque fica claro como o dia que eles caíram no erro e na inconsistência (Lutero, 1521).
Palavras que expressam um pensamento seminal em todos os movimentos protestantes:
- reivindicar a primazia da ‘instituição’ sobre a ‘religião’,
- assim como a ação da primeira sobre a segunda.
A dificuldade de discernimento provém do fato que, na concretude da história, instituição e organização costumam se apresentar entrelaçadas.
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Eduardo Hoornaert
Fonte: http://eduardohoornaert.blogspot.com/2021/11/a-intuicao-protestante.html
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