QUESTÕES VULTOSAS : Se houver, claro, a pretensão de sermos ao menos um arremedo de nação
- não tem poder nem para indiciar os supostos criminosos – oitenta no total –;
- ela apenas encaminha suas recomendações aos órgãos competentes.
No caso do presidente da República,
- cabe ao procurador-geral da República examinar as denúncias para lhes dar um destino.
- O país já sabe o que pode esperar de Augusto Aras. Ele tem certa tara por gavetas.
- Gosto compartilhado por Arthur Lira (PP-AL), o presidente da Câmara, a quem caberia dar início ao processo de cassação do mandato por crime de responsabilidade.
Foi provavelmente por conhecer a alma de Lira & Aras que o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), ao ser indagado por jornalistas sobre a reação do pai ao relatório da CPI, soltou uma gargalhada forçada diante dos microfones, simulando como seria o gesto obsceno do presidente. Isso ocorreu no dia 20 do mês passado, uma quarta-feira.
Dois dias depois, na sexta-feira, Bolsonaro de fato gargalhou. E o fez de forma espontânea,
- não por causa do relatório de Renan Calheiros (MDB-AL),
- mas à custa de Paulo Guedes, o seu vira-lata de estimação. (foto acima – NdR)
A cena ocorreu no Ministério da Economia, quando o borra-botas, antigo Posto Ipiranga, tentava justificar sua permanência no cargo depois do anúncio da implosão do teto de gastos.
- Bolsonaro acompanhava o exercício de vassalagem de Guedes de cara fechada, entre entediado e impaciente,
- até que o ministro, o tempo todo com as mãos trêmulas e a expressão assustada, anunciou o novo secretário do Tesouro e Orçamento, em substituição ao demissionário Bruno Funchal.
Primeiro Guedes chamou Esteves Colnago de André Esteves. Depois, tentando se corrigir, misturou os dois, inventando um tal André Esteves Colnago. Quando, enfim, acertou o nome do assessor, Bolsonaro já havia se divertido o suficiente. No final da explanação, com os dois já em pé, o chefe ordenou ao capataz ainda atônito: “Aperta a mão aí.”
Um manda e o outro obedece, como diria Eduardo Pazuello. Guedes abanou o rabo.
Revelados ao país na mesma semana,
- o abandono do teto de gastos e as conclusões da CPI
- foram computados pela imensa maioria dos comentaristas políticos como derrotas de Bolsonaro.
Faz sentido.
- O presidente brasileiro circulou pela imprensa internacional como um negacionista criminoso, um psicopata, um pária execrável.
- Como se não bastasse, a crise do teto selou a quebra de confiança entre o governo e os agentes do mercado.
- A percepção de que nada funciona no Brasil, de que não somos um país confiável, ficou reforçada.
É tudo verdade. Mas, ainda assim, Bolsonaro talvez tenha motivos para dar risada.
Primeiro,
- porque a CPI, apesar de cumprir papel relevante no curso da tragédia sanitária, não deixa de ser também um documento da impotência da democracia diante das atrocidades do presidente.
- Os crimes se acumularam, foram reiterados de forma abusiva, estão todos escancarados, são intoleráveis, mas é praticamente certo que nada lhe acontecerá.
- A punição política ficou para as calendas, não há o menor sinal de impeachment no horizonte.
Como se costuma dizer nos vestiários de futebol, Aqui é Centrão, porra! Um dos slogans da campanha de 2018 já avisava aos incautos: É melhor Jair se acostumando.
Em segundo lugar,
- ninguém ignora que, sem teto, a casa da economia brasileira ficou mais exposta a tempestades – a piora das expectativas para 2022 é uma unanimidade, o que varia um pouco entre os entendidos é a intensidade do desastre contratado.
- Ruim ou péssimo para o país, não necessariamente para o projeto político de Bolsonaro.
Ao anunciar o novo Auxílio Brasil de 400 reais durante doze meses para 17 milhões de famílias,
- o presidente avança aos trancos e barrancos sobre o eleitorado de Lula. Mais de 40% dos que serão beneficiados pelo programa estão no Nordeste.
- O impacto político dessa transferência em ano eleitoral depende de variáveis e circunstâncias que desconhecemos, mas dificilmente será nulo ou desprezível.
- Não é à toa que o passe de Bolsonaro esteja sendo disputado no grito pelo PP de Ciro Nogueira e pelo PL de Valdemar Costa Neto, tutti buona gente del “Centrone”. (todos boa gente do “Centrão”- NdR)
A pouco menos de um ano para as eleições, num ambiente turvado como o atual, há argumentos na praça para qualquer prognóstico.
Um deles, em alta na bolsa de apostas das redações de jornais e nas salas envidraçadas da Faria Lima,
- diz que Bolsonaro vai derreter com a economia
- e viabilizar assim a emergência de um nome alternativo para enfrentar e derrotar Lula no segundo turno.
Ou seja,
- chegou a hora dessa gente bronzeada da terceira via mostrar seu valor.
- O jornal O Globo teve até a iniciativa de promover um debate entre os candidatos a candidato a presidente pelo PSDB, o que foi logo batizado nas redes de Projeto Tucano-Esperança.
- No mundo das coisas terrenas, o que está se consolidando por enquanto é a fragmentação irreversível do chamado campo democrático.
A essa altura é preciso perguntar se essa noção – o campo democrático – já não se tornou uma espécie de ilusão retórica que não descreve mais a realidade.
- As forças que formaram o continente político nas últimas três décadas agem agora como ilhas que estão em guerra entre si,
- como se não houvesse (e na prática eles nos dizem que não há) um inimigo comum, um adversário da democracia a ser combatido.
Jeder für sich und Gott gegen alle – cada um por si e Deus contra todos. O título original do filme de Werner Herzog (traduzido no Brasil como O Enigma de Kaspar Hauser) serve de epígrafe ao Brasil atual.
Jair Bolsonaro está muito longe de ser um morto-vivo.
- No pior momento de seu mandato, tem a aprovação de 20% a 25% da população e intenção de voto muito semelhante (a coincidência entre os índices indica o enraizamento de seu eleitorado).
- A extrema direita se organizou no país e isso não foi um acidente histórico.
- Uma sociedade tão violenta, tão fraturada, com diferenças de renda e condições de vida tão abissais era e segue sendo um prato cheio para o advento deste Messias.
Ele
- tem base social,
- controla o aparelho estatal,
- movimenta uma máquina infernal de propaganda e desinformação,
- conta com milícias armadas e a simpatia das forças policiais e das Forças Armadas.
Por estranho que pareça, quanto mais o país afunda, mais ele se viabiliza – na lógica do bolsonarismo, apocalipse e salvação se confundem.
Impedir a reeleição deste projeto ruinoso deveria ser uma prioridade muito mais clara para todos os que reivindicam para si a condição de democratas. Isso se o Brasil ainda tiver a pretensão histórica de ser ao menos um arremedo de nação.

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Fernando de Barros e Silva
Repórter da piauí e apresentador do podcast Foro de Teresina
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