Maha Hilal – 10.09.20-21
Foto: Soldados americanos no Iraque; guerra não começa nem acaba com combates no solo
Passados 20 anos do 11 de Setembro, Estados Unidos estão recalibrando sua política bélica para o Oriente Médio. No entanto são um mito as assertivas de que a era das guerras intermináveis chegou ao fim, opina Maha Hilal.
“Na noite passada, em Cabul, os Estados Unidos deram fim a 20 anos de guerra no Afeganistão, a guerra mais longa da história americana.”
Essas foram as palavras do presidente Joe Biden em 31 de agosto, um dia após concluída a retirada das tropas americanas daquele país asiático.
É notável, porém, que na mesma fala Biden assegurou:
“Vamos manter a luta contra o terrorismo no Afeganistão e em outros países. Só não precisamos travar uma guerra terrestre para isso. Temos o que se chamam ‘capacidades além do horizonte’, o que significa que podemos atingir terroristas e alvos sem botas americanas em solo, muito poucas, se necessário.”
Claro que essa não é a primeira vez que a guerra no Afeganistão “acaba”.
Em 2014, por exemplo, o então presidente Barack Obama anunciou que a missão de combate no país se encerrava, afirmando que
“a guerra mais longa da história americana está chegando a uma conclusão responsável”.
Mais de uma década antes, em 1º de maio de 2003, o então secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, um dos arquitetos da guerra do Afeganistão, declarara um fim da missão de combate no país, apenas horas antes de o presidente anunciar o mesmo em relação à guerra no Iraque.
Ainda assim, até hoje as Forças Armadas dos EUA mantêm um contingente no Iraque.
Embora Biden tenha dito que a missão de combate no país estará encerrada até o fim de 2021,
- é óbvio que isso não exclui a possibilidade de militarismo continuado lá,
- seja na forma de ataques aéreos ou de uma presença institucional duradoura
- – ou, mais provavelmente, ambos.
Conceito limitado de guerra
Tais declarações revelam uma definição de guerra muito estreita, que minimiza suas manifestações, considerando apenas a violência militar na forma de batalhas terrestres.
- Tem-se forçado essa interpretação limitada a fim de excluir ataques aéreos e combate com drones, se empregados como tática isolada,
- pois são executados sob o pretexto de contraterrorismo que, de algum modo, é organizado separadamente da guerra.
A mesma lógica se tem aplicado a todo o aparato da guerra antiterror, apesar da violência abrangente praticada em seu nome.
Foto: Amazon
Em meu futuro livro, Innocent until proven muslim: Islamophobia, the War on Terror, and the muslim experience since 9/11 (Inocente até provado muçulmano: Islamofobia, a Guerra ao Terror e a experiência muçulmana desde o 11/9),
eu forneço um enquadramento para se entender a Guerra ao Terror.
Eu defino cinco dimensões:
1) militarismo e combate;
2) políticas de imigração draconianas;
3) vigilância;
4) ações judiciais federais antiterrorismo;
e 5) detenção e tortura.
Se a guerra é restrita ao combate terrestre, quatro dessas dimensões ficariam de fora da sua definição – apesar da imposição de violência em massa, justificada pelo uso da linguagem de combate.
Embora haja uma resposta técnica à questão de se a guerra acabou ou não, baseada unicamente no conflito terrestre,
- essas limitações ignoram o fato de que a guerra configura as realidades cotidianas de gente que a vivencia das mais múltiplas formas,
- especialmente entre as comunidades e países que os EUA têm ou tiveram na mira.
Nas guerras assimétricas, essa realidade é sentida de forma muito mais aguda pelos que ficam para trás e têm que lidar com as consequências dos conflitos.
O mito do fim das guerras
Isso é porque guerra não é apenas uma questão de violência física, mas também de constante ameaça de violência.
Os americanos modelaram um mundo com base em sua Guerra ao Terror, onde sua violência estatal é onipresente. Isso significa, que mesmo na ausência da maioria dos aspectos bélicos visíveis, a guerra continua no ar.
- De fato, se os EUA ensinaram algo ao mundo,
- é que não existe a paz, como o oposto das guerras deles,
- somente um vai-e-vem de para onde a violência é dirigida.
Para o filósofo Robin Schott, autor do ensaio Gender and “postmodern war” (Gênero e “guerra pós-moderna),
- a guerra não deve ser vista apenas como um evento, ou uma série de eventos,
- mas sim como uma presença.
Se compreendêssemos o conceito assim, pensaríamos na Guerra ao Terror como a presença de violência, manifesta em muitos contextos diferentes, ao longo dos últimos 20 anos.
- Duas décadas após os ataques do 11 de Setembro e sua subsequente Guerra ao Terror,
- os EUA seguem infligindo violência em massa, no nível doméstico e por todo o globo.
Aproveitando-se da definição limitada de guerra, baseada em eventos, e focando apenas na salvaguarda e segurança do povo americano, (pelo menos teoricamente) os EUA conseguiram criar a fachada do fim da(s) guerra(s).
Mas, para os atingidos em países desde o Afeganistão até o Iraque e a Somália, onde a guerra se manifesta profundamente, como uma presença, não como um evento, é imperativo perguntar: para quem acabou a guerra?
.
Maha Hilal
é cofundadora e codiretora do Justice for Muslims Collective. Teve a bolsa de pesquisa Michael Ratner do Instituto de Estudos de Políticas Estrangeira, em Washington, EUA. O texto reflete a opinião pessoal da autora, e não necessariamente da DW.
Fonte: https://www.dw.com/pt-br/opiniao-guerra-ao-terror-dos-eua-ainda-e-onipresente
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- Data 10.09.2021
- Autoria Maha Hilal
- Assuntos relacionados Estados Unidos, Mossul, Joe Biden, Afeganistão
- Palavras-chave Afeganistão, guerra, Estados Unidos, Iraque, Guerra ao Terror, contraterrorismo, violência estatal, War on Terror, Joe Biden
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