Anselmo Borges – – Foto: Aleteia
Sobre o sexo, as mulheres, as religiões e a Igreja já escrevi aqui muitas vezes. Também em livros que publiquei, incluindo o próximo, O Mundo e a Igreja. Que Futuro?, que espero esteja nas livrarias em finais de Outubro.
Retomo hoje o tema muito rapidamente, por causa do “alarido” que houve nos media provocado por uma leitura na Eucaristia de um domingo passado, transmitida pela televisão pública.
Algum esclarecimento é devido.
1 O que se passou é que foi feita uma leitura bíblica a dizer:
“As mulheres sejam submissas aos maridos, como ao Senhor, pois o marido é o chefe da mulher, como Cristo é o Chefe da Igreja.”
Previno que o texto é da Carta aos Efésios, atribuída a São Paulo, mas a autoria realmente não lhe pertence.
- Aliás, é preciso dizer que, no cristianismo, com Jesus, que escandalosamente tinha discípulos e discípulas,
- São Paulo deu um contributo decisivo para a emancipação feminina:
“Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus”,
escreveu na Carta aos Gálatas; e na Carta aos Romanos descreve Júnia como ilustre entre os Apóstolos.
2 Todas as religiões se entendem a si mesmas como reveladas. A pergunta é:
como sabem os crentes que Deus falou?
A religião
- tem sempre na sua base uma interpretação humana da realidade,
- da única realidade que há, comum a crentes e a não crentes,
- e que é ambígua.
Para o crente, a realidade mesma, para a sua compreensão adequada, aparece-lhe como incluindo uma Presença que não se vê em si mesma, mas implicada no que se vê.
- Mediante certas características – a contingência radical, a morte e o protesto contra ela, a exigência de sentido último -,
- a própria realidade se mostra implicando essa Presença divina como seu fundamento e sentido últimos.
Assim, como escreve A. Torres Queiruga, na estrutura íntima do processo religioso
- “não se interpreta o mundo de uma determinada maneira porque se é crente ou ateu,
- mas é-se crente ou ateu porque a fé ou a não crença aparecem ao crente e ao ateu, respectivamente,
- como a melhor maneira de interpretar o mundo comum”.
A fé, no seu nível próprio, tem razões, de tal modo que está sujeita à verificação.
- Aí, o agnóstico dirá que não vê razões para poder decidir-se.
- O ateu julga que as razões contrárias são mais fortes e, por isso, não crê.
- Para o crente, a “hipótese religiosa” é a que melhor esclarece as experiências e questões radicais postas pela realidade e pela existência:
a contingência, as perguntas últimas pela vida e pela morte, a esperança, a exigência ética, o sentido da existência e da história.
3 A partir de uma experiência religiosa de fundo por parte do profeta ou do fundador religioso,
- desencadeia-se um processo vivo que dá origem a tradições religiosas ou religiões que acabam por sedimentar ou cristalizar em livros sagrados, considerados “revelados”.
- Os novos crentes não aceitam a verdade da fé por via autoritativa.
- Eles próprios podem comprová-la.
A. Torres Queiruga, o teólogo que de modo mais penetrante tentou esclarecer esta questão, chamou a esta compreensão “maiêutica histórica”.
- Na verdade religiosa, há os profetas e os fundadores das religiões, que foram os primeiros a tomar consciência da verdade.
- Mas, após essa descoberta, ouvindo-os e acompanhando-os, outros se podem dar conta por si mesmos da mesma verdade.
A partir daqui, compreende-se que Deus se manifesta, mas nunca directamente, sempre e só indirectamente.
Jamais alguém viu ou falou directamente com Deus.
- Por isso, os livros sagrados não são um ditado divino
- – são Palavra de Deus em palavras humanas.
Os seus autores escreveram e os seus leitores lêem
- com uma pré-compreensão, isto é,
- no quadro de pressupostos históricos e culturais, interesses e expectativas.
Portanto, a sua leitura nunca pode ser literal, pois implica sempre uma interpretação.
Torna-se, pois, claro que os livros sagrados – a Bíblia, o Alcorão e todos os outros
- – não são ditados divinos e precisam, por isso, de uma interpretação histórico-crítica
- e de uma mediação hermenêutica,
- não podendo de modo nenhum ser engolidos na sua totalidade de modo acrítico.
É preciso lê-los, atendendo
- à língua original,
- ao género literário,
- aos destinatários,
- ao contexto…
A verdade de qualquer livro sagrado só pode acontecer na compreensão de que o seu horizonte é a salvação. Eles são livros religiosos voltados para a oferta de libertação, dignificação, salvação.
- Se toda a religião tem como ponto de partida e “definição” a pergunta essencial: o quê ou quem traz libertação e salvação?,
- então a libertação-salvação total é que constitui o fio hermenêutico decisivo para a interpretação correcta dos livros sagrados na sua verdade final.
Só a esta luz é que eles são verdadeiros.
A sua leitura nunca pode ser fragmentada, já que só no seu todo é que se reclamam da verdade.
Em tudo quanto neles se encontra de menos humano ou até de desumano revela-se o que Deus não é.
À luz da libertação final, que implica uma antropologia e uma teologia negativas,
- os livros sagrados são também a história da tomada de consciência por parte dos humanos do que Deus, o Sagrado, não é
- e do que eles, para se tornarem verdadeiramente humanos, não devem ser.
4 Conclusão: o alarido todo não pode ser atribuído à “talibona” que fez a leitura na Eucaristia. A culpa não é dela , mas dos responsáveis que deveriam, embora continuando na Bíblia, retirar esse texto da celebração litúrgica.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/as-mulheres-sejam-submissas-aos-maridos-14084126.html
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