Raniero La Valle – 31 Agosto 2021 – Foto: Cabul / DAQUI
- há um mundo a salvar e um mundo a perder, os privilegiados e os excluídos, os necessários e os sobressalentes;
- ou seja, nós e eles, aqueles que o Papa Francisco um dia chamou de ‘descartados’“,
Eis o artigo.
- A queda de Saigon representou, de fato, a derrota da tentativa dos Estados Unidos de substituir as potências europeias (e, no caso específico, a França) na gestão de um poder imperial residual sobre esta ou aquela porção do atrasado “Terceiro Mundo“, e, portanto, marcou o fim da era colonial;
- o abandono do Afeganistão, por outro lado, representa o fracasso da resposta do Ocidente à queda do comunismo e da ordem bipolar e marca o fim da nova ordem global.
- Sai derrotada a pretensão do Ocidente de substituir o socialismo desaparecido instaurando um único domínio sobre um mundo reduzido à sua própria medida e acaba o sonho dos Estados Unidos de inaugurar um “novo século estadunidense”.
A leitura que nos parece mais provável é que a queda de Cabul é uma imagem espelhada da queda do muro de Berlim;
- ambas fruto não de uma derrota militar, mas de uma decisão política dos invasores, os soviéticos na época, os estadunidenses hoje;
- ambas são sinais de que o mundo por eles imaginado e desejado é errado e impossível,
- e que outro deve agora ser projetado e construído.
O 2021, portanto, se revela como o reverso de 1989.
Mas é aí que precisamos voltar, como numa linha de partida, para organizar outra resposta.
Como foi argumentado em um seminário da escola “Vasti” de novembro de 2001 que aqui retomamos, o Ocidente então cometeu um erro ao ler e responder aos eventos de 1989,
- primeiro por favorecer a dissolução da URSS,
- depois por conceber um mundo do qual era o único protetor e senhor;
o Ocidente não soube como sair do sistema de domínio e de guerra que estava ligado à diarquia do terror, mas, uma vez que a União Soviética desapareceu do esquema, continuou aquele mesmo sistema colocando-se sozinho à sua frente;
- não soube portanto aproveitar a ocasião daquela inesperada e pacífica descontinuidade histórica,
- não soube conceber e gerir um projeto novo para o mundo que representasse uma verdadeira superação do antigo sistema bipolar, e com isso entrou a trajetória de sua queda, ativando uma crise que espelha aquela que foi a crise do comunismo e desencadeando a fase final da crise daquela ordem.
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A queda de Cabul é uma imagem espelhada da queda do muro de Berlim; ambas fruto não de uma derrota militar, mas de uma decisão política dos invasores, os soviéticos na época, os estadunidenses hoje; ambas são sinais de que o mundo por eles imaginado e desejado é errado e impossível, e que outro deve agora ser projetado e construído. O 2021 se revela como o reverso de 1989 – Raniero La Valle – Tweet
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Como isso aconteceu?
Quando, em 14 de novembro de 1989, Gorbachev, chefe da URSS, transmitiu aos líderes alemães a decisão de abrir o Muro de Berlim,
- toda a política militar, toda a política externa, todo o mundo eram pensados em função do desafio final da história, identificado com o choque do Ocidente com o comunismo entendido como o princípio do mal.
- No momento em que isso termina repentinamente e sem derramamento de sangue, os estadunidenses acham difícil de acreditar, e se abre um vazio que ninguém está minimamente preparados para preencher.
A única coisa que o Ocidente consegue dizer é:
“a guerra fria acabou e nós a vencemos”.
Mas o que fazer com o mundo?
* O capitalismo finalmente prevaleceu, o mercado é agora universal, as mais ousadas esperanças dos teóricos do liberalismo que haviam profetizado:
- com o livre comércio, a paz eterna pode ser realizada.
- A história chegou ao seu cumprimento e nós a conduzimos para lá.
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O darwinismo social. Este é o ponto de queda a que chega todo o curso histórico – Raniero La Valle – Tweet
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* Por outro lado, o capitalismo que dos grandes países do Ocidente se apresenta para arrecadar a herança do mundo,
- é um capitalismo atraente, um capitalismo não só de riquezas e lantejoulas televisivas,
- mas também de direitos, de proteção social, de pluralismo político.
Não é o capitalismo selvagem que conhecemos hoje,
- é um capitalismo ainda profundamente influenciado pela existência de um campo antagonista,
- pelo desafio externo do mundo socialista, pelo condicionamento interno das esquerdas e dos sindicatos, pelo compromisso keynesiano.
É um capitalismo
- que teve que aceitar algumas compatibilidades com direitos e valores independentes do mercado,
- é um capitalismo avaro com as necessidades, mas dispensador de desejos.
E então todo mundo quer fazer parte dele, imigrar para dentro dele e importá-lo para sua casa.
Mas, neste ponto, uma vez que o limite externo caiu,
- o capitalismo realizado se dá conta de que não é de forma alguma universal.
- É o melhor sistema possível, mas não é para todos, seus benefícios não podem ser estendidos a todos.
- Não pode sustentar a vida e o desenvolvimento do mundo.
- Não pode alimentar a todos, não pode garantir água e remédios para todos, não pode permitir a democracia para todos.
Os mecanismos econômicos não estão equipados para isso, porque são feitos para incrementar o dinheiro e não para satisfazer as necessidades. Mas este não é o único problema.
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É a própria ordem física da terra que apresenta limites intransponíveis para um usufruto universal do nível de vida alcançado pelas áreas privilegiadas do sistema.
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O Clube de Roma já em 1971 havia projetado para o futuro os limites do desenvolvimento, e aquelas previsões resultaram bem fundamentadas.
- O petróleo estava acabando,
- o gás natural, o carvão estavam prestes a mudar o clima,
- as águas potáveis estavam prestes a diminuir e as águas do mar a se elevar,
- as taxas de poluição estavam prestes a atingir níveis catastróficos.
Contra o mito do progresso ilimitado, a consciência da escassez estava abrindo caminho.
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Na nova situação criada após 1989, a guerra devia ser restaurada, resgatada de seu exílio, eticamente resgatada e novamente enfeitada e adornada como uma noiva – Raniero La Valle – Tweet
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Os anos 1990, após o fim da URSS, são os anos em que as grandes potências que ainda restaram se deparam com essas alternativas, essas escolhas.
- Há correntes que empurram para uma reestruturação equitativa de todas as relações mundiais, que postulam a paz, a justiça e a proteção da criação,
- há as teologias da libertação da América Latina,
- há os pacifistas,
- há os relatórios de agências intergovernamentais sobre o clima que denunciam os perigos e que levam para aqueles primeiros resultados
- que serão a Conferência do Clima do Rio e o Tratado de Kyoto;
- na cúpula de Roma em 1996, a FAO ainda se ilude achando que pode reduzir pela metade a fome no mundo até 2015.
Mas o sistema faz outra escolha.
Se o mundo não pode manter tudo em pé, então que seja garantida apenas uma parte, a sua própria.
- O capitalismo vencedor não pode se retirar e reentrar nas velhas fronteiras do Primeiro Mundo,
- continuará a abarcar o mundo inteiro, mas com uma estratificação, uma hierarquia, uma grande seleção, uma realista desigualdade;
- há um mundo a salvar e um mundo a perder, os privilegiados e os excluídos, os necessários e os sobressalentes;
- ou seja, nós e eles, aqueles que o Papa Francisco um dia chamará de “descartados“.
Afinal, a fórmula havia sido enunciada por Spencer, o promotor oitocentista da sociedade da utilidade, da “sociedade militar e industrial”, e era assim anunciada em seu “Sistema de filosofia sintética“:
- os homens são como que submetidos a um juízo de Deus;
- “se eles realmente estiverem em condições de viver, eles vivem, e é justo que vivam. Se não estiverem realmente em condições de viver, morrem, e é justo que morram”.
O darwinismo social. Este é o ponto de queda a que chega todo o curso histórico.
Se o mundo devia permanecer petrificado em sua injustiça constitutiva, se a guerra se tornava o meio universal para gerir todo tipo de contradições ou de crises, e se a existência de uma única superpotência militar significava que a guerra permanecia prerrogativa e recurso de apenas uma parte, aos outros nada mais sobrava exceto o terrorismo – Raniero La Valle
- Mas um mundo desse tipo não se garante sozinho.
- Deve ser mantido sob controle com mão de ferro.
O grande problema que se abre com o fim da ordem bipolar e o desaparecimento da URSS é o problema do governo do mundo.
- A ideia é que é preciso ser estabelecido um soberano universal, e este só pode ser os Estados Unidos
- porque, como acabou explicando Brzezinski, o ex-conselheiro de segurança nacional de Carter,
- não há alternativa senão os EUA à anarquia global.
Em abril de 1992, as “diretrizes” para a política de defesa dos Estados Unidos formalizaram a nova doutrina.
- “É preciso evitar que qualquer potência hostil – dizem eles – domine regiões cujos recursos lhe permitiriam ter acesso ao status de grande potência”;
- é preciso “impedir a ascensão de um futuro concorrente global”;
- é preciso “dissuadir os países industriais avançados de qualquer tentativa que objetive desafiar a nossa liderança”,
isto é, a liderança estadunidense: e isso valia também para a Europa.
E em 1998 a direita estadunidense apresenta o projeto de tornar o novo século um “novo século estadunidense”.
Claro,
- também era necessário manter as cartas nas mãos para a última rodada sobre a repartição e uso dos recursos em via de esgotamento,
- mas acima de tudo era necessário o mais rápido possível reapropriar-se do instrumento soberano do governo do mundo: a guerra.
A guerra, no início da década de 1990,
- não só era banida pelo direito, repudiada pelas Constituições,
- mas desfrutava de descrédito e repulsa unânimes na opinião pública mundial.
A guerra, agora identificada com a guerra nuclear, era considerada o mal absoluto, até mesmo pelos governantes.
A guerra fria era travada para evitar a guerra.
- As políticas do Ocidente eram todas políticas de paz,
- até mesmo os mísseis eram colocados pela paz,
- a “razão” da corrida pelo rearmamento nuclear era a dissuasão da guerra nuclear.
A guerra era o terror; a paz era o equilíbrio do terror, era a dissuasão: isto é, afastar o terror com o terror.
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Mas na nova situação criada após 1989, a guerra devia ser restaurada, resgatada de seu exílio, eticamente resgatada e novamente enfeitada e adornada como uma noiva.
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A ocasião foi proporcionada pelo Iraque e sua disputa com a Arábia Saudita e os outros países da Opep sobre o preço do petróleo, que havia caído a míseros US $ 12 o barril.
Confiando no fato que a guerra não se usava mais, o Iraque ocupou o Kuwait. Este crime foi fatal.
- O Muro de Berlim havia sido removido há um ano,
- a URSS não estava mais em condições de deter o Ocidente.
E Bush pai fez a guerra; ele a fez por duas razões;
- a primeira, como ele explicou mais tarde em suas memórias, porque não era possível permitir que as reservas de petróleo do Oriente Médio caíssem sob o controle de uma potência hostil; e foi a primeira guerra pelo petróleo:
- e a segunda e mais importante razão foi restabelecer o direito de guerra exercendo-o em nome daquelas mesmas Nações Unidas que o haviam revogado;
- e aquela de 1991 foi a guerra para reabilitar a guerra aos olhos da opinião pública ocidental.
Demorou alguns meses não apenas para preparar o exército, mas para desenvolver uma imponente campanha de persuasão;
- tratava-se de inverter o sentimento comum que Paulo VI havia, quinze anos antes, proclamado de maneira icástica da tribuna da ONU: nunca mais a guerra.
- E, de fato, João Paulo II se opôs à guerra.
Em 1999 foi a vez da Iugoslávia. A guerra já havia sido chamada de volta ao serviço, estava “livre para o exercício”.
- Também para aquela guerra se falou de petróleo, da necessidade de abrir um corredor para os oleodutos do Cáspio.
- Mas o verdadeiro motivo foi político.
A razão
- foi de sair da ordem das Nações Unidas, onde a guerra ainda estava formalmente banida, e em todo caso sujeita a limites e condições,
- e entrar, agora sem mais hesitações, na ordem da OTAN;
A OTAN tornava-se a nova comunidade internacional, a parte para o todo, assumia prerrogativas soberanas, investia-se do direito e do poder soberano de guerra. Para fazer isso, mudava seus estatutos.
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Terrorismo e guerra foram assimilados como duas variáveis do mesmo modelo, como dois substitutos do mesmo bem perdido: a política – Raniero La Valle – Tweet
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Em 24 de abril de 1999, na Cúpula do Atlântico em Washington,
- a OTAN mudava de finalidade e natureza,
- declarava não mais operantes os limites dos artigos 5º e 6º de seu Estatuto que restringiam a hipótese de uso da força armada para defesa contra agressões,
- e portanto também quebrava os limites da art. 51 da Carta da ONU;
além disso, a NATO
- infringia os limites da sua competência territorial
- e atribuía para si o mundo inteiro como campo de ação;
- teorizava a paz e a segurança não mais como indivisíveis para todos, mas apenas para si e para os 19 países membros,
- e identificava novas ameaças à segurança:
terrorismo, sabotagem, crime organizado, interrupção de abastecimentos, movimentos migratórios, fatores políticos, econômicos, sociais , ambientais, rivalidades étnicas e religiosas, reformas mal concebidas ou fracassadas, violação de direitos humanos, dissolução de Estados.
Pela primeira vez, o recurso às armas, ou seja, a guerra, era contemplada como uma resposta a crises políticas, sociais, econômicas e religiosas de todo tipo. Não é por acaso que a primeira das novas ameaças à segurança era identificada no terrorismo.
Esta última era uma profecia destinada a se autorrealizar.
- Se o mundo devia permanecer petrificado em sua injustiça constitutiva,
- se a guerra se tornava o meio universal para gerir todo tipo de contradições ou de crises,
- e se a existência de uma única superpotência militar significava que a guerra permanecia prerrogativa e recurso de apenas uma parte,
- aos outros nada mais sobrava exceto o terrorismo.
Desse modo, terrorismo e guerra foram assimilados como duas variáveis do mesmo modelo, como dois substitutos do mesmo bem perdido: a política.
A confirmação chegou bem rapidamente, em 11 de setembro de 2001, com os atentados ao Pentágono e às Torres Gêmeas.
O jovem Bush imediatamente os reconheceu como atos de guerra. E, de fato, respondeu com a guerra, porque esta agora havia se tornado a única linguagem da política.
Assim nascem
- as guerras e a invasão do Afeganistão que duraram até agora,
- e imediatamente após a segunda Guerra do Golfo, que culminou na destruição do Iraque e na morte de Saddan Hussein,
- com base na mentira, depois oficialmente reconhecida pelo relatório Chilcot do Parlamento britânico e do próprio Tony Blair, sobre a ameaça de armas de destruição em massa.
E em 2002
- o delírio teorizado pela direita neoconservadora de que a segurança estadunidense estava no domínio do mundo,
- era formalizada na “Nova Estratégia da Segurança Nacional dos EUA” que enriquecia com armas espaciais os arsenais à disposição da Casa Branca.
É tudo isso que acabou
- no neoisolacionismo de Trump, na ideologia do “America First“,
- no “debâcle” de Biden, no abandono estadunidense do Afeganistão e na tragédia dos detidos e deixados no aeroporto de Cabul.
E é daqui que deve começar a outra resposta, que de outra forma deve envolver todos os atores que atuam no cenário mundial, estados e povos,
- dos Estados Unidos à China,
- dos curdos aos palestinos,
- dos judeus aos muçulmanos;
é neste contexto que
- surge a proposta universal e inclusiva do Papa Francisco,
- a sua proposta de uma fraternidade humana na pluralidade de direito divino das religiões,
- e é aqui que surge a proposta laica de recomposição da sociedade humana sob a soberania do direito, de uma Constituição da Terra.
jornalista e ex-senador italiano
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