
Por Boaventura de Sousa Santos – 25/08/2021 – Foto: DAQUI
Na queda de Cabul, há mais que colapso militar e humanitário. Há o declínio de um Ocidente que praticou a epistemologia da ignorância – o desprezo pela sabedoria do outro; a ideia de que, dela, basta conhecer o que sirva para subjugá-la
A retirada abrupta e caótica dos EUA do Afeganistão em meados de agosto enche os noticiários de todo o mundo.
Os temas principais variaram, mas os seguintes foram dominantes:
- humilhação para os EUA e aliados europeus;
- repetição da retirada do Vietnã em 1975;
- missão cumprida segundo os EUA, missão fracassada segundo os aliados pela voz de Angela Merkel;
- a fuga desesperada dos afegãos que colaboraram com os aliados;
- o perigo iminente para os direitos das mulheres se a sharia for imposta como decorre da interpretação do Islã pelos talibã;
- mais de dois triliões de dólares gastos numa missão contra os terroristas para, vinte anos mais tarde, eles entrarem triunfalmente e sem qualquer resistência no palácio presidencial,
- e agora já não como terroristas mas como uma força política com a qual os EUA, a principal força militar no Afeganistão, assinou um acordo em Fevereiro de 2020,
- depois de mais de um ano de negociações em Doha.
Fruto desse acordo
- , os EUA comprometiam-se em retirar as forças militares em 14 meses,
- um fato que passou despercebido a muitos, por o acordo ter acontecido quando irrompeu a pandemia da COVID-19.
Tudo isto é dramático, mas é, além disso, incompreensível.
Como a espuma dos noticiários é para ver e não para compreender, diz-nos pouco sobre a turbulência profunda que a provoca.
A compreensão exige neste caso um recuo histórico e uma crítica epistemológica. Ou seja,
- é preciso recuar no tempo e reavaliar a história à luz de uma epistemologia que nos permita conhecer o lado da história que ficou oculto
- e é agora precioso para compreender o que se passa no Afeganistão.
Procurarei mostrar que há continuidades intrigantes com tudo o que se passou e como foi narrado no mundo eurocêntrico a partir do século XVI com a expansão colonial.
Dissimulação da verdade
A expansão marítima europeia do século XV em diante foi legitimada pelo desejo e pela missão de propagar a fé cristã. A Igreja Católica foi uma presença constante e decisiva.
Sob a sua égide,
- o mundo a achar foi dividido entre Portugal e a Espanha,
- e foi também ela que legitimou a submissão dos índios ao declarar em 1537 (na bula Sublimis Deus do Papa Paulo III)
- que os índios eram seres humanos com alma e, portanto, seres não só necessitados, mas também capazes de ser evangelizados.
Sem pôr em causa a boa fé dos muitos milhares de missionários que participaram nesta missão de salvar os índios para o outro mundo, sabemos bem que o objetivo primordial desta missão era bem mais prático e mundano:
a salvação neste mundo dos europeus por via da prosperidade econômica que adviria do acesso às riquezas naturais do chamado Novo Mundo.
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É, pelo menos, muito duvidoso que a missão evangelizadora tenho sido benéfica para os índios, mas não restam dúvidas de que a missão da pilhagem das riquezas permitiu o desenvolvimento que o mundo eurocêntrico do Atlântico Norte hoje ostenta.
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- Na queda de Cabul, há mais que colapso militar e humanitário.
- Há o declínio de um Ocidente que praticou aepistemologia da ignorância– o desprezo pela sabedoria do outro;
- a ideia de que, dela, basta conhecer o que sirva para subjugá-la
Semelhantemente, segundo as autoridades norte-americanas, os EUA invadiram o Afeganistão para neutralizar o terrorismo de que tão barbaramente tinham sido vítimas com o ataque às Torres Gêmeas em 2001. E porque Osama Bin Laden foi morto, a missão foi cumprida.
A verdade é outra.
Os terroristas que atacaram as Torres Gémeas eram oriundos de 4 países:
- quinze eram cidadãos da Arábia Saudita,
- dois dos Emirados Árabes Unidos,
- um era libanês
- e um outro egípcio.
Nenhum deles do Afeganistão.
Bin Laden, o chefe da Al-Qaida, ele próprio saudita, esteve anos escondido, não neste país, mas no Paquistão e, de fato, bem perto da Academia Militar paquistanesa.
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O interesse dos EUA em intervir no Afeganistão vinha dos anos 1990 e foi então justificado com a necessidade de construir e proteger o gasoduto que, vindo do Turquemenistão à Índia, passando pelo Afeganistão e pelo Paquistão, resolveria as carências de energia da Ásia do Sul (gasoduto conhecido por TAPI, as iniciais dos países envolvidos).
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Foi o mesmo motivo de sempre:
- garantir o acesso aos recursos naturais
- e, em tempos mais recentes, impedir o controle da China e da Rússia.
Por isso,
- ao mesmo tempo que se desencadeava uma violência macabra (cerca de 200.000 afegãos mortos entre militares e civis),
- se gastavam milhões de dólares, grande parte deles devorados pela corrupção, e supostamente se eliminavam os Talibã,
- mantinham-se negociações (primeiro, secretas e depois, oficiais) com alguns grupos Talibã.
É, pois, ridículo falar de missão cumprida na luta contra o terrorismo.
A missão parcialmente cumprida
- é a do acesso aos recursos naturais,
- mas mesmo essa foi conseguida graças à intermediação da Índia e do Paquistão,
- e sem comprometer o acesso ao gás por parte da China e da Rússia.
Por outro lado,
- contra os interesses dos EUA, é a China quem emerge como ganhadora da crise afegã
- ao garantir a continuação do grande investimento, a Nova Rota da Seda na Ásia central.
Desde1945,
- os EUA acumulam derrotas militares,
- espalham a morte do modo mais terrível
- e nunca conseguem estabilizar governos amigos.
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Saída humilhante do Vietnã em 1975, desastrosa intervenção na Somália em 1993-94, retirada não menos humilhante do Iraque em 2011, destruição da Líbia em 2011. Mas quase sempre conseguem garantir o acesso aos recursos naturais, a única missão que importa cumprir.
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A ignorância como estratégia de dominação
A expansão colonial começou por ser um salto no desconhecido.
- Uma vez o salto dado, o que se quis conhecer dos povos e países invadidos foi apenas o que facilitasse a invasão.
- A perspectiva da penetração, da pilhagem, da eliminação/assimilação sobrepôs-se a tudo mais no investimento cognitivo feito pelos colonizadores.
- Tudo o que colidisse com tais perspectivas foi considerado como não existindo (civilização/cultura), irrelevante (técnica), atrasado ou perigoso (canibalismo, superstições).
Produziu-se, assim, uma imensa sociologia das ausências.
Com o tempo, as exigências de sempre (as tais perspectivas) obrigaram a um investimento cognitivo mais sofisticado, mas todo ele foi sempre orientado para os mesmos objetivos de dominação.
Assim surgiram a antropologia colonial, a medicina tropical, a história colonial, o direito colonial, etc.
O desconhecimento ocidental do Afeganistão é pasmoso.
Em artigo publicado em 2015 no Wilson Center e intitulado “America’s Shocking Ignorance of Afganistan”, Benjamin Hopkins mostra que
- as políticas ocidentais sobre o Afeganistão assentam ainda hoje nas ideias contidas num livro do primeiro embaixador britânico ao reinado do Afeganistão, Mountstuart Elphinstone, publicado em 1815.
- O autor tinha lido as narrativas de Tácito sobre as tribos germânicas
- e foi com base nisso e nas recordações dos clãs da sua Escócia natal que construiu todas as ideias da sociedade tribal afegã.
Segundo Hopkins, o mapa etnolinguístico militar do exército norte-americano é hoje pouco mais que uma atualização do mapa contido nesse texto de 1815. Assim se assumiu que
- o problema do Afeganistão não era político, mas sim etno-cultural,
- e que a cultura tribal era responsável pelo extremismo e pela corrupção.
Claro que o problema não está em salientar a importância da cultura, é ter dela uma concepção a-histórica e estereotipada.
- A ignorância da realidade afegã foi fundamental
- para conceber os afegãos como passivos recipientes das políticas ocidentais, do bloco soviético ou da NATO.
Os “peritos” sobre o Afeganistão eram peritos… em terrorismo. O reducionismo tribalista
- não permitiu ver que a sociedade afegã é hoje também uma sociedade de refugiados e globalizada.
- Mas permitiu justificar facilmente todo o tipo de intervenções que resultaram em trágicos fracassos.
A des-especificação do outro
Sabemos hoje que a complexidade das sociedades encontradas pelos colonizadores era diferente daquela que eles atribuíam às suas sociedades de origem e que, por esse fato, foram caracterizadas como sociedades simples, sem estruturas e instituições políticas.
O privilégio de caracterizar e de nomear o outro é talvez a mais genuína manifestação do poder colonial.
No jogo de espelhos que esse privilégio construiu,
- os povos colonizados foram descritos ao longo do tempo como selvagens, primitivos, atrasados, preguiçosos, sujos, subdesenvolvidos.
- O pressuposto destas caracterizações é que elas esgotam o que de relevante deve ser conhecido sobre os caracterizados.
- Assim, promovem e disfarçam a des-especificação dos seus objetos.
Com base nesta política de nomeação, as políticas coloniais encontraram durante séculos fácil justificação.
A partir da última invasão do Afeganistão, os afegãos foram divididos pelos invasores em duas categorias: terroristas e vítimas. Foi com base nelas que foram documentados, vigiados e bombardeados.
- Em nenhum momento (exceto para proteger o acesso aos recursos naturais)
- puderam ser considerados como interlocutores válidos ou como populações e gerações com aspirações e necessidades diferenciadas.
Seguindo estas premissas, o que se promoveu foi o conhecimento sobre os afegãos, nunca o conhecimento com os afegãos.
A produção ativa de ignorância foi fundamental para justificar
- as definições,
- representações
- e teorizações
que subjaziam às políticas de intervenção.
O Afeganistão foi visto como um imenso depósito de terrorismo. E na guerra contra o terrorismo só interessa identificar e eliminar terroristas. Tudo o resto é “collateral damage” – (dano colateral – NdR).
Tal como no projeto colonial, o importante foi impedir os afegãos de caracterizar o seu país nos seus próprios termos e de reivindicar um futuro segundo as suas aspirações.
Know-how tecnológico contra a sabedoria
O conhecimento tecnológico assenta na compreensão e transformação da realidade com base em fenômenos observados sistematicamente e com desprezo e ignorância por fenômenos não observados.
O que desde o século XVIII se considera progresso social é um produto do conhecimento tecnológico.
- A sabedoria não se opõe necessariamente ao conhecimento tecnológico,
- mas subordina-o à compreensão e à promoção do valor da vida, tanto individual como colectiva,
- para o que é necessário ter em conta tanto os fenômenos observados como os não-observados.
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O conhecimento ocidental, sobretudo quando ao serviço da expansão colonial, foi sempre um conhecimento tecnológico militantemente contra a ideia de sabedoria. As consequências disso estão bem patentes nos epistemicídios e linguicídios (a destruição do conhecimento dos colonizados) e nos genocídios cometidos ao longo de séculos.
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No Afeganistão, a vertigem tecnológica atingiu o paroxismo, deixando no terreno mais de 200.000 mortos e uma pletora de novos especialistas em novas tecnologias de destruição. Uma das áreas mais macabras é a dos drones.
Num texto publicado a 16 de Março de 2021 na revista Jadaliyya, Anila Daulatzai e Sahar Ghumkhor
- mostram como os afegãos, tal como os somalis, os iemenitas, os iraquianos e os sírios,
- são caracterizados na nova especialidade científica interdisciplinar, “a cultura dos drones”…
- com o objectivo de gerar diálogos entre as disciplinas de compreender a diversidade dos drones e da cultura dos drones”.
No contexto do Afeganistão, que tem servido muito ao crescimento da especialidade,
- estamos perante uma tecnologia de morte elevada à dignidade de epistemologia,
- um edifício científico na base do qual só há morte e ruína.
É difícil imaginar em tempos recentes outro tema em que o know-how tecnológico e a sabedoria se desconhecem tão completamente.
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Boaventura de Sousa Santos
Fonte: https://outraspalavras.net/eurocentrismoemxeque/boaventura-o-colonialismo-amarga-a-licaoafega/
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