Aude Martin – 29 Junho 2021 – Foto: DAQUI
A entrevista é de Aude Martin, publicada por Alternatives Économiques, 26-06-2021. A tradução é de André Langer.
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Camille Macaire, pesquisadora associada do CEPII (Centre d’Etudes Prospectives et d’Informations Internationales – Centro de Estudos Prospectivos e de Informações Internacionais) e coautora com Michel Aglietta e Guo Bai de um artigo sobre o 14º plano quinquenal chinês, volta a tratar, nesta entrevista, das intenções contidas neste programa, em particular o desejo de um reequilíbrio entre o consumo interno e a demanda externa que, até então, norteou a estratégia do Império do Meio.
Eis a entrevista.
Em março, a China divulgou seu 14º plano que define a estratégia do Partido Comunista Chinês para os próximos cinco anos. Por que este documento merece ser examinado?
A China propõe um plano estratégico a cada cinco anos, detalhando suas principais orientações de política econômica.
- A ausência de ciclos eleitorais no país permite que o poder em exercício tenha uma visão mais ampla
- e dá credibilidade ao exercício.
- Esta é, portanto, uma boa indicação da estratégia de desenvolvimento que será implantada por Pequim no médio prazo.
Através desses planos, o Estado chinês, que desempenha um papel muito importante na economia, estimula uma dinâmica reforçada por um efeito cascata sobre os atores privados porque a ação do governo tem um forte efeito de sinalização.
- Se o desenvolvimento de uma determinada indústria for incentivado, as empresas privadas verão isso como uma oportunidade e se envolverão.
- Esse efeito de alavanca, que fortalece a ação pública, é particularmente poderoso na economia intervencionista chinesa, uma vez que os relés do Partido Comunista podem ser encontrados nas próprias empresas.
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Essencialmente, os planos quinquenais são longos manifestos políticos, mas permanecem relativamente vagos quando se trata de detalhes operacionais concretos.
Isso dá às autoridades margens de manobra para ajustar o caminho da reforma, se necessário, sem comprometer sua credibilidade.
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Fato importante a ser destacado:
- pela primeira vez, a China não incluiu uma meta de crescimento em seu plano quinquenal.
- No contexto de graves perturbações relacionadas à Covid, o exercício de previsão sem dúvida teria sido perigoso.
- Mas esta escolha é também representativa de uma tomada de consciência por parte das autoridades de que a corrida pelo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) pode ser feita em detrimento de outros objetivos, nomeadamente ecológicos e sociais.
Um fenômeno acentuado no caso chinês pela gestão descentralizada da política econômica pelas províncias chinesas, estimuladas a competir pelo maior crescimento. Entretanto, o governo chinês não está defendendo o decrescimento!
A meta de dobrar o PIB entre 2021 e 2035, anunciada por Xi Jinping no final de 2020, ainda é relevante e implica em uma taxa de crescimento próxima a 5% ao ano em média até lá.
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O objetivo, de acordo com a retórica chinesa, é, in fine, alcançar o status de “grande país socialista moderno” até 2049, ano do centenário da fundação da República Popular da China.
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Em que se baseará a estratégia chinesa até 2026?
A China planeja uma mudança estrutural de seu modelo econômico,
- passando de um amplo crescimento baseado nas exportações
- para um modelo baseado ao mesmo tempo na demanda externa e no consumo interno.
Esse reequilíbrio é um pilar muito forte do novo plano quinquenal.
Paradoxalmente, essa mudança não acontecerá por força das políticas de apoio direto à demanda. Mesmo no auge da crise pandêmica, quase não havia qualquer medida de apoio ao consumo no país. Em vez disso,
- a China depende da formação dos trabalhadores e da inovação para que os salários aumentem
- e, portanto,in fine que o poder de compra dos consumidores chineses melhore.
- O fortalecimento da demanda interna, portanto, exigirá, antes de mais nada, uma política industrial que fomente produtos mais sofisticados,
- o que também beneficiará o posicionamento da China no comércio mundial.
Este é o conceito de “dupla circulação” descrito pelas autoridades chinesas.
- Para isso, está previsto um aumento nos gastos com pesquisa e desenvolvimento (P&D) de 7% ao ano.
- Este é um ritmo relativamente alto, mas que representa na realidade para a China uma continuidade da trajetória recente.
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O objetivo é modernizar a indústria tradicional, garantindo o fortalecimento das atividades de ponta. Vários setores foram identificados como estratégicos, com o objetivo de aumentar sua participação no valor agregado do país de 11% para 17% nos próximos cinco anos.
Isso inclui, entre outras, as tecnologias da informação, as energias renováveis, mas também as neurociências, a indústria espacial e as biotecnologias.
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Assim, apesar do desejo de reequilibrar a economia em prol do consumo, a China ainda não busca tornar-se uma economia de serviços. Ela continua ciente de que a indústria é sua principal força econômica.
Em outra área,
- a guerra comercial e tecnológica dos últimos anos com Washington também influenciou sua estratégia.
- Pequim tem provas de que sua dependência externa cria vulnerabilidades, por exemplo, no setor de semicondutores.
Para remediar isso, a China busca, portanto, um novo posicionamento nas cadeias de valor globais, a fim de garantir sua autossuficiência tecnológica.
Pequim também quer acompanhar e apoiar a migração para as cidades, onde a produtividade do trabalho é considerada como melhor. O plano prevê o aumento da taxa de urbanização para 65% em 2025, contra 60% hoje. Para isso, a reforma do “hukou” terá que continuar.
- Este tipo de passaporte permite a qualquer cidadão chinês reivindicar direitos sociais,
- mas está vinculado a um determinado território, o que limita fortemente a mobilidade da mão de obra.
As autoridades desejam, portanto, torná-lo mais flexível e, assim, facilitar o acesso aos serviços sociais nas grandes cidades.
Para realmente provocar o surgimento de uma classe média, a China terá que fortalecer suas políticas sociais. O que podemos esperar a esse respeito?
O Partido tem um desejo claro de fortalecer as redes de segurança social, mas o plano não apresenta um roteiro concreto.
- Em um país de quase um bilhão e meio de habitantes, tal reforma seria de fato muito cara
- e correria o risco de entrar em contradição com a política fiscal conservadora das autoridades.
Esse componente social poderia ser reduzido ao desenvolvimento por meio do setor privado, o que levará tempo.
Podemos esperar um fechamento da China nos próximos anos?
A China não está planejando se fechar para o resto do mundo. Ela pretende continuar a ser um ator importante no comércio mundial, mas definitivamente já não quer ser a fábrica do mundo.
Em vez disso, sua estratégia visa alterar a composição de suas importações e exportações.
- O desafio é conseguir importar menos produtos de alta qualidade à medida que aprende a produzi-los ela mesma.
- Para as exportações, a tendência é inversa, pois a ambição é reduzir a participação de setores de baixo valor agregado, como o setor têxtil, por exemplo, em favor de produtos de maior conteúdo tecnológico.
Além de seu plano de se posicionar no comércio mundial, a China também busca fortalecer sua influência e seu poder em nível internacional.
Esse eixo se estrutura em torno de um projeto geopolítico que visa transformar os contornos da globalização: as novas rotas da seda.
- Alguns denunciam um desejo hegemônico da China e é provável que se usem táticas de pressão sobre alguns países,
- mas também se deve observar que o rápido desenvolvimento da China está criando uma emulação na região.
As autoridades prometem um desenvolvimento que as grandes potências desenvolvidas, segundo elas, sempre falharam em alcançar. Sua retórica é forte.
- Além de uma integração regional muito marcada no Sudeste Asiático, a China se posiciona como líder de todos os países emergentes, onde quer que estejam situados.
- Para isso, ela fortalece seus laços comerciais e diplomáticos em todos os lugares.
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Sinal da sua crescente influência, ela se tornou o maior credor do mundo, o que lhe confere um peso geopolítico muito importante. E se defende oficialmente o multilateralismo, também busca criar novos polos, bancos de desenvolvimento, por exemplo, fora de qualquer influência ocidental e principalmente americana.
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O objetivo é modernizar a indústria tradicional, garantindo o fortalecimento das atividades de ponta. Vários setores foram identificados como estratégicos, com o objetivo de aumentar sua participação no valor agregado do país de 11% para 17% nos próximos cinco anos.
Na questão ambiental, a China surpreendeu no ano passado ao anunciar que pretendia atingir a neutralidade de carbono até 2060. Os objetivos definidos no plano quinquenal correspondem a essa ambição?
O desenvolvimento extremamente rápido da China durante várias décadas ocorreu em detrimento das questões ambientais.
- Consequentemente, o nível de poluição é tão alto hoje que tem sérias implicações sobre a saúde pública.
- As autoridades perceberam a gravidade da situação, e a transição energética tornou-se um objetivo fundamental da estratégia de desenvolvimento.
- O conceito de “civilização ecológica” foi incorporado à Constituição chinesa em 2018.
O novo plano quinquenal estabelece várias metas:
- uma redução na intensidade energética (a quantidade de energia necessária por unidade de PIB) de 13,5%
- e na intensidade de carbono (a quantidade de emissões necessárias por unidade de PIB) de 18% até 2025.
O objetivo é, portanto, reduzir o uso de energia e tornar a matriz energética menos poluente. Estes objetivos, alinhados com os desenvolvimentos efetivamente observados nos últimos cinco anos, não parecem ser muito ambiciosos.
Alcançar a neutralidade de carbono em 2060 é um enorme desafio que parece ser difícil de alcançar, já que a China está partindo de muito atrás.
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O país é o maior emissor de dióxido de carbono do mundo, responsável por quase um terço das emissões globais, e sua matriz energética ainda é muito intensiva em carbono, já que o carvão ainda responde por cerca de 60% do consumo de energia. Com o plano quinquenal, o novo curso está amplamente confirmado.
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Quais são os eventuais pontos fracos que podem bloquear a China em sua estratégia?
* Em primeiro lugar, um risco financeiro.
- Os atores econômicos estão altamente endividados, em níveis próximos aos observados nas maiores economias desenvolvidas.
- Em 2020, a dívida dos atores privados chineses representava 222% do PIB, contra 185%, em média, nos países desenvolvidos.
- Além disso, no setor financeiro, há uma fragilidade institucional e mecanismos de controle pouco confiáveis para avaliar a extensão dos riscos.
A fraca cultura de transparência do regime chinês impede-nos, a partir da Europa, de ter um quadro completo, mas as autoridades também agem parcialmente às cegas nesta área.
- Ao mesmo tempo, graças a um modelo até então amplamente baseado nas exportações,
- a China acumulou grandes estoques em moeda estrangeira
- que lhe proporcionam um colchão de segurança confortável para responder com eficácia em caso de crise financeira.
* A outra fraqueza da China é o envelhecimento de sua população.
É ainda mais rápido do que o esperado, como mostrou o censo divulgado este ano. As autoridades estão cientes disso, mas estão lutando para reverter a tendência.
O Partido Comunista
- acaba de autorizar os casais a ter até três filhos, contra apenas dois desde o fim da política do filho único em 2015,
- mas não é certo que isso seja suficiente, dados os obstáculos significativos à taxa de natalidade que permanecem no país.
Para citar apenas alguns: os custos dos estudos ou dos imóveis e a falta de uma verdadeira política familiar.
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Consequentemente, a escassez de mão de obra pode se materializar com o tempo e o vazio que aparecer na pirâmide etária corre o risco de ser usado como uma justificativa para um atraso na idade da aposentadoria.
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Quais são as implicações dessa nova estratégia chinesa para o resto do mundo? Mais especificamente para a Europa?
No lado do comércio internacional, o aumento da escala chinesa ocorrerá em detrimento de alguns de seus fornecedores históricos.
- Na Europa, os setores aeronáutico e automotivo podem ser afetados.
- A Alemanha está particularmente exposta.
- Mesmo que o setor industrial chinês ainda esteja longe de ser capaz de fornecer automóveis no nível dos produzidos na Alemanha, o avanço tecnológico pode ser bastante rápido.
Além disso,
- à medida que a China ganha peso no cenário financeiro internacional e fortalece seus laços diplomáticos com os países emergentes,
- ela adquire um poder de negociação cada vez mais importante em questões de coordenação ou de definição de padrões e normas internacionais.
Vimos isso recentemente na questão do tratamento da dívida dos países em desenvolvimento.
Em apenas alguns anos,
- ela tornou-se o principal credor bilateral do mundo
- e desempenhou um papel importante nas discussões com os países desenvolvidos
- destinadas a encontrar maneiras de aliviar o fardo da dívida dos países mais pobres para enfrentar a pandemia com maior margem de manobra orçamentária.
Por fim, a China já iniciou uma reaproximação diplomática com alguns países da Europa.
As consultas acontecem no âmbito da iniciativa “17 + 1”, também conhecida como cúpula China-PECO (Países da Europa Central e Oriental), que a liga aos países europeus participantes. Esta operação pode deslocar o tropismo de alguns desses países para o leste, embora isso esteja nos estágios iniciais por enquanto.
A União Europeia, que designou a China como “rival sistêmico”, deve permanecer vigilante porque Pequim está estabelecendo uma série de marcos que, certamente, não lhe permitem colher frutos imediatamente, mas abrem perspectivas de longo prazo.
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Aude Martin
Fonte: Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/610590-a-china-planeja-uma-mudanca-de-modelo-economico-entrevista-com-camille-macaire
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