
Sai no Brasil livro de pensador chinês que convida a superar fatalismo diante da tecnologia. Ele sugere reivindicar, contra a concepção linear e única de progresso típica do eurocentrismo, um mundo em que muitas cosmotécnicas sejam possíveis.
O texto a seguir é o prefácio, redigido pelo autor, para
TECNODIVERSIDADE – De Yuk Hui, publicado pela Ubu, parceira editorial de Outras Palavras
disponívei no site da Ubu
Os ensaios que compõem este livro foram publicados independentemente, mas é possível organizá-los sob a mesma rubrica: a da tecnodiversidade, noção que venho desenvolvendo desde minha segunda monografia,
The Question Concerning Technology in China: An Essay in Cosmotechnics [A questão da técnica na China: Um ensaio sobre a cosmotécnica] (2016–19), e com a qual continuo trabalhando.
Uma investigação sobre a tecnodiversidade propõe rearticular a questão da tecnologia;
- em vez de entendê-la como um universo antropológico,
- precisaremos redescobrir uma multiplicidade de cosmotécnicas e reconstruir suas histórias
- para projetarmos no Antropoceno as possibilidades que nelas estão adormecidas.
O historiador britânico Arnold Toynbee levantou uma pergunta interessante nas Reith Lectures [Palestras Reith] da BBC: por que os chineses e os japoneses rejeitaram os europeus no século XVI, mas aceitaram que eles entrassem em seu país no século XIX?
Sua resposta foi que,
- no século XVI, o objetivo dos europeus era exportar tanto sua religião quanto sua tecnologia para a Ásia,
- mas, no século XIX, eles entenderam que seria mais eficiente exportar a tecnologia sem a cristandade.
Os países asiáticos aceitaram sem resistência a ideia de que a tecnologia
- era algo não essencial e de caráter instrumental,
- de que seus cidadãos eram “usuários” capazes de decidir como utilizar essas novas ferramentas.
Toynbee continua e afirma que
- “a tecnologia opera na superfície da vida e, por isso,
- parece possível adotar uma tecnologia estrangeira sem pôr em risco a possibilidade de reivindicar a titularidade de nossa alma.
- Essa noção de que, ao adotar uma tecnologia estrangeira, nos sujeitamos apenas a uma pequena dependência pode, é claro, ser um engano”.
O que Toynbee diz é que
- a tecnologia em si mesma não é neutra,
- carrega formas particulares de conhecimentos e práticas que se impõem aos usuários,
- os quais, por sua vez, se veem obrigados a aceitá-las.
Alguém que desconsidere essas dinâmicas e subestime a tecnologia como manifestação meramente instrumental acabará adotando uma abordagem dualista. Essa falha de interpretação, esse engano, se tornou uma verdade necessária no século XX.
Tecnodiversidade – IHU/Pixabay
No século passado,
- as tecnologias modernas se espalharam pela superfície da Terra
- e, ao convergirem, deram corpo a uma noosfera no sentido dado ao termo por Pierre Teilhard de Chardin;
- a competição tecnológica definiu a geopolítica e a história.
A vitória japonesa sobre a Rússia na Guerra Russo-Japonesa (1904-05) levou à lamentação formulada pelo pensador reacionário alemão Oswald Spengler de que
- o maior erro cometido pelos brancos na virada do século
- foi ter exportado suas tecnologias para o Oriente
- – o Japão, de início um estudante, agora se tornava professor.
Essa “consciência tecnológica” persistiu ao longo do século XX e foi marcada
- pela bomba atômica,
- pela exploração espacial,
- e hoje se manifesta na inteligência artificial.
Recentemente, alguns comentadores declararam que
- havíamos entrado em uma nova era axial
- inaugurada por um desenvolvimento tecnológico mais equilibrado
– em outras palavras,
- uma era em que as conquistas tecnológicas do Oriente
- parecem ter revertido o movimento unilateral que ia do Ocidente para o Oriente.
Essa também é a causa do sentimento neorreacionário que vemos hoje no Ocidente.
Para avançarmos, talvez seja interessante
- ressituar esse discurso da nova era axial
- como o surgimento de um momento crítico para a reflexão sobre o futuro da tecnologia e da geopolítica.
Essa avaliação crítica exige a rearticulação da questão da tecnologia.
Podemos suspeitar que tem havido um engano e um desconhecimento quanto à tecnologia nos últimos séculos,
- já que ela tem sido vista como algo não essencial e de caráter meramente instrumental
- – mas, de modo mais significativo, como homogênea e universal.
Esse universalismo favorece uma história tecnológica fundamentalmente europeia. Nos textos aqui reunidos, procuro mostrar que
- a maneira pela qual os avanços tecnológicos vêm sendo percebidos na filosofia, na antropologia e na história da tecnologia é bastante discutível
- e que a apreensão de novas visões sobre o tema e a reflexão sobre outros futuros possíveis são agora um imperativo.
Em seu âmago, essa busca é um projeto de descolonização que se distancia de maneira consciente do pós-colonialismo.
A modernização como globalização
- é um processo de sincronização que faz com que diferentes tempos históricos convirjam em um único eixo de tempo global
- e prioriza tipos específicos de conhecimento como força produtiva principal.
Esse processo de sincronização é possibilitado pela tecnologia, e é também nesse sentido que entendemos aquilo que Heidegger afirma em “O fim da filosofia e a tarefa do pensar”, de 1964, no sentido de que
“o fim da filosofia revela-se como o triunfo do equipamento controlável de um mundo técnico-científico e da ordem social que lhe corresponde. Fim da filosofia quer dizer: começo da civilização mundial fundada no pensamento ocidental-europeu”1.
O fim da filosofia é assinalado pela cibernética
- e, para além disso, também traz implícita a ideia de que a civilização e a geopolítica globais
- estavam dominadas pelo pensamento ocidental-europeu.
Para que consigamos nos afastar dessa sincronização, ao que tudo indica,
- teremos de exigir uma fragmentação que nos libertará de um tempo histórico-linear
- definido em termos de pré-moderno / moderno / pós-moderno / apocalipse.
A maneira como vemos a tecnologia enquanto
- força exclusivamente produtiva e mecanismo capitalista voltado ao aumento da mais-valia
- nos impede de enxergar seu potencial descolonizador
- e de perceber a necessidade do desenvolvimento e da manutenção da tecnodiversidade.
Como o pensamento não europeu e o não moderno poderiam responder a esta época tecnológica senão com um apelo ao retorno à natureza?
Com meu conhecimento limitado sobre a América Latina, minha esperança é que este trabalho desperte uma curiosidade que leve a perguntas como:
- o que significa uma cosmotécnica amazônica, inca, maia?
- E, para além de formas de arte e de artesanato indígenas a serem preservadas,
- como essas cosmotécnicas poderiam nos inspirar a recontextualizar a tecnologia moderna?
Para isso, precisamos
- rearticular a questão da tecnologia
- e contestar os pressupostos ontológicos e epistemológicos das tecnologias modernas,
- sejam elas as redes sociais ou a inteligência artificial.
Quando propõe seu projeto transumanista, o filósofo Enrique Dussel enfatiza os diálogos transversais entre diferentes culturas a fim de criar uma solidariedade que inclua e respeite os pontos de vista da alteridade.
Dito de outro modo,
- as culturas não europeias podem aprender com a modernidade
- e, ao mesmo tempo, desenvolver uma visão crítica a partir de seus pontos de vista.
Somos obrigados, contudo, a perguntar: como um diálogo transversal desse tipo seria possível quando o mundo inteiro foi sincronizado e transformado por uma força tecnológica gigantesca?
Do ponto de vista da história da filosofia,
- a modernidade e a pós-modernidade, sendo discursos europeus,
- são descrições e respostas às condições tecnológicas europeias
- – ao mecanicismo e à cibernética, respectivamente.
Seria estranho se alguém que pretendesse superar a modernidade ou a pós-modernidade não se defrontasse com a tecnologia como um tema central.
Tenho a impressão de que
- devemos dar um passo além da crítica do eurocentrismo e do colonialismo do poder,
- porque, como verdadeiros materialistas, devemos reconhecer que esses vieses ontológicos e epistemológicos só sobrevivem e triunfam porque são concretizados (talvez até pudéssemos dizer embutidos) nas tecnologias,
- como na arquitetura de bancos de dados e de algoritmos, na definição de usuários e nos modos de acesso.
O capitalismo evolui ao investir em máquinas, ao se atualizar constantemente de acordo com os avanços tecnológicos e ao criar fontes de lucro na invenção de novos dispositifs.
Sem confrontarmos o conceito de tecnologia em si, dificilmente seremos capazes de preservar a alteridade e a diferença. Essa talvez seja a condição sob a qual poderemos pensar uma filosofia pós-europeia.
Se Heidegger afirma que
- o fim da filosofia significa o “começo da civilização mundial fundada no pensamento ocidental-europeu”
- e que tal final é marcado pela cibernética
- então o desconhecimento da tecnologia e a aceleração cega conduzirão apenas ao agravamento dos sintomas enquanto fingem tratá-los.
Há motivos legítimos para desconfiar
- do impulso prometeico tragista que afirma pôr fim ao capitalismo por meio da automação total,
- já que esse impulso tem como base uma falsa personificação do capitalismo,
- como se ele fosse uma pessoa idosa que será deixada para trás pelo avanço tecnológico.
Também não rejeitamos pura e simplesmente a ideia da aceleração, mas parece fazer mais sentido perguntar:
- que aceleração é mais rápida do que a de um desvio radical,
- a de um afastamento do eixo de tempo global,
- a que liberta nossa imaginação das amarras do futuro tecnológico vislumbrado pelas fantasias transumanistas?
Essa reabertura da história mundial só pode ser alcançada
- pela conversão dessa força tecnológica gigantesca em uma relação contingente
- e de seu reposicionamento como sujeito necessário de investigação e de transformação
- a partir das perspectivas de múltiplas cosmotécnicas.
Os artigos
- Sobre a consciência infeliz dos neorreacionários (2017),
- Cosmotécnica como cosmopolítica (2017),
- O que vem depois do fim do Iluminismo? (2019)
- Cem anos de crise (2020)
foram originalmente publicados no periódico digital e-flux.
Eles compõem uma série de textos que procura construir uma teoria política cujo ponto de partida é a tecnodiversidade. Os outros três artigos,
- “Máquina e ecologia”,
- “Variedades da experiência da arte”
- e “Sobre os limites da inteligência artificial”,
foram desenvolvidos a partir de três palestras proferidas ao lado de Bernard Stiegler em novembro de 2019, durante uma aula magna intitulada “What Art Can Do in the 21st Century” [O que a arte pode fazer no século XXI], na Universidade Nacional de Artes de Taipei. Desenvolvidas a partir do aprofundamento de alguns dos temas de Recursivity and Contingency [Recursividade e contingência], essas aulas são uma exploração daquilo que chamo de fragmentação.
Estive no Brasil em setembro de 2019 para uma jornada de palestras, e foi minha primeira visita à América Latina. Tenho lembranças muito agradáveis da acolhida calorosa que recebi de Ronaldo Lemos, Eduardo Viveiros de Castro, Hermano Vianna, Carlos Dowling, Aécio Amaral e de outros colegas, além das discussões intensas que tivemos.
Pensando sobre tudo isso agora, nestes tempos turbulentos que estamos vivendo, essa viagem já parece muito distante.
Minha breve estadia no Brasil
- só me permitiu dar uma espiada nessa realidade social e política bastante diferente,
- mas também confirmou a necessidade de pensar a descolonização a partir da perspectiva da tecnologia.
Espero que este livro seja apenas o começo de uma conversa bem mais profunda.
Hong Kong, setembro de 2020.
1Martin Heidegger, “O fim da filosofia e a tarefa do pensar”, in Conferências e escritos filosóficos, trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 271.
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