Frei Bento Domingues, O.P. – 19-07-20 – Foto: Daqui
De modo inesperado, surgiu Bergoglio e não se instalou no Vaticano. Com ele nascia a Igreja de saída, a Igreja fora de portas. …Para compreender o Papa Francisco, esqueça Roma e aponte para Lampedusa porque foi o local escolhido para a primeira viagem do Papa fora de Roma , a 8 de Julho de 2013.
Durou apenas quatro horas e meia, mas raramente um mero meio-dia na vida de um papado foi tão repleto de simbolismo e substância.
1. A palavra igreja é uma complicação. Começou por significar,
- no grego profano, assembleia política do povo.
- No grego bíblico, a palavra traduz diversos termos hebraicos
- e foi a preferida para designar as comunidades cristãs.
Era nesse sentido que se dizia: a Igreja que está em Jerusalém, em Antioquia, em Éfeso, etc. [1].
Eram comunidades que reconheciam, em Jesus de Nazaré testemunhado pelos seus discípulos, o Caminho que alterava todas as dimensões da vida humana.
Jesus nasceu e cresceu num judaísmo de várias tendências. Quando se tornou adulto,
- depois de tentar seguir o caminho reformista de João Baptista,
- teve uma experiência espiritual de tal intensidade que mudou radicalmente o rumo da sua vida [2].
- Pelas suas atitudes, gestos e parábolas introduziu uma revolução radical, teológica e antropológica, no judaísmo em que tinha sido formado.
Deus tinha sido metido na prisão das prescrições religiosas que, por sua vez, escravizavam os mais pobres e doentes através das suas intermináveis e sofisticadas interpretações. O Nazareno tentou destruir toda aquela casuística mediante duas evidências soberanas:
- Deus não quer sacrifícios, quer misericórdia;
- o Sábado — o dia sacralizado do judaísmo — é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado.
No entanto, a revolução das revoluções vem apontada em S. Mateus:
- “Ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’.
- Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” [3].
A lei da violência interminável pode ser vencida!
Foi por isso que o primeiro horizonte da missão de Jesus e dos seus discípulos
- não foram os gentios,
- mas “as ovelhas perdidas da casa de Israel” [4].
A revolução devia começar por casa. As grandes polémicas de Jesus com os dirigentes do seu povo são motivadas pelo Espírito das referidas evidências:
- não havia direito de carregar o povo com obrigações e proibições,
- quando eles dispunham de escribas e doutores que torciam as normas segundo os seus interesses.
Jesus não escreveu nada nem encarregou ninguém de escrever as suas memórias.
- Os primeiros escritos cristãos nem sequer se interessavam pelo itinerário que o condenou.
- O próprio S. Paulo — judeu fervoroso e cidadão romano — só queria testemunhar que Cristo não foi vencido pela crucifixão.
- Atribuiu a sua viragem, de perseguidor dos discípulos do Messias para se tornar o seu incansável apóstolo, a uma intervenção directa do Ressuscitado [5].
O centro da fé e do Evangelho que anunciava era este:
- Cristo crucificado ressuscitou.
- Está vivo e garante a esperança que vence a própria morte.
O que o movia nas viagens mais perigosas, até aos limites do mundo conhecido,
- era precisamente anunciar a judeus e gentios esta convicção.
- Era deste anúncio que nasciam mais comunidades cristãs que, por sua vez, suscitavam ainda outras.
- Os seus escritos são cartas para alimentar o fogo e resolver problemas e contendas que estavam sempre a surgir.
2. Os quatro Evangelhos nasceram, pelo contrário, no seio de várias comunidades com problemáticas e estilos de vida bastante diferentes.
- Era preciso figurar o itinerário terrestre de Jesus Cristo, pois, cada vez haveria menos pessoas que pudessem dizer:
- “Eu vi, eu sei como ele era, como vivia, como anunciava o Reino de Deus e como foi traído por discípulos, adversários e inimigos”.
Era fundamental deixar testemunhos para o presente, para o futuro, para todos aqueles que acreditassem mediante o testemunho dos discípulos.
O Quarto Evangelho termina, precisamente, com uma cena dedicada ao apóstolo Tomé, com estas espantosas palavras:
“Porque me viste, acreditaste; felizes os que não viram e acreditaram.”
Esta foi, é e será a condição dos cristãos de todos os tempos e lugares.
João, ao concluir a sua narrativa, não podia se mais claro:
- “Jesus fez, diante dos seus discípulos, muitos outros sinais ainda, que não se encontram escritos neste livro.
- Estes, porém, foram escritos para acreditardes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, acreditando, tenhais a vida eterna em seu nome.” [6]
Como escreveu Frederico Lourenço,
“na segunda metade do século I da era cristã, o manancial (já de si tão rico) de textos em língua grega veio a enriquecer-se ainda mais com o aparecimento de quatro textos que mudaram para sempre a História da Humanidade” [7].
Este exímio tradutor considera que
“são textos insubstituíveis porque falam de Jesus de Nazaré, a figura mais admirável de toda a História da Humanidade”.
No entanto,
- Jesus nasceu fora de portas,
- não teve onde reclinar a cabeça
- e foi morto fora das portas de Jerusalém.
3. O ressuscitado não abandonou o mundo. Prometeu uma presença actuante até ao fim dos séculos, em qualquer lugar:
“Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, até aos confins da Terra.”
É consensual que,
- a partir sobretudo do século IV, a orientação da Grande Igreja instalou-se no poder.
- De perseguida tornou-se perseguidora.
João Paulo II teve a coragem de dizer que os cristãos assumiram métodos em contradição com a verdade de Cristo e com o seu Espírito.
- Em vez do diálogo, praticámos a exclusão;
- em vez da escuta das diferenças, a condenação;
- em vez da compreensão ou da tolerância, a perseguição de quem era “outro”:
- os judeus, os “heréticos” e, mais em geral, quem quer que mostrasse uma diversidade de opiniões, de ética, de fé.
Era uma síntese de muitos erros em muitas épocas.
Tornou-se uma banalidade referir o desencontro
- com a modernidade,
- com o iluminismo,
- com a revolução francesa,
- com a laicidade,
o confronto com
- a hostilidade dos grandes impérios
- e das ideologias totalitárias.
Aconteceu, entretanto, o inesperado:
- veio o Papa João XXIII, veio o Concílio Vaticano II,
- mas também a turbulência das confusões [8].
De modo ainda mais inesperado,
- surgiu Bergoglio de fora de portas da Roma imperial
- e não se instalou no Vaticano.
John L. Allen Jr. avisa:
para compreender o Papa Francisco,
- esqueça Roma
- e aponte para Lampedusa
- porque foi o local escolhido para a primeira viagem do Papa fora de Roma, a 8 de Julho de 2013.
Durou apenas quatro horas e meia, mas raramente um mero meio-dia na vida de um papado foi tão repleto de simbolismo e substância.
Esta ilha tornou-se globalmente evocativa porque é o ponto de entrada na Europa de vagas e vagas de migrantes e refugiados que fogem de África, Médio Oriente e Ásia [9].
Nascia a Igreja de saída, a Igreja fora de portas.
NOTAS:
[1] C. 1Tes 1,1: Paulo, Silvano e Timóteo à igreja de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo, que está em Tessalónica. A vós, graça e paz.
[2] Mt 3,11-17 e par..
[3] Mt 5,43-45.
[4] Mt 10,5-16.
[5] 1Cor 15,6-10; Act 9,1-30.
[6] Jo 20,29-31; 21,24-25.
[7] Bíblia, Volume I, Quetzal, 2016, p.21.
[8] Cf. Enzo Bianchi, Secretariado da Pastoral, de 13.07.2020.
[9] Cf. Secretariado da Pastoral da Cultura, 10.07.2020.
Frei Bentos Domingues, O.P.
in Público, 19.07.2020
Fonte: https://www.publico.pt/2020/07/19/opiniao/opiniao/igreja-portas-1924766
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