Humberto R. Oliveira Jr – 24 Junho 2020 – Imagem: Daqui
“O que temos experimentado nos últimos anos? Por que nossa sociedade se encontra tão fraturada a despeito de tantos homens e mulheres supostamente de Deus ocuparem os espaços públicos?
Nas rádios e nas emissoras de televisão não há ausência de pregadores e pregadoras falando em nome do Cristo. Ainda assim,
- o espírito de morte parece pairar em nosso meio,
- o rancor se difundiu e famílias inteiras vêm sendo divididas pois se tornou insustentável a convivência”,
escreve., membro do Núcleo de Estudos de Religião, Economia e Política (NEREP/UFSCar), coordenador do Grupo de Estudios Multidisciplinarios sobre Religião e Incidência Pública no Brasil (GEMRIP) e doutorando em sociologia pela UFSCar.
Eis o artigo.
No imaginário popular, a figura bíblica do anticristo tende a ser relacionada a uma pessoa. Os relatos apocalípticos acerca das bestas percorrem a cultura ocidental como uma espécie de ameaça vindoura com a qual a humanidade um dia se defrontará.
O cinema tem sua cota de responsabilidade nesse fato. Os filmes refletem e contribuem para a construção cultural, solidificando mitos e lendas.
A boa teologia, por outro lado, ensina-nos que
- o anticristo não deve ser visto como uma pessoa, um indivíduo específico,
- mas sim como um espírito, um animus operandi.
- Isto é, um conjunto de ideias, valores e afetos que tomam conta de pessoas e grupos de tempos em tempos.
Trata-se de um zeitgeist.
Ao olhar para a história, podemos identificar esse espírito do tempo.
As cruzadas, a inquisição, as perseguições por motivações religiosas encarnaram plenamente este animus.
Assim sendo,
- a negação da existência divina,
- a flexibilização da moral ou mesmo a profanação corriqueira daqueles que insultam a Deus
- não poderia ser enquadrada no animus operandi que se denomina o anticristo.
Ao contrário, este espírito (o do anticristo) não rivalizaabertamente com os valores do Cristo.
- Ele procura usurpar a figura do Cristo,
- deturpando seus ensinamentos e valores como se, curiosamente, não o fizesse,
- de tal modo que se passa a viver e propagar um anti-evangelho em nome do Evangelho e do próprio Jesus.
*Se Jesus, o Cristo, anuncia as boas novas (tradução literal do grego euangelion), o falso cristo anuncia condenação.
* Se o Messias (Cristo, em grego) anuncia o perdão, o falso Messias propaga a vingança.
* Se o verdadeiro Cristo apregoa o amor, o anticristo difunde o ódio e a ira.
* O Cristo ressurreto concede o dom da fraternidade entre as pessoas, o seu adversário oferece espadas para o fratricídio (irmão matando irmão).
* Se Jesus exige igualdade, o falso Messias manifesta a discriminação entre pessoas e grupos
* Se o Cristo de Nazaré liberta, o seu antagonista escraviza.
O que temos experimentado nos últimos anos?
- Por que nossa sociedade se encontra tão fraturada a despeito de tantos homens e mulheres supostamente de Deus ocuparem os espaços públicos?
- Nas rádios e nas emissoras de televisão não há ausência de pregadores e pregadoras falando em nome do Cristo.
Ainda assim,
- o espírito de morte parece pairar em nosso meio,
- o rancor se difundiu e famílias inteiras vêm sendo divididas
- pois se tornou insustentável a convivência.
- O afeto converteu-se em desafeto. O perdão em sentença.
- A palavra que deveria gerar luz e vida hoje sentencia penalidades sem fim,
- convoca a escuridão e lança o medo sobre as ruas das cidades.
Acerca do anticristo, a segunda carta de Paulo aos Tessalonicenses (capítulo 2, verso 4), diz
“O qual se opõe, e se levanta contra tudo o que se chama Deus, ou se adora; de sorte que se assentará, como Deus, no templo de Deus, querendo parecer Deus”.
Podemos nos perguntar,
- quando este animus passou ocupar as nossas igrejas?
- Quando passou a conseguir de nós a sua adoração e a manifestação de tudo aquilo que se opõe a Deus?
- Quando foi que os púlpitos das igrejas passaram a ser apossados pelo anti-evangelho?
- Quando foi que permitimos ser profanado o santo lugar (o íntimo, o coração) com as sentenças de morte e condenação?
- Quando foi que se passou a adorar nos templos e nas casas de oração o “espírito da abominação”?
A ética do anti-evangelho parece percorrer nossas ruas, sai por aí
- agredindo pessoas,
- violentando corações,
- ferindo corpos e mentes.
Ele se opõe a tudo aquilo que se chama Deus, portanto ele se opõe ao próprio amor.
- Desumaniza, pois não vê no outro a semelhança divina;
- ataca, fere e mata pois é herdeiro de Caim;
- julga e sentencia pois roga pra si mesmo os atributos do próprio Deus.
Do jardim terreno pretende que não sobre nada, pois ama mais a aridez dos desertos que o colorido das flores.
Quem tem olhos, que veja; quem tem ouvidos, ouça enquanto há tempo para se afastar de tudo aquilo que encarna o anticristo. Veja e ouça enquanto há tempo para a restauração.
Humberto R. Oliveira Jr
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