Anselmo Borges: 20 de Junho de 2020
A História é um autêntico calvário. Hegel referiu-se-lhe como um Schlachtbank: um açougue, um matadouro.
E lá está o famoso dilema de Epicuro:
- Deus tem de ser todo-poderoso e infinitamente bom.
- Ou Deus pôde evitar o mal e não quis, e não é bom;
- ou quis e não pôde, e não é omnipotente.
A Universidade de Viena investigou a relação da religiosidade com a pandemia.
Os resultados mostraram que as pessoas mais religiosas utilizam estratégias mais activas para dominar a crise.
- Enquanto as pessoas menos religiosas tendem a reprimi-la ou a negá-la,
- as mais religiosas procuram apoio social e lidam com ela de modo mais forte, mais optimista e com mais serenidade.
São dados significativos.
- Não houve, creio, nenhum estudo sobre o outro lado,
- mas estou convencido de que dele resultaria que muitos, esmagados pela pandemia, pelo sofrimento,
- se perguntaram: Onde está Deus?
A História é um autêntico calvário. Hegel referiu-se-lhe como um Schlachtbank: um açougue, um matadouro. E lá está o famoso dilema de Epicuro:
- Deus tem de ser todo-poderoso e infinitamente bom.
- Ou Deus pôde evitar o mal e não quis, e não é bom;
- ou quis e não pôde, e não é omnipotente.
- Ou quis e pôde; então, donde vem o mal?
Mesmo teólogos de renome sentiram-se atenazados pelo dilema, de tal modo que
- alguns, como J. Moltmann, falaram de um Deus impotente, que sofre connosco;
- outros, como R. Guardini, chegaram a exclamar que “pediriam contas” a Deus pelo sofrimento dos inocentes,
- Karl Rahner disse que, “num tribunal humano, (Deus) não sairia absolvido”,
- Karl Barth afirmou que, no Jardim das Oliveiras, quando Jesus rezava, suando sangue, Deus “se portou como Judas”,
- e Urs von Balthasar disse que “se deve falar de uma descarga de ira de Deus sobre aquele que lutava no Jardim das Oliveiras.”
Nestas posições, a pergunta ergue-se talvez ainda mais veemente: acreditar como e para quê num Deus irado ou impotente?
A Filosofia e a Teologia ficarão historicamente devedoras ao filósofo-teólogo Andrés Torres Queiruga por ter desfeito o preconceito em que assenta o dilema (ver a sua obra marcante: Repensar o mal). De facto, como escreveu,
- “enquanto permanecer o preconceito de que Deus poderia acabar com todo o mal do mundo, se quisesse,
- ninguém pode crer na bondade de Deus, sem se ver obrigado a negar o seu poder;
- ninguém acreditaria na bondade de um cientista insigne que, podendo acabar hoje com os estragos do coronavírus, não quisesse fazê-lo, por altos e ocultos que fossem os seus motivos.”
O crente, nomeadamente o crente cristão,
- acredita no Deus Pai-Mãe,
- infinitamente poderoso e bondade infinita,
- que ama os seus filhos e filhas
- e só quer o seu maior bem.
Donde vem o mal?
Do mundo, que é finito e no qual há inevitavelmente mal.
- Não é possível um mundo finito, em evolução, perfeito e sem mal, porque isso é uma contradição;
- como se não pode reivindicar a autonomia criatural da liberdade humana finita e a perfeição.
“Afirmar hoje que
- Deus não é bom ou omnipotente, porque não cria um mundo perfeito,
- é o mesmo que argumentar que não o é, porque não quer criar círculos-quadrados ou não pode fazer ferros-de-madeira.”
A primeira coisa que é, portanto, preciso clarificar é que
- o mundo produz mal,
- o finito não pode ser perfeito, tem falhas, carências,
- nele haverá choques, becos sem saída…
Desfeito o equívoco de um mundo finito perfeito e sem mal, avança-se para uma ponerologia (do grego, ponerós, mau): tratar do mal, antes de qualquer referência a Deus.
- De facto, o mal atinge a todos, crentes e não crentes, todos sofrem ao nascer, todos passam pela dor, todos morrem.
- E devemos todos estar unidos solidariamente na defesa da vida e na procura do real alívio do sofrimento de todos.
A pergunta, agora, é outra: se o mal é inevitável, porque é que Deus criou o mundo?
- “Não posso responder ao ateu que diz que o mundo é absurdo, que não vale a pena.
- Eu não sou pessimista: creio que vale a pena e que há um referendo na Humanidade: todos, no fundo, sabemos que vale a pena.
- Por isso, continuamos a trazer filhos ao mundo.”
Aqui, começa a pisteodiceia (de pistis e dikê, justificação da fé).
Há diferentes pisteodiceias,
- pois todos, ateus, agnósticos, crentes, têm de enfrentar-se com o mal
- e cada um tem, dentro de uma cosmovisão, a sua resposta para o problema, a sua fé.
O crente religioso crê e pensa que é razoável crer em Deus e até pode perguntar, com o famoso teólogo Hans Küng:
“O ateísmo explica melhor o mundo? A sua grandeza e a sua miséria? Como se também a razão descrente não encontrasse o seu limite no sofrimento inocente, incompreensível, sem sentido!”
E crê que Deus não teria criado o mundo, se não fosse possível libertar-nos do mal.
O que se passa é que
- o que não é possível num dado momento
- pode sê-lo mais tarde.
- A mãe sabe matemática, mas não pode ensinar matemática ao seu bebé enquanto bebé;
- fá-lo-á mais tarde.
Alguém pode conceber-se a aparecer já adulto no mundo? A realidade é processual, e o crente em Deus como Amor e Anti-mal espera a salvação definitiva e plena para lá da morte.
Aqui, ergue-se outra objecção: depois da morte, não continuamos finitos?
- Os crentes confiam em Deus e podem mostrar, com razões, que a salvação eterna não é contraditória, pelo contrário.
- Sim, a pessoa é finita, mas com uma abertura infinita. Este é o mistério do Homem.
- Nunca estamos acabados, nenhum ser humano morre definitivamente feito. Não há nada finito que possa preencher a abertura humana, não há nada finito que possa realizar a nossa capacidade de conhecer e amar.
Esta é a possibilidade que se abre ao crente a partir da fé: já para lá dos limites do espaço e do tempo, Deus mesmo entrega-se-nos nesta abertura infinita e finalmente seremos nós com Ele e nEle.
Anselmo Borges
Padre, escritor e professor de Filosofia
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