Frei Bento Domingues, O.P. – 19/04/2020 – Foto: Radio Trans Mundial
O ser humano é estruturalmente desejo. A antropologia, antes de o tentar explicar, deve saber reconhecê-lo.
1. De uma descendência de animais, hoje desaparecidos, na qual se incluíam
- geleias marinhas,
- vermes rastejantes,
- peixes viscosos,
- mamíferos peludos,
este neto de peixe, este sobrinho-neto de lesma, tem direito a um certo orgulho de alguém bem sucedido.
De uma certa descendência animal, que em nada parecia votada a um tal destino, saiu o animal extravagante que viria a inventar o cálculo integral e a sonhar com a justiça [1].
A este delicioso texto do biólogo Jean Rostand (1877-1977) junto outro mais recente — situado em plena crise provocada pelo covid-19 — e um pouco menos eufórico de Arlindo Oliveira, Professor do IST:
“A espécie humana tem, do seu lado, uma capacidade única para perceber os mecanismos usados pelas outras espécies.
- É essa capacidade, a inteligência, que nos distingue dos outros animais e dos outros organismos.
- É essa capacidade que nos permitirá ultrapassar, sem danos significativos para a civilização, mais esta batalha pela sobrevivência. Que não será a última, nem a mais severa.
Outros vírus, outras bactérias e outras doenças, potencialmente mais letais, continuarão a ameaçar a nossa sobrevivência como indivíduos e, no caso mais dramático, como espécie.
Mas a inteligência humana coloca do nosso lado um arsenal de capacidade inigualável, que permitirá combater qualquer ameaça desta natureza.
- O maior inimigo da espécie humana não são os vírus, as bactérias ou qualquer outro animal.
- O nosso maior inimigo somos nós mesmos porque, pela primeira vez, uma espécie tem a capacidade de se autodestruir.
Esse é o maior risco para a espécie humana, aquele contra o qual devemos estar precavidos e atentos.” [2].
A morte dos indivíduos não atinge a espécie humana que também não tem um prazo eterno de garantia. A ciência e a tecnologia ainda não conseguiram extinguir a benéfica ilusão do desejo de viver, como diria Freud. O ser humano é estruturalmente desejo. A antropologia, antes de o tentar explicar, deve saber reconhecê-lo.
Devemos a I. Kant uma formulação admirável sobre a dignidade da nossa condição: o ser humano não tem preço, tem valor. Não é um meio para algo de mais valioso a que deva ser sacrificado.
As suas famosas perguntas:
- que posso eu conhecer,
- que devo eu fazer,
- que me é permitido esperar,
estão todas condensadas nesta — o que é o homem? Eu prefiro perguntar o que é o ser humano?
Para ele, a resposta pertence à antropologia. O filósofo judeu, Martin Buber, fez-lhe uma observação pertinente.
Kant tem, nos seus escritos, um conjunto de preciosas observações sobre o conhecimento do homem. Não abordou, no entanto, nenhum dos problemas que a antropologia implica:
- o lugar especial do homem no cosmos,
- a sua relação com o destino e com o mundo das coisas,
- a compreensão dos seus semelhantes,
- a sua existência como aquele que sabe que vai morrer,
- a sua atitude em todos os encontros, ordinários e extraordinários, com o mistério.
Martin Heidegger, o filósofo do assombro perante o acto puro de existir e que sabia unir pensamento e poesia, atribui a incongruência de Kant ao próprio carácter indeterminado da sua pergunta, “O que é o homem?”…
Quer dizer,
- a pergunta acerca do que ele pode conhecer implica uma limitação,
- pois supõe também o que ele não pode conhecer,
- a finitude humana, que é a própria essência da nossa existência.
Por isso, em lugar da antropologia surgiu uma ontologia fundamental.
Seja como for,
- a antropologia filosófica não quer conhecer o ser humano como um pedaço da natureza
- nem pode contentar-se em fazer dele apenas uma questão metafísica:
- deve estudar o ser humano na sua complexa integridade.
Se o fixarmos como um objecto,
- ficamos apenas com uma coisa da natureza,
- não com uma subjectividade irredutível.
Quem o investiga não pode fazer de conta que não está implicado nessa investigação.
O romancista Georges Bernanos advertiu:
- “Se os vossos actos, os vossos sentimentos, mesmo as vossas ideias,
- não são mais do que simples deslocamentos moleculares, um trabalho químico e mecânico comparável ao da digestão,
- em nome de quem, em nome de quê, quereis que eu vos respeite?”
2. Nesta crise não faltou quem afirmasse que está a ser um erro perder tempo, espaço, dinheiro com a assistência aos idosos. É simplesmente antieconómico.
Devia-se deixar que o vírus covid-19 fizesse o seu trabalho de eliminar os inúteis e reservar os cuidados com os humanos produtivos ou que possam vir a ser produtivos. Não fazer despesas com os funerais: a vala comum permite uma igualdade que lhes foi negada enquanto viveram.
O desejo infinito de viver é uma megalomania alimentada pela religião sob a capa da esperança, quando sabemos que a morte não pede nada, não fala. É o ponto final na comunicação.
O Papa Francisco tem outra ideia:
“O túmulo é o lugar donde, quem entra, não sai. Mas Jesus
- saiu para nós, ressuscitou para nós,
- para trazer vida onde havia morte,
- para começar uma história nova no ponto onde fora colocada uma pedra em cima.
Ele, que derrubou a pedra da entrada do túmulo, pode remover as rochas que fecham o coração. Por isso,
- não cedamos à resignação,
- não coloquemos uma pedra sobre a esperança.
- Podemos e devemos esperar, porque Deus é fiel.
Não nos deixou sozinhos, visitou-nos: veio a cada uma das nossas situações, no sofrimento, na angústia, na morte. A sua luz iluminou a obscuridade do sepulcro: hoje quer alcançar os cantos mais escuros da vida.
Minha irmã, meu irmão, ainda que no coração tenhas sepultado a esperança, não desistas! Deus é maior. A escuridão e a morte não têm a última palavra. Coragem! Com Deus, nada está perdido.” [3]
3. Quando se pergunta, o que será a nossa situação ao terminar esta pandemia, o Papa responde que depende da opção que tomarmos:
- «ou a nossa aposta será pela vida, pela ressurreição dos povos, ou será pelo deus dinheiro:
- voltar à sepultura da fome, da escravidão, das guerras, das fábricas de armas, das crianças sem escolas...
aqui está a sepultura!” [4]
A reconstrução da vida das pessoas, dos países, dos continentes,
- é incompatível com a nostalgia de um estilo de vida
- que alimentou desigualdades infames entre pessoas, grupos, países e continentes.
Estivemos e estamos no mesmo barco, durante muitos meses, mas não da mesma maneira. As desigualdades abissais entre ricos e pobres não foram apagadas. É tempo de começar algo de novo, não perder as experiências admiráveis dos que apostaram em não deixar ninguém para trás.
Contra o desânimo, esperança activa. A mensagem Urbi et Orbi, do dia de Páscoa, tem emprego para todos.
NOTAS:
[1] Este fragmento serviu de epígrafe a um meu antigo depoimento sobre ressurreição: A minha alma não sou eu.
[2] Público (06-04-2020)
[3] Homilia do Papa na Vigília Pascal
[4] Homilia do Papa na Missa de 13-04-2020
[5] Mc 16; Mt 28; Lc 24; Jo 20–21
Frei Bento Domingues
Fonte: https://www.publico.pt/2020/04/19/sociedade/opiniao/antropologia-esperanca-activa-1912757
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