Antiabortista e opositor ferrenho dos Mais Médicos, ex-deputado foi executivo de plano de saúde e se aproximou de presidente na campanha. Ameaçado de demissão, ele anda no fio da navalha e vê apoio popular disparar
“Quanto a eu deixar o Governo por minha vontade, tenho uma coisa que aprendi com meus mestres: médico não abandona paciente.”
A frase de efeito, lançada por Luiz Henrique Mandetta, ilustra a rotina paralela em que o Brasil mergulhou desde que começou a crise do coronavírus: acompanhar o duelo tático entre o ministro da Saúde e seu próprio chefe, Jair Bolsonaro, enquanto se conhece o boletim sobre o avanço da pandemia no país.
Nesta sexta, a declaração teve tom de desafio: apesar das divergências com o presidente, que fez questão de criticá-lo em público, Mandetta reiterava que não pretende pedir demissão. ]
A figura do ministro tem crescido frente às pressões negacionistas de Bolsonaro a respeito da doença, quando as mortes no país já chegam a 359, a cifra mais alta da América do Sul.
“Vamos nos guiar pela ciência”,insiste em dizer este médico ortopedista de 55 anos que vem de uma extensa família de políticos e foi deputado por duas legislaturas.
“É uma luta grande em que vamos precisar de muita paciência, muita resiliência”, relembra Mandetta, que não se rendeu aos apelos e estratagemas do Planalto para que diminuísse as aparições públicas na última semana.
- Paramentado com um colete do Sistema Único de Saúde (SUS), um acessório de praxe para os momentos de emergência da pasta,
- ele ora saca as credenciais técnicas,
- ora explora verve religiosa e espiritual para atrair todos os holofotes para si,
- parte da titânica tarefa de permanecer no cargo,
mesmo sem conseguir convencer o chefe de Estado e parte de seus 210 milhões de compatriotas de que, como orienta a Organização Mundial de Saúde, ficar em casa para reduzir ao mínimo o contato físico é a maneira mais eficaz de frear os contágios enquanto não há cura nem vacina.
Atualmente, o ministro, governadores e prefeitos forjaram uma frente informal para implantar um isolamento social que tem semiparalisado o Brasil diante dos chamamentos de Bolsonaro para que os que não são idosos nem doentes crônicos vão trabalhar para amenizar a hecatombe econômica que se avizinha.
- Mandetta, que já foi respeitado pelo presidente,
- agora é desprezado pelo chefe,
- que foi orientado a não demiti-lo por enquanto
- para não passar a imagem de total ingovernabilidade.
Na última quinzena, Bolsonaro ameaçou dispensar seu ministro da Saúde em pelo menos duas ocasiões. Além das discordâncias técnicas, pesa contra ele uma certa inveja.
- Hoje, o trabalho de Mandetta diante da pandemia
- tem o dobro do apoio popular do presidente,
- onforme atestaram duas pesquisas de opinião recentes, do Datafolha e da XP.
Ele ostenta uma aprovação de nível lulista: 76%, de acordo com o Datafolha.
O presidente não se cansa de criticar publicamente seu subordinado. A mais recente crítica foi feita na quinta-feira, em entrevista à rádio Jovem Pan.
“O Mandetta quer fazer muito a vontade dele. Pode ser que ele esteja certo. Pode ser. Mas está faltando um pouco mais de humildai05de para ele, para conduzir o Brasil neste momento difícil que encontramos e que precisamos dele para vencer essa batalha”.
Em resposta, o deputado Fábio Trad, primo do ministro, mandou um recado direto a Bolsonaro, via Twitter.
“O problema, presidente, é que, se Mandetta ouvi-lo nessa questão, haverá um genocídio no país. Seja humilde o senhor em reconhecer que um médico está mais preparado para combater uma pandemia que um capitão reformado”.
Mandetta
- está longe de ser apenas um médico ortopedista, um técnico no ministério da Saúde.
- Ele é de uma família de políticos e entrou na política para defender a causa dos profissionais de saúde e dos ruralistas de seu Estado, Mato Grosso do Sul.
Seu pai, Hélio, foi vice-prefeito de Campo Grande, a terra natal do ministro. Já teve um tio e primos como vereadores, prefeitos, deputados estaduais, deputados federais e senador. Foi pelas mãos de um de seus primos, o hoje senador Nelson Trad Filho (PSD-MS), que Mandetta entrou para a política partidária. Era secretário de Saúde quando Trad Filho governou Campo Grande.
Por sua atuação na pasta, foi investigado por
- suspeita de fraude em licitação,
- tráfico de influência
- e caixa dois.
A denúncia, acusação formal feita pelo Ministério Público, nunca foi apresentada. E é nisso que embasa a sua defesa.

- É visto como de perfil apenas técnico
- quando tem sua performance comparada a outros ministros da tropa de choque ultradireitista de Bolsonaro,
- como Abraham Weintraub (Educação) ou Damares Alves (Direitos Humanos).
Com Damares, inclusive, Mandetta já havia batido de frente, quando se opôs a alguns itens da campanha contra a gravidez na adolescência, baseada em abstinência sexual.
Antes de chegar ao ministério,
- foi gestor de uma cooperativa de médicos em Mato Grosso do Sul, Unimed,
- e deputado federal por dois mandatos (2011-2019).
No Parlamento,
- fez pesado lobby contra o programa Mais Médicos, do Governo Dilma Rousseff (PT).
- Nesta crise, foi obrigado a lançar edital para reconvocar os médicos cubanos do programa dispensados sob Bolsonaro
- e corre contra o relógio para cobrir o buraco na assistência básica que deixou o desmonte do programa da era petista.
Da Câmara à Esplanada
Conservador, maçom, antiabortista, a favor do uso de maconha para fins medicinais e filiado ao direitista DEM, Mandetta foi a favor do impeachment de Dilma Rousseff.
Apesar dessa oposição, transita bem entre políticos de esquerda. Católico, frequentador de novenas e missas, voraz leitor da Bíblia e de livros clássicos, costuma citar ambos em seus discursos e pronunciamentos.
Nessa semana, em uma entrevista coletiva, falou de Gibran Khalil Gibran:
“Somos os filhos e filhas da ânsia da vida por si mesma”.
Quando era um opositor do Governo petista, recorreu ao conto O Rei está nu, de Christian Andersen, para criticar a organização da Copa do Mundo pela gestão Rousseff, em 2014.
De lá para cá,
- aproximou-se do então deputado Bolsonaro
- quando a maior parte dos políticos o rejeitavam.
- Deu alguns conselhos a ele, como o de que partos prematuros poderiam ser evitados com o tratamento de cárie em mulheres grávidas.
Ganhou a simpatia do colega de Parlamento. Foi cogitado para ser um dos congressistas que se filiariam ao PSL juntamente com a onda Bolsonaro, mas preferiu seguir no seu DEM, do qual era vice-presidente do diretório nacional.
Quando Bolsonaro deixou de ser um irrelevante deputado do baixo clero e foi eleito para ocupar o gabinete principal do terceiro andar do Palácio do Planalto,
- Mandetta, que dizia ter desistido da vida política e não concorreu à reeleição para a Câmara,
- recebeu apoio das principais entidades médicas brasileiras para assumir a Saúde.
- A simpatia que o presidente tinha por ele se transformou em um convite formal para administrar um orçamento de 230 bilhões de reais como ministro da pasta.
- Ele interpretou o chamado como uma convocação.
Nos últimos dias, diante de um fogo cruzado promovido pelo incendiário presidente, Mandetta oscilou contra a ciência uma única vez.
- Ferrenho defensor do isolamento horizontal, quando a maior parte da população evita o contato social,
- ele foi pressionado por Bolsonaro a mudar o discurso e defender o isolamento vertical, quando se resguarda apenas idosos e pessoas com problemas de saúde graves.
O fez em uma quarta-feira, quando “comprou” o discurso do presidente de que estaria havendo radicalismo por parte de governadores e prefeitos que defendiam uma espécie de quarentena.
Ouviu críticas públicas e na esfera privada (entre seus amigos) nos três dias seguintes.
Chamou a cobertura dos meios de comunicação de sórdida e foi alvo, no sábado, de um editorial do Jornal Nacional, da TV Globo. Disse a apresentadora:
“O ministro da Saúde encontrou uma outra maneira de agradar o presidente: criticou o trabalho da imprensa, afirmando que os meios de comunicação são sórdidos porque, na visão dele, só vendem se a matéria for ruim”.
Foi aí que Mandetta acusou o golpe. Pediu perdão.
“Puxaram a minha orelha na Globo porque eu fiz um comentário sobre a cobertura e eu peço desculpas. A gente quando erra, a gente de desculpas”.
Desde então, o Mandetta menos disposto a ceder a Bolsonaro voltou à cena.
O regresso ao perfil que segue as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) desagradou ao seu chefe, que voltou a avaliar nomes para substituí-lo. Três estariam numa fila:
- Antonio Barra Torres, um militar da Marinha que dirige a Agência Nacional de Vigilância Sanitária,
- Osmar Terra, um médico deputado federal pelo MDB-RS, que foi demitido pelo presidente do Ministério da Cidadania,
- e Henrique Pratta, um filantropo e gestor do Hospital do Amor, o antigo hospital de câncer de Barretos.
Mas Bolsonaro está entrincheirado, ainda que com o sólido apoio de pouco mais de 30% da população.
- Falta a ele respaldo político para se desfazer de seu ministro,
- quando até outras estrelas do gabinete, como Sergio Moro (Justiça), ou mesmo o comandante do Exército, Edson Pujol, se mostram alinhados.
Três parlamentares ouvidos pela reportagem disseram que, para além da frase de efeito desta sexta, já ouviram do próprio ortopedista: ele não pedirá para sair.
“O Mandetta sabe do tamanho de sua responsabilidade e não é do tipo que abandona o barco nas horas mais difíceis”,
afirmou a senadora Simone Tebet (MDB-MS), que conhece o ministro desde a infância.
As próximas semanas, que o próprio Mandetta descreve como “duríssimas”, serão a prova de fogo, inclusive para o apoio popular à pasta que comanda. “A fase do desgaste vem ali na frente”,ponderou.
E lançou mais uma frase de efeito: “A mão que afaga é a mesma que apedreja”, disse, citando o poeta Augusto dos Anjos, uma voz crítica que morreu ―de pneumonia— no começo do século passado.
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Excelente o título da reportagem, bem como seu conteúdo. Apenas um senão, a saber: citar pesquisa da Data Folha como fonte de informação, é acreditar em Papai Noel. Pela Data Folha, hoje, Dilma seria Senadora.