Entrevista de Anselmo Borges – 22/03/2020 – Foto: ADRIANO MIRANDA
A covid-19 reduziu a Igreja Católica aos serviços mínimos. Com as missas suspensas, as catequeses adiadas, os funerais amputados de cortejos e pessoas, como sairá a Igreja Católica desta pandemia? Vai eclipsar-se enquanto intermediária da fé religiosa? “Não”, desde que, sustenta o padre e professor de Filosofia Anselmo Borges, saiba transformar esta crise em oportunidade para voltar a ser “circular e participativa”, varrendo de vez o clericalismo.
Eis a Entrevista
Esta pandemia poderá levar a que os crentes se reconciliem com a Igreja enquanto intermediária da sua fé ou, pelo contrário, levará a que a adesão à fé claudique ainda mais?
Nós pensávamos que éramos omnipotentes e entrámos nesta pandemia, neste medo que nos confronta com a morte.
- E esta situação pode abrir mais a Deus,
- mas as pessoas poderão também sentir-se entregues ao acaso e ceder à resignação.
Por comparação com “a gripe espanhola” de 1918, crê que a medicina, com o seu potencial de respostas e de cura, se substituiu à religião?
Quando olhamos para trás, observa-se que, mesmo na Idade Média, marcada por uma forte religiosidade, religião e ciência andaram sempre juntas. Lembre-se que os primeiros hospitais foram fundados por ordens religiosas. Portanto, houve sempre esta ligação.
- Agora havia este sentimento de que a ciência pode tudo
- e, de facto, não pode tudo.
E eu também estou à espera que apareça uma vacina.
A fé não acantona a ciência?
Pelo contrário,
- há o disparate do Vaticano face a Galileu,
- mas não nos esqueçamos que quem formulou a teoria heliocêntrica foi Copérnico que era cónego.
- Quem formulou a teoria do Big Bang foi Lemaître, que era padre.
Portanto, não há incompatibilidade entre a fé e a razão. A própria fé tem de ser razoável, dar razões dela e da esperança. Por outro lado, o desenvolvimento da ciência no Ocidente foi também provocado pela afirmação, no início do Evangelho Segundo S. João:
“Tudo foi criado pelo Logos, pela Razão, que é Deus.”
Se o mundo foi criado pelo Logos, deve ser racional e investigável.
- Tem de haver uma mútua compreensão entre a fé e a razão.
- A fé não abandona a ciência
- mas a ciência não tem resposta para tudo,
- nem para as questões essenciais sobre o fundamento e o sentido último da existência.
A que ponto poderá a Igreja activar os anticorpos para este vírus do medo?
A fé, por si, dá confiança e esperança às pessoas. E a Igreja
- pode dar ânimo e apelar à oração
- que — como quando vamos desabafar com um amigo — também tem este sentido de desabafar com Deus, de exprimir as nossas dores e dúvidas
Além disso, pode apelar à meditação. A palavra, aliás, vem do radical med (tratar, curar) que dá, no latim, mederi que está na base das palavras moderação, meditação e medicina. Hoje sabemos, através da imagiologia cerebral, que
- a meditação deixa sinais no cérebro
- e também cura.
E a Igreja pode ajudar as autoridades, dizendo aos fiéis para acatarem as ordens.
Como avalia a decisão de suspender as missas?
Foi uma decisão racional, na linha das que foram tomadas pelo Governo e que, no meu entender,
- deviam ter sido tomadas antes e de forma mais musculada,
- porque tínhamos o exemplo de Itália,
- daquilo que pode acontecer, se não se agir com rapidez.
As autoridades agiram com atraso e não tenhamos dúvidas de que,
- quando passar esta pandemia,
- vem aí uma crise tremenda a nível social e económico.
Tem de haver mais verdade e pensar mais. A palavra escola vem do grego scholê, que significa ócio,
- não como preguiça,
- mas como tempo livre para pensar e governar a polis,
- algo que falta no nosso tempo.
Hoje, tudo se tornou negócio, isto é, a negação do ócio.
- E a política foi também em grande parte reduzida a negócio,
- que, como se sabe, é uma técnica, que não pensa, apenas calcula.
Por outro lado, esta pandemia
- dá-nos consciência de que
- todos somos iguais e dependentes uns dos outros.
Isto significa que
- há uma série de problemas que são globais
- e só podem ser resolvidos com uma governança global (não um governo mundial),
- quando o que temos é uma política nacional, quando muito regional.
Há uma imagem que mostra o Papa sozinho, a pé numa Via Del Corso quase vazia. Como avalia a sua actuação nesta crise?
Creio que ele quis lembrar que,
- mais importante do que os rituais, é a disposição e a eficácia para ajudar e cuidar dos outros,
- o contrário do que fez o presidente dos Estados Unidos
- que queria ficar com o monopólio da descoberta da vacina.
E o Papa nisso tem sido modelar, tem estado continuamente a chamar a atenção para a solidariedade.
- Nós estamos todos aflitos com a pandemia, e com razões,
- mas não nos devíamos esquecer que todos os dias morrem 24 mil pessoas de fome.
- Isso é um vírus tremendo que devia acabar, o vírus do egoísmo.
E o Papa neste sentido é um modelo para todos.
A actuação do Papa na denúncia das falhas do capitalismo e da urgência da crise climática sai reforçada desta pandemia?
Esta pandemia também nos veio revelar que é preciso estar atento à natureza. E voltamos à questão da ciência e da própria natureza, em obediência àquele velho princípio de que
- o ser humano só está verdadeiramente equilibrado
- quando tem mente sã num corpo são.
Veja como isto está ligado:
- a ecologia vem do grego oîkos, que é a casa,
- e a palavra economia significa governo da casa.
O Papa Francisco, que fica na história com a encíclica Laudato Si sobre a ecologia, o cuidado da casa comum, está constantemente a lembrar que esta financeirização especulativa da economia mata.
A Igreja pode ter aqui uma oportunidade para recuperar alguma da sua credibilidade?
Com este “ficar em casa”, as pessoas todas, crentes ou não crentes,
- são colocadas perante o essencial
- que pode e devia levar à descoberta dos valores fundamentais
- do sentido do tempo, da família…
E a Igreja deve aproveitar para se recentrar no que é essencial. Depois
- de denunciar a pedofilia
- e de pôr em ordem o banco do Vaticano,
- deve regressar a uma Igreja de iguais em comunhão,
- sem o clericalismo e o carreirismo denunciados pelo Papa Francisco como uma peste.
Neste momento em que as pessoas não têm celebração comunitária da missa, é preciso passar de uma Igreja clerical e vertical para uma igreja circular e participativa.
Está confiante nessa capacidade das cúpulas da Igreja?
Vai demorar muito tempo mas, como a sociedade se tem de reinventar a nível global, até porque vem aí uma crise social e económica tremenda,
- também a Igreja tem de se reinventar
- e esta crise é uma oportunidade.
É, de facto, uma enorme oportunidade para nos repensarmos a nível individual, familiar, nacional, europeu e a nível global. E
- ou a Igreja se renova
- ou vai para a coisa pior que pode acontecer-lhe que é transformar-se numa Igreja insignificante, isto é, sem significado para as pessoas.
Como avalia, para lá da suspensão das missas, a resposta face à pandemia da Igreja Católica em Portugal?
Penso que, como fez o cardeal Antonio Cañizares, de Valência, que
- pôs edifícios da Igreja à disposição do Estado espanhol,
- cedendo-os aos serviços de Saúde,
- a Igreja portuguesa devia eventualmente fazer o mesmo,
- uma vez que temos de viver solidariamente face a um problema que atinge a todos.
Disponibilizando hospitais?
Oferecendo certos espaços a serviços de Saúde, além de poder continuar naquela que é a sua tarefa primeira que é animar as pessoas nesta sua falta de esperança e confiança.
O facto de os rituais fúnebres terem sido reduzidos deixará feridas colectivas em termos de processo de luto?
Acho que esta medida é uma medida de prudência racional. Mas evidentemente vai criar um imenso vazio dentro das pessoas. O
- luto é um trabalho face à perda de alguém
- e é preciso exprimi-lo mediante rituais e encontros.
Reduzindo estes encontros,
- vamos confrontar-nos com um problema de saúde mental
- que requer apoio espiritual, psicológico e eventualmente psiquiátrico.
Há sempre a hipótese de se postergar esses rituais.
Haja capacidade dos padres e dos agentes pastorais de renovarem a celebração que não é possível neste momento.
- Mesmo onde há uma prática religiosa fraca,
- a maior parte das pessoas quer um ritual religioso para a celebração da morte de alguém, o que é significativo.
Portanto, julgo que
- seria uma boa medida prometer às pessoas, condicionadas agora na celebração de um funeral,
- uma celebração futura com mais tempo e com maior expressão afectiva.
Veja que neste momento as pessoas não se podem sequer abraçar nem beijar! E, diante da morte de um ente querido, é fundamental que as pessoas possam chorar e exprimir os seus sentimentos.
Natália Faria
Leave a Reply