Anselmo Borges – 8 de Março de 2020 – Foto: Daqui
Neste Dia Internacional da Mulher, retomo o que já aqui escrevi em 2011: “As mulheres têm motivo para estar zangadas com a Igreja, que as discrimina.
Jesus, porém, não só não as discriminou como foi um autêntico revolucionário na sua dignificação, até ao escândalo.”
Veja-se a estranheza dos discípulos ao encontrar Jesus com a samaritana, que tinha tudo contra ela: mulher, estrangeira, herética, com o sexto marido, mas foi a ela que se revelou como o Messias.
- Condenou a desigualdade de tratamento de homens e mulheres quanto ao divórcio.
- Fez-se acompanhar — coisa inédita na época — por discípulos e discípulas. Acabou com o tabu da impureza ritual.
- Estabeleceu relações de verdadeira amizade com algumas.
Maria Madalena constitui um caso especial nessa amizade:
- ela acompanhou-o desde o início até à morte
- e foi ela que primeiro intuiu e fez a experiência avassaladora de fé de que o Jesus crucificado não foi entregue à morte para sempre, pois é o Vivente em Deus, como esperança e desafio para todos os que crêem nele,
a ponto de Santo Agostinho, apesar da sua misoginia,
- a declarar “Apóstola dos Apóstolos”,
- precisamente por causa do seu papel fundamental na convocação dos outros discípulos para a fé na Ressurreição — na morte, não caímos no nada, pois entramos na plenitude da vida em Deus, Deus de vivos e não de mortos.
Aliás, já São Paulo, na Carta aos Romanos, pede que saúdem Júnia, “Apóstola exímia”.
- No seu mais recente escrito, o teólogo José M. Castillo vem lembrar a mesma coisa. Quando se lê os Evangelhos, o que constatamos é que Jesus teve conflitos e confrontos com vários grupos, desde as mais altas autoridades religiosas até aos discípulos que o acompanhavam: a Pedro, por exemplo, chegou a chamar-lhe Satanás.
Mas há um dado que
“chama poderosamente a atenção:
- as mulheres são o único grupo com o qual Jesus não teve problema algum,
- inclusivamente naquele caso da mulher cananeia que suplicava a cura da sua filha doente;
- parece que Jesus lhe deu uma má resposta,
- mas o carinho daquela mãe foi tão intenso que até fez Jesus dizer: ‘Mulher, como é grande a tua fé!’. E a filha ficou curada.”
Castillo insiste que
- Jesus esteve sempre do lado das mulheres, mesmo quando eram adúlteras ou prostitutas.
- Jesus deixou que uma mulher o perfumasse com perfume caro, ou lhe beijasse os pés com lágrimas e lhos enxugasse com os cabelos.
- E foram as mulheres que se mantiveram sempre fiéis no caminho do Calvário e depois da morte, diante da Cruz.
- E foram as primeiras testemunhas do Ressuscitado, do Jesus vivo em Deus para sempre.
E, atravessando a história da Igreja, lança a pergunta:
“Como é possível o que está a acontecer? Se há tantos bispos que
- vivem em palácios,
- usam vestimentas que já ninguém usa,
- têm privilégios que ninguém mais tem,
- julgam ter poderes que Deus lhes deu a eles e a mais ninguém,
não é lógico e inevitável que na Igreja esteja a acontecer o que todos vemos?”
E conclui:
“Como é possível que as mulheres continuem nesta Igreja que
- as marginaliza,
- as exclui,
- as anula em tantas coisas…?
Porque é que hão-de continuar numa Igreja que, apoiada em séculos,
- nega e resiste a que celebrem Missa
- ou que possam ser esposas de padres?
Se Jesus não proibiu nada disso,
- porque é que havemos de ser nós a proibir
- e, para cúmulo, ficando com a consciência do dever cumprido?
- O que é mais importante: agradar a uns tantos cardeais ou servir toda a gente?”
- A Igreja continua a ser um dos maiores esteios da sociedade patriarcal. Até inconscientemente, com a doutrina tradicional, embora esta não encontre apoio no Evangelho.
Dou três exemplos.
Eva, que estaria, segundo a doutrina tradicional, a partir de uma leitura literal da Bíblia, na base do pecado original, criou a imagem da mulher tentadora, associada ao pecado.
Quando João Paulo I se referiu a Deus como Mãe foi um escândalo tal que não faltaram os protestos, clamando que Deus é Pai e não Mãe. Para esta visão, contribuiu também o desconhecimento da biologia. De facto, o óvulo feminino só foi descoberto em 1827. Por isso, na geração, a mulher era passiva e não activa.
Neste quadro, nunca se poderia rezar o Credo, começando assim
“Creio em um só Deus, Mãe toda-poderosa, criadora dos céus e da terra…”
nem rezar o “Pai Nosso”, dizendo “Mãe Nossa”.
Mas, em relação a esta concepção, é preciso tomar consciência de que
- Deus está para lá da determinação sexual
- e, por isso, tanto nos podemos dirigir a Ele como Pai ou como Mãe.
Também se diz que Deus encarnou no homem Jesus. Sim, esta afirmação é clara para a fé cristã, desde que não se ignore que, no Evangelho de São João, se lê que o Logos, que é Deus, se fez carne, no sentido de humanidade frágil. De facto,
- a palavra utilizada no original grego é “sárx”, que significa precisamente a humanidade enquanto frágil,
- e não “anér, andrós”, que se refere ao homem masculino (daí, andrologia e androcentrismo)
Deus manifestou-se, revelou-se a todo o ser humano, na humanidade frágil do homem Jesus.
Neste contexto, pergunta-se:
- a mulher não poderá presidir à Eucaristia?
- Já há anos, o então cardeal-patriarca de Lisboa, José Policarpo, que sabia Teologia,
- fez uma declaração que teve muito eco nos média, inclusive estrangeiros:
“Teologicamente não há nenhum obstáculo fundamental” à ordenação de mulheres.
A recusa baseia-se apenas na tradição.
- É evidente que, perante esta afirmação, os protestos choveram
- e o meu amigo cardeal José Policarpo, por pressão do Vaticano, teve de recuar, dando esclarecimentos.
- Mas, evidentemente, era ele que tinha razão.
Para contrapor, invoca-se que na Última Ceia não houve mulheres. Ora, esta afirmação é contestada por grandes exegetas. De qualquer modo,
- onde é que está que Jesus ordenou alguém “in sacris” naquela noite?
- Mais: o famoso biblista, talvez o maior exegeta do século XX, Herbert Haag, da Universidade de Tubinga, com quem tive o privilégio de privar, ironizou:
- como eram só judeus os presentes, então a Igreja devia ordenar só homens judeus!…
Sobretudo:
- é sabido que as primeiras comunidades cristãs — não havia igrejas nem capelas nem basílicas ou catedrais —
- se reuniam na casa de cristãos mais abastados, pois sempre teriam uma casa mais ampla,
- e quem presidia era o dono ou a dona da casa.
Então, se já foi possível mulheres presidirem à Eucaristia…
A questão da mulher na Igreja tem, pois, de ser revista.
Para não ferir o que Jesus disse:
- “Sois todos irmãos e iguais”
- nem este princípio fundamental do Concílio Vaticano II: “Toda a forma de discriminação nos direitos fundamentais da pessoa por razão do sexo deve ser vencida e eliminada, por ser contrária ao plano divino.”
Afinal, a linguagem que nos leva a dizer: “a Igreja discrimina as mulheres” revela bem onde reside o nervo do problema.
- Que Igreja é que discrimina?
- Quem é a Igreja?
Evidentemente, ao dizer que a Igreja discrimina as mulheres, estamos a referir-nos à Igreja hierárquica: Papa, cardeais, bispos, padres, cónegos, monsenhores — com duas classes: clero e leigos —,
- quando o que Jesus queria era a Igreja como comunidade de comunidades, que obriga a dizer: “a Igreja somos nós”, a comunidade dos baptizados, homens e mulheres,
- uma comunidade de iguais,
- com carismas e ministérios vários ao serviço de todos,
entre eles, o da presidência da Eucaristia, exercido por homens ou mulheres.
Anselmo Borges
Fonte: https://www.dn.pt/edicao-do-dia/08-mar-2020/a-mulher-na-igreja-11896361.html
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