Anselmo Borges – 09 de Fevereiro de 2020 – Imagem: Daqui
Pode-se viver da religião institucional em altos cargos eclesiásticos, por exemplo, e não ser consequente com uma verdadeira experiência religiosa, se é que se fez esta experiência.
O que acontece também muito frequentemente na política: há quem se confesse ateu e participe em festas religiosas, porque isso pode dar votos…
Retomando a reflexão da semana passada sobre o tema em epígrafe, parece-me fundamental acentuar que é essencial distinguir aquele tríplice plano:
- religiosidade (religioso),
- Sagrado
- e religiões.
Como escreveu J. de Sahagún Lucas, quando se fala de religião/religiões, religioso e Sagrado não se identificam, “não são sinónimos”.
Trata-se de realidades distintas, pois religioso refere-se ao pólo subjectivo, isto é, ao movimento de transcendimento e entrega confiada a uma realidade sagrada – o pólo objectivo —, o Sagrado ou Mistério. Diferenciam-se do profano, já que o religioso indica o modo concreto e peculiar de assumir a existência toda nas suas várias dimensões na perspectiva do Sagrado.
As diferentes formas de religião — a religião implica inevitavelmente pluralidade de religiões, surgindo cada uma num determinado contexto histórico, geográfico, sócio-económico, cultural… — coincidem no facto de remeterem o Homem para essa Realidade superior a ele e que, num primeiro momento, se pode caracterizar como um supra (acima) e um prius (anterior) (U. Bianchi).
O referente último de todas as religiões é o mesmo: o Sagrado ou Mistério, essa Realidade superior.
Na tentativa de explicitar a definição apresentada, J. Martín Velasco, um dos maiores especialistas no domínio da fenomenologia da religião, desenvolve, na sua obra Introducción a la fenomenología de la religión, os elementos ou traços essenciais do conteúdo dessa realidade misteriosa.
Em primeiro lugar, deve-se sublinhar a sua “absoluta transcendência” em relação ao homem e ao mundo. Essa transcendência exprime-se nas várias religiões, referindo
- a sua “outridade”: “totalmente outro”;
- a sua inacessibilidade: “altíssimo”; invisibilidade: “tu és um Deus escondido”; incognoscibilidade: “superincognoscível”; radical e absoluta diferença: “distinto do conhecido e do desconhecido”; a inefabilidade: dele só se pode dizer: “não é assim, não é assim”;
- a sua superioridade absoluta: “superior summo meo” (superior e mais alto do que a minha altura máxima).
Por isso, o homem religioso, na sua presença, sente pavor e tremor, indignidade radical. Trata-se
- do mysterium tremendum (mistério terrível),
- que é ao mesmo tempo fascinans (fascinante), como referiu R. Otto.
Mas, por paradoxal que pareça, o Mistério compreende simultaneamente “a sua mais perfeita imanência” ao homem e ao mundo.
- É próximo – o Alcorão diz que Alá é mais próximo ao homem do que a sua própria jugular –
- e íntimo – interior intimo meo (mais íntimo do que a minha máxima intimidade), diz Santo Agostinho,
- no interior da transcendência, a suma imanência e identidade: atman é Brahman (eu é o Absoluto), diz o budismo, “o centro da alma é Deus”.
Estas duas características implicam-se mutuamente. De facto,
“só o absolutamente transcendente pode ser imanente de forma absoluta”
ou, como diz Nicolau de Cusa, só o totalmente outro é non aliud, não outro.
Outro traço essencial do Mistério é “a sua condição de sujeito activo”.
- Ele revela-se, dá-se a conhecer, interpela o homem, atrai-o.
- A sua presença é anterior à procura do Homem, de tal maneira que Pascal pôde, com razão, pôr Deus a dizer: “não me procurarias, se não me tivesses já encontrado”.
Na sua presença, o Homem experiencia que
- não é por si nem dispõe de si,
- pois só é verdadeiramente no encontro e na entrega confiada a esse Mistério último.
Mas, mais uma vez, paradoxalmente,
- esta entrega não significa de modo nenhum alienação, autoaniquilamento ou sujeição a uma heteronomia,
- pois, “devido à abertura radical do ser humano ao Infinito,
- o consentimento neste Além de si mesmo é a condição da sua realização plena”.
Explicitando, dever-se-á, portanto, distinguir entre
- religiosidade/religioso,
- Sagrado
- e religiões.
Religiosidade tem a ver com o movimento de transcendimento, sendo religioso aquele ou aquela que se entrega confiadamente ao Sagrado ou Mistério, do qual espera salvação.
As religiões
- são mediações entre os homens e mulheres e o Sagrado/ Mistério,
- e entre o Sagrado/Mistério e os homens e mulheres.
Enquanto mediações,
- as religiões têm, inevitavelmente, muito de humano
- e, consequentemente, são habitadas pelo melhor e pelo pior.
- São mediações necessárias e inevitáveis.
- Referem-se ao Mistério/Sagrado, estão referidas ao Absoluto; o seu perigo permanente é pretenderem tornar-se elas próprias o Absoluto.
As diferentes religiões configuram de modo diferente o Sagrado ou Mistério. Nelas, há, por princípio,
- uma dimensão doutrinal teológica, que tenta dizer o Sagrado ou o Mistério;
- uma dimensão ético-moral;
- uma dimensão litúrgico-celebrativa;
- e, evidentemente, um mínimo de organização.
Esta distinção entre religioso, Mistério/Sagrado e religiões é fundamental, pois pode acontecer que alguém
- seja religioso no sentido autêntico e profundo de uma experiência viva e consequente do Sagrado ou Mistério
- e tenha e mantenha distanciamento face às religiões instituídas,
como pode haver
- quem não teve nem tem vivência autenticamente religiosa
- e, no entanto, viva da religião institucional, se sirva dela para fins políticos, económicos, de ascensão social.
Pode-se viver da religião institucional em altos cargos eclesiásticos, por exemplo, e não ser consequente com uma verdadeira experiência religiosa, se é que se fez esta experiência. O que acontece também muito frequentemente na política: há quem se confesse ateu e participe em festas religiosas, porque isso pode dar votos…
Anselmo Borges
Padre, Professor de Filosofia em Coimbra, escritor, conferencista, autor de: Deus ainda tem futuro? e Deus e o Sentido da Existência, entre outros
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/religiosidade-sagrado-religioes-2-11800693.html
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