O peso da história e a influência da chanceler falaram mais alto do que uma aliança que provocou calafrios. Na quarta-feira, um Parlamento dividido na Turíngia (centro-leste da Alemanha) viabilizou o governo liderado pelo candidato dos liberais (FDP), Thomas Kemmerich, com o inédito voto decisivo da extrema-direita.
- Não foi o facto de ter sido o candidato do partido que ficou em último nas eleições de outubro (com 5%, a barreira para a eleição) que causou escândalo.
- Não foi também o facto de se ter criado uma coligação a inviabilizar a continuidade do ministro-presidente Bodo Ramelow, do partido pós-comunista Die Linke (A Esquerda), primeiro nas urnas com 31% dos votos.
- O que causou um turbilhão na política alemã foi o voto favorável da Alternativa para a Alemanha (AfD, nacionalista e populista) ao lado da União Democrata-Cristã (CDU) e do FDP, na terceira ronda de votações.
A surpresa geral transformou-se em indignação, nas redes sociais, nas ruas e na comunicação social. E Kemmerich acabou por ceder, anunciando a sua demissão.
Em Erfurt, capital da Turíngia, um manifestante oferece lições de história e a manifestante insurge-se contra a ligação FDP-AfD. – © EPA/Filip Singer
De Weimar ao nazismo
- Foi no pequeno estado da Turíngia que nasceu a democracia na Alemanha (a República de Weimar),
- mas também foi aí que, graças a um Parlamento marcado por divisões e forte rivalidade,
- se criou o caldo para o crescimento do nacional-socialismo.
Primeiro, em 1930, quando o partido de Hitler se aliou à direita tradicional e fez parte do governo estadual; e dois anos depois, ao chegar ao poder, tendo como líder Fritz Sauckel, uma das principais figuras do nazismo. Os campos de concentração na região, com Buchenwald à cabeça, foram uma das marcas do regime, ao aproveitar o trabalho escravo para o fabrico de armamento.
Marcas de um tempo que ainda muito recentemente foi evocado, quer em Jerusalém quer em Auschwitz.
“Gostaria de poder dizer que a nossa memória nos tornou imunes ao mal. Sim, nós alemães lembramo-nos. Mas às vezes compreendemos melhor o passado do que o presente”,
disse o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier no Memorial do Holocausto Yad Vashem.
Foto: Daqui
Além do passado nazi da Alemanha e em especial da Turíngia, a AfD daquele estado destaca-se pelo extremismo. O líder local, Björn Höcke,
- dirige a ala radical do partido
- e notabilizou-se por defender o fim da cultura de arrependimento pelos crimes nazis – um tema consensual até há poucos anos.
- O extremismo deste dirigente é tal que é alvo de críticas por parte de membros mais moderados do seu partido
. Ao saudar a votação de quarta-feira, o ex-professor de História afirmou-se esperançado de que servisse de exemplo para o resto do país.
Thomas Kemmerich recebeu o apoio de Höcke no dia 1 de novembro, segundo uma carta do líder regional da AfD publicada no site da rádio MDR.
Na missiva, Höcke deixa em aberto a formação de um governo tecnocrático ou um governo liderado pelo FDP. O que levou muitos a questionarem se o pacto estava de facto selado e até se a CDU estaria alinhada. Segundo a Deutsche Welle,
- há democratas-cristãos mais dispostos a cooperar com a AfD
- do que com os socialistas do Die Linke,
- ainda que Ramelow seja considerado um moderado.
Após a eleição, Thomas Hemmerich recebe os cumprimentos do líder estadual da AfD, Björn Höcke. © EPA/Bodo Schackow
O corte do cordão sanitário entre FDP e CDU de um lado e AfD do outro motivou em primeira instância reações locais, como a do ministro-presidente e candidato a novo mandato.
Bodo Ramelow publicou no Twitter uma foto de Hitler na tomada de posse como chanceler com o presidente Von Hindenburg e a foto de Kemmerich a ser cumprimentado por Höcke, e um texto do homem que iniciou a Segunda Guerra Mundial ao invadir a Polónia.
“Conseguimos o maior sucesso na Turíngia (…) Os partidos na Turíngia, que anteriormente formaram o governo, não podem obter a maioria sem a nossa participação.”
Bodo Ramelow
✔@bodoramelow
“Den größten Erfolg erzielten wir in Thüringen. Dort sind wir heute wirklich die ausschlaggebende Partei.[…] Die Parteien in Thüringen, die bisher die Regierung bildeten, vermögen ohne unsere Mitwirkung keine Majorität aufzubringen.”

Os jornais também reagiram em conformidade.
- “Caiu um tabu”, titulou o Der Spiegel, que qualificou o sucedido de “eleição vergonhosa”.
- Já o tabloideBildescolheu “Lamentável” para título e lembrou que Höcke relativiza os crimes do III Reich.
Registaram-se manifestações nas ruas de Erfurt, a capital da Turíngia, mas também em Berlim e noutras cidades alemãs, com muitos a fazerem alusão ao pacto da extrema-direita com os liberais do FDP.
Protesto contra a eleição do chefe de governo da Turíngia diante da sede dos liberais, em Berlim. – © EPA/Felipe Trueba
Merkel levanta a voz
Foi decisiva a intervenção de Angela Merkel. Apesar de já não ser a líder da CDU, a autoridade política e moral da chanceler é indiscutível. Em Pretória, África do Sul, onde se encontra em visita oficial, a líder da Alemanha não aceitou a eleição do ministro-presidente.
“Foi um mau dia para a democracia. Foi um dia que rompeu com os valores e as convicções da CDU, e agora tudo deve ser feito para deixar claro que isso não pode de forma alguma ser compatível com o que a CDU pensa e faz”, disse Merkel.
“Esta eleição de um ministro-presidente de um estado rompeu com uma convicção central da CDU e minha, ou seja, que nenhuma maioria deve ser conquistada com a ajuda da AfD.“
“Es war ein schlechter Tag für die Demokratie”, sagt Angela #Merkel zum Wahl-Eklat in #Thueringen. Sie kritisiert die Wahl des #FDP-Politikers #Kemmerich zum thüringischen Ministerpräsidenten mit #AfD-Stimmen als “unverzeihlich”. #ThueringenWahl
Merkel concluiu: “Deve dizer-se que este é um ato imperdoável e, portanto, o resultado desta eleição deve ser anulado”, para logo a seguir mencionar a hipótese de novas eleições.
À tarde, o homem que fora eleito no dia anterior convocou uma conferência de imprensa e demitiu-se.
“Em conjunto com os meus colegas liberais da Turíngia,
- decidimos solicitar a dissolução do Parlamento.
- Deste modo, queremos novas eleições
- de modo a remover a mancha do apoio da AfD ao governo do ministro-presidente do estado.”
Thomas Kemmerich foi eleito ministro-presidente na quarta-feira e demitiu-se na quinta. – © EPA/Filip Singer
Kemmerich fora eleito deputado estadual com a frase de campanha “Um careca que prestou atenção às aulas de História” e recusou ter um pacto com a AfD.
“Não houve, não há nem vai haver cooperação com a AfD. Ontem a AfD tentou subverter a democracia com um truque pérfido. Estamos a tentar demarcar-nos”, disse.
O líder nacional dos liberais, Christian Lindner, que viajou para Erfurt para se reunir com as estruturas regionais, disse que Kemmerich “chegou à única decisão correta e possível”.Na quarta-feira, Lindner mostrou-se surpreendido com o apoio da AfD, mas não condenou a jogada.
Ainda não se sabe se existirão eleições antecipadas. Apesar de ter sido essa a sugestão do ministro-presidente demissionário, cabe aos deputados decidirem, sendo necessário o voto de dois terços dos eleitos.
AfD rejeita comparações
A Alternativa para a Alemanha
- nasceu há sete anos como partido populista eurocético
- e foi-se transformando num partido anti-imigração, anti-islão
- e com militantes com simpatias incompatíveis com os valores democráticos.
Hoje é o maior partido da oposição no Parlamento nacional, o Bundestag, com 89 eleitos em 709, e tem representantes em todos os parlamentos estaduais.
As comparações com a ascensão do nazismo foram mal recebidas
“Estas comparações com os nazis tresandam. Nós na AFD somos
- a favor de um Estado de direito, democracia, pluralismo político
- e pela vida judaica no nosso país.
- Somos contra toda a violência e a censura de opinião. Acabem com as provocações!”,
leu-se na conta oficial do Twitter.
Diese Nazivergleiche etwa eines Peter Frey vom @ZDF sind auf gut Deutsch unter aller Sau. Wir als #AfD stehen FÜR #Rechtsstaat, #Demokratie, politischen #Pluralismus und FÜR jüdisches Leben in unserem Land. Und wir sind GEGEN jede Gewalt und Meinungsverbote. Stoppt die Hetze!
Estes desenvolvimentos políticos acontecem numa altura em que uma das mais controversas figuras do partido perdeu a imunidade parlamentar. Alexander Gauland, líder da bancada parlamentar e ex-líder do partido, está a ser investigado por evasão fiscal.
O caso não deve estar relacionado com o financiamento ilegal do partido, um processo que levou à aplicação de uma multa de mais de 400 mil euros.
Gauland ganhou notoriedade internacional
- graças a comentários controversos,
- como os seus elogios aos soldados das forças armadas nazis,
- ou quando minimizou a ditadura e os crimes do regime hitleriano ao compará-lo a um “excremento de pássaro” face a “mil anos de história alemã de sucesso”.
Germany, Infratest dimap poll:
CDU/CSU-EPP: 27% (+1)
GRÜNE-G/EFA: 22% (-2)
AfD-ID: 14%
SPD-S&D: 14%
LINKE-LEFT: 9% (+1)
FDP-RE: 8%+/- vs. 21-22 Jan. ’20
Fieldwork: 3-5 Feb. ’20
Sample size: 1,503
Polling average: http://europeelects.eu/germany
César Avó
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Muito bom artigo. Mas infelizmente Kemmerich ainda não se demitiu segundo constava ontem no noticiário da Deutsche Welle.