Apóstolas (e não Apóstatas)
Henrique Raposo, 27/11/2019
Este ensaio defende o fim do celibato obrigatório do clero e defende a ordenação de mulheres.
A missa pode e deve ser celebrada por uma mulher. Não se trata de uma cedência ao ar do tempo, trata-se de uma cedência ao ar bíblico.
Homem e mulher são iguais no corpo de Cristo.
Não, não se trata de colocar a Igreja dentro da “modernidade”, seja lá o que isso for, trata-se de aproximar a Igreja de Jesus Cristo.
- A Igreja não é Deus, não é Cristo,
- é um edifício imperfeito e sempre em obras,
- uma espécie de torre de Babel omnipresente mas não omnisciente,
- imperecível mas não perfeita.
Esta torre católica
- nunca deixa de ter andaimes, roldanas e cordas,
- porque a tradição é viva e orgânica, não é um museu de figuras e normas intocáveis, quais bezerros de cera dourada.
Naturalmente, admito a falibilidade dos argumentos que se seguem.
- Não admito que não se realize este debate.
- Não admito que a mera invocação destas ideias seja rotulada como herética.
MULTIPLICAI-VOS
- Jesus nunca nos diz que o trabalhador evangélico não pode ter mulher e filhos. Nunca.
- Diz-nos outra coisa diferente, que não pode ser confundida com a defesa da castidade, a saber:
- há momentos, diz Jesus, em que um cristão tem de ir contra a vontade da sua própria família se quiser permanecer fiel à revelação.
- uma vida sem afeto, sem toque, sem amor, sem sexo, sem mulher e sem filhos é uma vida contranatura.
- E não será também uma vida pouco cristã?
- Não haverá uma contradição teológica entre a “Bíblia” que tem o Cântico dos Cânticos e a Igreja que força a castidade dos seus servidores?
- Não haverá uma contradição entre a Igreja que diz que a família é o valor absoluto e a mesmíssima Igreja que é liderada por homens que não podem formar família?
FEBE
- Dentro de água e fora da jurisdição de qualquer diocese,
- os bispos Regelsberger e Braschi ordenaram como padres da igreja as tais mulheres:
- Pia Brunner, Ida Raming, Iris Muller, Christine Mayr-Lumetzberger, Adeline Roitinger, Gisela Forster e uma sétima que tinha como cognome “Ângela Branca”.
Algumas eram freias. Digo “eram”, porque as sete do Danúbio foram excomungadas. Algumas ouviram dos seus superiores que aquela rebeldia era tão vil como um abuso sexual.
- Em primeiro lugar, os dois bispos são rebeldes, não fazem parte da hierarquia, pertencem a um movimento sem validade, “catolicismo independente”. Mas, com ou sem validade, a coragem está lá.
- Em segundo lugar, o caso é anterior às redes sociais. Se tivesse ocorrido em 2016 ou 2019, teria tido uma repercussão muitíssimo maior.
- As sete do Danúbio seriam hoje figuras à escala de Greta Thunberg.
Julgo, porém, que é só uma questão de tempo até que este gesto seja repetido por dois bispos da verdadeira hierarquia. E, seja como for,
- as sete do Danúbio trazem à memória Ludmila Javorová,
- padre da igreja checa na clandestinidade (anos 70 e 80).
- Neste caso, não se coloca a questão da validade: Javorová foi ordenada por um bispo da hierarquia.
Se Javorová serviu a Igreja debaixo de fogo do totalitarismo comunista, outras Jovorovás não o poderiam fazer no dia a dia normal?
A IGREJA NÃO É DEUS, NÃO É CRISTO, NÃO É UM MUSEU DE FIGURAS E NORMAS INTOCÁVEIS
- As sete do Danúbio são a face mais visível de um movimento que se move ao lado da igreja numa espécie de desobediência civil.
- Nos EUA, por exemplo, há centenas de mulheres padres nesta desobediência civil.
São apoiadas por inúmeras organizações como Roman Catholic Womenpriests, Voices of Faith Iniciative ou Women Priests Project:
- angariam dinheiro para estas igrejas paralelas
- e para a educação teológica destas mulheres
- e do público, cada vez mais recetivo à ideia.
Até porque as irmãs, as freiras, estão cada vez mais desafiantes e vocais na imposição da sua voz.
- Há neste momento um movimento sufragista de freiras, dos EUA à Alemanha.
- A par do movimento das irmãs, há um movimento das leigas.
Olhe-se por exemplo para a KFD, organização das católicas alemãs que conta com 4 mil associações e 450 mil inscritas.
- 450 mil vozes lideradas por uma política da CDU, Mechthild Heil,
- católica, conservadora, feminista e reformista dentro da igreja.
Heil tem dito, e bem, que
- os bispos têm de abdicar do poder 100% masculino
- e que essa não abdicação de poder é que é absolutamente anticristã.
- Quando nos dá jeito, seguimos Jesus à risca como se Ele nos tivesse deixado um mero Excel teológico,
- mas quando não nos dá jeito já não O seguimos à letra?
Depois, importa frisar que Jesus sabia que atuava numa sociedade historicamente situada. Jesus Cristo
- é a intersecção entre o tempo de Deus e o tempo dos homens;
- é Deus a escrever não num vácuo, mas num momento historicamente situado.
- Neste sentido, importa recordar que Jesus não contesta a escravatura.
Não há uma passagem em que Jesus diga taxativamente que a escravatura é uma prática condenável. Quer isto dizer que Jesus é a favor da escravatura? Não. Mas é curioso que não a condene de forma aberta. Há momentos assim em Jesus, momentos de uma enorme sabedoria política. Dai a César o que é de César, por exemplo.
Mas claro que Ele nos deixa a pista que só seria percebida e consumada 1800 anos mais tarde:
“Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo” (Gl 3, 28).
- E, se esta frase da Carta aos Gálatas nos permite dizer que Jesus está contra a escravatura,
- então também nos permite dizer que Jesus está contra a subalternidade da mulher.
Demorámos 1800 e tal anos para compreender “não há escravo e livre”. Precisamos de mais um século para compreender “não há homem e mulher”?
* Em primeiro lugar,
traz as mulheres para a praça pública. As mulheres estavam confinadas à vida doméstica, as discussões políticas e teológicas na praça pública eram dos homens.
- Jesus quebra esta regra, trazendo as opiniões e os gestos das mulheres para o centro do espaço público.
- Quando uma mulher ousa falar, Jesus manda calar os doutores da lei.
Isto era revolucionário há 2000 anos na Palestina. Parece que continua a ser revolucionário à beira de 2020.
* Em segundo lugar,
- Jesus não se limita a dar voz às mulheres na praça pública. Dá-lhes razão.
- Através de Jesus, as mulheres vencem sempre os debates com os homens que pretendem silenciar as suas palavras ou censurar os seus gestos.
Por outro lado, há que frisar que
- Jesus também mandata mulheres para o trabalho de apóstolo.
- É Maria Madalena quem vê Jesus ressuscitado pela primeira vez: “Ela aproximando-se, exclamou em hebraico, Rabbuni” (Jo 20, 16).
- E, a seguir, Jesus dá-lhe uma missão de apóstolo: vai e dá a boa nova!
É curioso verificar que Pedro e os outros recusam acreditar na boa notícia de Madalena; fazem lembrar os judeus que recusavam acreditar na boa nova de Caleb. Se recuarmos um pouco a fita do tempo, verificamos que
- são elas, Maria Madalena, Maria, Salomé,
- que ficam no momento mais delicado, a crucificação e a colocação de Jesus no sepulcro.
Eles desaparecem com medo, elas ficam. E, já agora,
- é Maria quem reúne os apóstolos amedrontados.
- Até se pode fazer o caso de que Maria é o grande apóstolo,
- é ela o ponto de ligação de todo o Evangelho, desde Gabriel até aos dias pós-ressurreição.
Um país mariano como Portugal não pode ficar indiferente a este argumento.
O CELIBATO OBRIGATÓRIO NÃO TEM SUPORTE BÍBLICO, É UMA CONSTRUÇÃO POLÍTICA DA IGREJA
- E nem sequer estou a falar do diaconato, que esteve aberto às mulheres até ao século XII.
- Estou a falar da paridade entre homem e mulher da igreja original.
- os agradecimentos finais desta carta (Rm 16, 1-16) são dominados por mulheres.
- Sim, Paulo dedica a grande peça teológica da cristandade a mulheres que são tratadas como diaconisas, trabalhadoras evangélicas e até por apóstolas. Sim, porque “apóstolo” quer dizer “mandatado”.
- Se Cristo mandata Madalena para a maior boa nova da história,
- São Paulo mandata as seguintes mulheres, Febe, Júnia, Prisca, Pérside, Trifosa, Júlia, e a irmã de Nereu.
- Elas estão em pé de igualdade numérica com eles. E estão em superioridade na qualidade dos elogios. Estas mulheres têm uma autoridade plena ao nível teológico e ao nível organizativo, sobretudo Febe, Júnia e Prisca ou Priscila.
Cêncrea era um porto perto de Corinto.
Quem é que em Roma recebe a carta das mãos de Febe? Provavelmente outra mulher, Priscila.
Priscila é a segunda pessoa a surgir nos agradecimentos e até aparece antes do seu marido, Áquila.
“Saudai Priscila e Áquila, meus colaboradores em Cristo Jesus, pessoas que, pela minha vida, expuseram a sua cabeça.”
Nesta época, Priscila é porventura o cristão mais importante fora os nomes sagrados. É o cristão ‘normal’ mais importante, digamos assim. Ela e o marido estão na base de mais dois centros da cristandade emergente além de Roma, Corinto (Grécia) e Éfeso (Turquia). E o que dizer de Júnia, que é tratada por Paulo como apóstola?
“Saudai Andrónico e Júnia, meus concidadãos e meus companheiros de prisão, que tão notáveis são entre os apóstolos e que, inclusivamente, se tornaram cristãos antes de mim” (Rm 16, 7).
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