Natália Faria – 3 out 2019 – Foto: Daqui
Edição Público Lisboa
Judite Paiva recua 48 anos e larga uma gargalhada sonora.
“Se fosse hoje, mandava passear o bispo que nos mandou esperar e dizia-lhe: ‘Olhe, se quiserem, mandem o papel lá para casa, porque eu vou mas é viver com o meu homem.’”
Dobrada já a esquina dos 70 anos de idade, Judite não parece guardar ressentimentos pela forma como a Igreja Católica reagiu ao pedido que o seu marido, Manuel Alves Paiva (Foto ao lado /© Nelson Garrido) , dirigiu ao respectivo bispo para que o dispensasse das obrigações sacerdotais e pudessem casar-se, apesar dos vinte anos de diferença entre os dois.
“Fomos quase dos primeiros. Ele era visita de casa dos meus pais e, na altura, foi um escândalo”,
contextualiza em conversa telefónica com o PÚBLICO, para acrescentar que a primeira reacção do bispo foi recusar.
“Depois, tendo o meu marido insistido, o bispo pediu-lhe para aguentar mais uns anos na paróquia onde estava, alegando que não tinha quem o substituísse. Não era nada: o que ele queria era que o meu marido desistisse da ideia. Fiquei muito revoltada, mas o Manuel era muito correcto e foi aguardando.
Quando, passados cerca de dez anos, veio a dispensa, casamo-nos logo pelo civil e, um mês depois, pela Igreja. Ainda sugeriram que o casamento fosse às escondidas, mas eu mandei-os dar uma volta e fui casar à Foz, no Porto, vestidinha de noiva e com a família toda presente”,
recorda, meio século, duas filhas e quatro netos depois.
Judite não saberá se na paróquia em que casou subsistem os registos do seu casamento. É que, na altura,
- além da resistência e da demora na resposta aos padres que pediam dispensa das obrigações sacerdotais para se poderem casar,
- Roma dava indicações para que os registos dos matrimónios envolvendo padres
- não integrassem os assentos paroquiais, sendo antes remetidos para o arquivo secreto da Curia,
conforme recorda a Fraternitas, uma associação que apoia os padres portugueses que abandonaram o ministério, na carta que os seus líderes dirigiram em 2014 ao Papa Francisco reivindicando o fim do ostracismo a que são votados estes padres por parte da hierarquia da Igreja.
Desde a imposição de que
- o casamento fosse feito “sem qualquer pompa ou aparato”
- ao afastamento do padre dispensado da sua paróquia e dos lugares onde era conhecido enquanto padre,
- à proibição de leccionar Teologia ou Religião e Moral e de dar catequese,
- os padres dispensados eram “exilados eclesial e socialmente”, conforme qualifica a Fraternitas, na referida carta.
Na prática, as situações iam variando, consoante o discernimento do bispo ou do superior religioso e de cada caso. Mas agora, a Congregação para o Clero, que é a entidade responsável no Vaticano por analisar e responder a cada um dos pedidos, mudou radicalmente o tom das respostas, nos chamados “rescritos”:
“Já não há vexames, desterros e casamentos às escondidas”,
anunciou José Manuel Vidal, director do portal informativo Religion Digital, a partir do “rescrito” recebido em Julho passado por um sacerdote espanhol dispensado por Roma das obrigações sacerdotais.
Ao estabelecer que
- o bispo ou superior religioso devem “empenhar-se”
- para que o padre dispensado possa continuar a desempenhar “serviços úteis” na comunidade cristã em que se insere,
- nomeadamente a possibilidade de ensinar Teologia em escolas sob tutela eclesiástica,
Roma operou uma mudança “absoluta e radical”, adoptando um tom “mais amável, acolhedor e compreensivo”, interpretou Vidal.
À Igreja em Portugal não chegaram notícias oficiais de alguma mudança de normas nesta matéria.
Ao PÚBLICO, um canonista, por cujas mãos têm passado alguns destes pedidos de dispensa das obrigações sacerdotais, admite que tais alterações possam inscrever-se nas mudanças que se vêm operando na Igreja Católica.
“Quando João Paulo II foi nomeado Papa, por exemplo, deu instruções para que tais dispensas não fossem concedidas a padres com menos de quarenta anos de idade, numa regra de que Bento XVI viria a fazer tábua rasa. Mas isso, na altura, tinha uma razão de ser: no período que se seguiu ao Concílio Vaticano II, João Paulo II tinha visto tantos padres arrependidos de terem pedido a dispensa que decidiu instituir esse critério.”
Oito anos de espera
Fernando Félix (Foto ao lado / Daniel Rocha) sentiu-lhe na pele os efeitos. O seu pedido para ser dispensado das obrigações sacerdotais, motivado apenas por ter concluído que o seu futuro não seria como padre, seguiu para Roma em 2001 e a resposta chegou apenas em 2008.
“Esses oito anos foram uma espécie de experiência para garantirem que a minha decisão não era motivada por questões momentâneas”,
contemporiza. Entretanto, em 2006, casara pelo civil. E, no seu caso, não tendo paróquia atribuída, dado que era missionário comboniano, conseguiu escapar ao ostracismo.
“Houve compreensão e serenidade. Saí em perfeita paz com o instituto. Aliás, os combonianos deram-me mesmo dinheiro para recomeçar a minha vida”, recorda.
Tal não significa, porém, que não tenha havido amargos de boca:
- “Cheguei a ser proibido de participar e de ensinar na catequese,
- o bispo da diocese de onde sou natural recusou receber-me
- e a primeira resposta de Roma foi negativa
- porque consideraram que, como não havia mulher nem filhos,
- não havia motivos para me atribuírem a dispensa.
- Já casados pelo civil, e antes de casarmos pela Igreja, o que só aconteceu em 2012, fomos impedidos de sermos padrinhos de baptismo.”
Apesar disto, Fernando, hoje membro da Fraternitas, diz que nunca se deixou afastar.
“Apresentei-me, ofereci-me e, desde então, não temos tido problemas, aliás, voltei a ser chamado para trabalhar como jornalista nas publicações Audácia e Além-Mar da congregação.
Mas tudo depende. Conheço um jovem padre franciscano que, quando se apresentava para pedir emprego, tinha uma nota que dizia ‘Não dêem emprego a esse senhor’.
Outro que pedira para ser ministro da comunhão e o pároco, que embirrara com a sua situação, respondeu-lhe que, se o queria fazer, então tinha de tirar um curso como qualquer leigo, isto apesar de ser formado em Teologia e continuar a ser padre, embora dispensado das suas obrigações”,
enumera, para acrescentar que, porque o mais certo era que o “rescrito” viesse do Vaticano pejado de condições e de proibições
“que equiparavam os padres que queriam casar a uma espécie de proscritos condenados a uma pena perpétua”, muitos dos padres que casaram “optaram por se afastar com mágoa”.
Foi o caso de Esaú Dinis (Foto: Daqui)
Tendo deixado de exercer quaisquer funções sacerdotais em Abril de 1970, do que informou o respectivo bispo, casou em Junho desse mesmo ano.
“O casamento foi num sábado e, na segunda-feira, estava a carregar caixotes de legumes para serem distribuídos por Paris, onde vivia. Na altura, afastei-me da Igreja e não oficializei o pedido de dispensa porque o processo não era digno nem respeitoso de uma decisão que foi tomada também com alguma dor”, justifica-se.
Era, pelo contrário,
“degradante, vergonhoso e anti-humano”, nomeadamente “porque as pessoas tinham de casar quase em segredo e não podiam ser professores das coisas religiosas…”
E Esaú não estava para arrostar com isso, até porque a prioridade era convencer a família da justeza da sua decisão.
“A primeira reacção do meu pai foi: ‘Mais valia que tivesses morrido’. E, na altura, houve gente a virar-me a cara. Mas depois, no que à família diz respeito, as coisas amenizaram-se com o nascimento do nosso primeiro filho”, recorda.
Com a Igreja também. Mas, na prática, Esaú passou mais de quarenta anos de relações cortadas com a Igreja.
- “Conheci casos em que os padres eram coagidos a dizer que tinham sido forçados a sê-lo,
- numa tentativa de assim justificarem a dispensa. Insistiam em apontar culpas”,
critica Esaú, cujas pazes com a Igreja e com as suas práticas se fizeram apenas em 2008, pela mão do então cardeal-patriarca de Lisboa, D. José Policarpo.
“Foi ele que me ajudou a abrir o processo, de forma humanizada e sem vergonha. Algum tempo antes, tinha sabido que o processo estava ‘aliviado’ porque um antigo professor meu, padre nos Açores, casou e pôde continuar a ter alguma actividade.
Mas a tentativa que então fiz [de oficializar o pedido de dispensa] nos Açores, de onde sou natural, continuava sem qualquer avanço, cerca de um ano depois. E foi então que ouvi alguém dizer que no patriarcado de Lisboa era mais fácil”, explica.
O pedido seguiu em Outubro de 2008 e, no início do ano seguinte, Esaú Dinis obtinha o deferimento.
“Três meses depois voltei a casar com a minha mulher, mas desta vez pela Igreja.”
Retomou o hábito de ir à missa aos domingos, “sem o sentido do rigorismo, mas com o sentido de participação”.
E quando, apesar dos seus 82 anos,
- Esaú se desloca aos encontros de padres casados promovidos pela Fraternitas,
- dá por si a pensar no desperdício que é a Igreja Católica, que se debate com uma crónica falta de padres,
- não aproveitar o trabalho daqueles que, como ele, pediram para se casar.
“Não os vinte ou trinta que ali se reúnem, mas os milhares que existem pelo mundo fora”, enfatiza, dizendo-se convicto de que o celibato se inscreve “nos ritualismos de uma Igreja ligada aos poderes e afastada dos Evangelhos”.
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