Antonio Spadaro – 26/09/2019 – Foto: Vatican Media
O relato é do jesuíta italiano Antonio Spadaro, publicado por La Repubblica, 25-09-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na chegada, os jesuítas aplaudiram Francisco, que pediu aos presentes que formassem um círculo com as cadeiras. O papa, então, convidou os jesuítas a fazerem as perguntas. O jornal La Repubblica antecipa uma parte da conversa, cuja versão na íntegra será publicada nesta quinta-feira, no site da revista La Civiltà Cattolica.
Eis a entrevista.
Os pobres se deixam fascinar por algumas seitas protestantes e esperam se tornar ricos ao aderir a elas. Como fazer para que a nossa evangelização não seja proselitismo?
Existem seitas que realmente não podem ser definidas como cristãs.
- Elas pregam Cristo, sim,
- mas a sua mensagem não é cristã.
Nada a ver com a pregação de um luterano ou de outro cristão evangélico sério. Esses chamados “evangélicos”
- pregam a prosperidade,
- prometem um Evangelho que não conhece a pobreza,
- mas buscam simplesmente fazer prosélitos.
É exatamente aquilo que Jesus condena nos fariseus do seu tempo.
A eleição como papa não me converteu repentinamente, de modo a me tornar menos pecador. Sou e continuo sendo pecador – Papa Francisco – Tweet
Hoje, uma senhora se aproximou de mim com um jovem e uma jovem. Eles me disseram que faziam parte de um movimento um pouco fundamentalista. Ela me disse:
“Santidade, eu venho da África do Sul. Este rapaz era hindu e se converteu ao catolicismo. Esta garota era anglicana e se converteu ao catolicismo”.
Ela me disse isso de modo triunfal, como se tivesse feito uma viagem de caça com o troféu. Eu me senti desconfortável e lhe disse: “Senhora, evangelização, sim. Proselitismo, não”.
Como mudou a sua experiência de Deus desde que foi eleito papa?
Acredito que a minha experiência de Deus não mudou. Continuo sempre o mesmo de antes. Sinto um senso de maior responsabilidade, sem dúvida. A minha oração de intercessão tornou-se muito mais ampla do que antes. Mas, mesmo antes, eu vivia a oração de intercessão e sentia a responsabilidade pastoral. Falo com o Senhor como antes. E também cometo os mesmos pecados de antes.
O clericalismo é uma verdadeira perversão na Igreja. O clericalismo condena, separa, chicoteia, despreza o povo de Deus – Papa Francisco – Tweet
A eleição como papa não me converteu repentinamente, de modo a me tornar menos pecador. Sou e continuo sendo pecador. Por isso, me confesso a cada duas semanas. Conforta-me muito saber que Pedro, na última vez que aparece nos Evangelhos, ainda está tão inseguro quanto antes. Ler sobre a hipocrisia de Pedro me conforta muito e me põe em alerta. Acima de tudo, me ajuda a entender que não há mágica alguma em ser eleito papa. O conclave não funciona por magia.
Como podemos evitar cair no clericalismo durante a formação ao ministério sacerdotal?
O clericalismo é uma verdadeira perversão na Igreja.
- Pretende que o pastor esteja sempre à frente,
- estabelece uma rota
- e pune com a excomunhão aqueles que se afastam do rebanho.
Em suma: é exatamente o oposto do que Jesus fez.
O clericalismo
- condena,
- separa,
- chicoteia,
- despreza o povo de Deus.
O clericalismo confunde o “serviço” presbiteral com a “potência” presbiteral. O clericalismo é ascensão e dominação. Em italiano, chama-se de “arrampicamento” [escalada].
Uma das dimensões do clericalismo é a fixação moral exclusiva no sexto mandamento – Papa Francisco – Tweet
O clericalismo tem como consequência direta a rigidez. Vocês nunca viram
- jovens sacerdotes todos rígidos de batina preta
- e chapéu com a forma do planeta Saturno na cabeça?
Por trás de todo o clericalismo rígido, há problemas sérios.
Uma das dimensões do clericalismo é a fixação moral exclusiva no sexto mandamento. Uma vez, um jesuíta me disse para estar atento ao dar absolvição, porque
- os pecados mais graves são aqueles que têm uma “angelicalidade” maior orgulho, arrogância, domínio.
- E os menos graves são aqueles que têm uma angelicalidade menor, como a gula e a luxúria.
- Concentramo-nos no sexo e, depois, não damos peso à injustiça social, à calúnia, às fofocas, às mentiras.
O que o senhor pensa dessa xenofobia desenfreada?
A xenofobia e a aporofobia [fobia que representa o medo pela pobreza ou pelos pobres] hoje fazem parte de uma mentalidade populista que não deixa soberania aos povos.
A xenofobia destrói a unidade de um povo, até que o povo de Deus.
E o povo somos todos nós:
- aqueles que nasceram em um mesmo país,
- não importa que tenham raízes em outro lugar
- ou sejam de etnias diferentes.
Hoje, somos tentados por uma forma de sociologia esterilizada. Parece que consideramos um país como se fosse uma sala de operações, onde tudo é esterilizado:
- minha raça,
- a minha família,
- a minha cultura,
como se houvesse medo de sujá-la, manchá-la, infectá-la.
Parece que consideramos um país como se fosse uma sala de operações, onde tudo é esterilizado: a minha raça, a minha família, a minha cultura, como se houvesse medo de sujá-la, manchá-la, infectá-la – Papa Francisco – Tweet
Quer-se impedir aquele processo tão importante que dá vida aos povos e que é a mestiçagem.
- Misturar faz você crescer, lhe dá uma nova vida.
- Desenvolve cruzamentos, mutações e confere originalidade.
- A mestiçagem é aquilo que experimentamos, por exemplo, na América Latina.
Entre nós, há de tudo:
- o espanhol e o índio,
- o missionário e o conquistador,
- a estirpe espanhola e o mestiço.
Construir muros significa condenar-se à morte. Não podemos viver asfixiados por uma cultura de sala de operações, asséptica e não microbiana.
Ouvi dizer que os missionários franceses costumavam indicar como penitência pelos pecados que as pessoas plantassem árvores. O que o senhor acha?
Parece-me uma intuição pastoral muito criativa! Pelo que você me diz, tratou-se de uma penitência social e ambiental, que se ocupa de construir a sociedade. Quando eu fui à Cidade da Amizade, o padre Pedro me mostrou alguns pinheiros. Ele me disse que ele mesmo os havia plantado há 20 anos. Isso é realmente muito bonito.
Antonio Spadaro
Leia mais:
- Xenofobia
- Difundem-se novas formas de racismo e xenofobia, denuncia o papa Francisco
- Papa condena a xenofobia, e diz que migração é um “sinal dos tempos”
- A evangelização não se faz sentado no sofá, afirma Francisco
- “Evangelizar? Não é proselitismo, é testemunho de vida”, prega Francisco
- “O proselitismo é a caricatura da evangelização”, diz Francisco aos padres
- A “nova evangelização” segundo Francisco
- A peste do proselitismo que impede o diálogo. Artigo de Massimo Introvigne
- “Anunciar Cristo não é proselitismo, nem marketing”, adverte Francisco
- Papa Francisco: os missionários não fazem proselitismo como “torcida organizada”
- Quando o Papa Francisco condena o “proselitismo”, sobre o que exatamente ele está falando?
- A opção pelos pobres “não é uma opção sociológica, não é a moda de um pontificado. É uma exigência evangélica”, atesta o Papa Francisco
- ”A Eleição do Papa Francisco”: um relato dia a dia, voto a voto
- O que é ”aporofobia”? Uma reflexão útil e atual
- “Não existe apenas o sexto mandamento”, constata bispo alemão
- Enfrentando as causas do clericalismo: o pecado original e as dinâmicas institucionais
- “A pobreza não é uma fatalidade!” A mensagem do Papa Francisco aos jovens de Madagascar
- O Papa contra o clericalismo: “A Igreja não pode ser parte do problema, mas sim porta de solução, respeito, troca e diálogo”
- Um “novo clericalismo” nas relações Estado-Igreja
- É preciso enfrentar o clericalismo antes de tentar reformar o sacerdócio
- ”Acabar com o clericalismo é crucial para que a Igreja realmente seja um hospital de campanha”, afirma cardeal de Chicago
- Clericalismo, esse é o inimigo!
- Clericalismo, uma tentação contínua. Artigo de Rodrigue Gbédjinou
- Moçambique. Papa Francisco encontra os seus coirmãos jesuítas
- “O Papa Francisco está convencido da importância da África”. Entrevista com Andrea Riccardi
Leave a Reply