Aparentemente, o presidente e seu círculo mais íntimo parecem não haver entendido que não estamos mais na Guerra Fria – FHC
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – 31 AGO 2019
Foto: Bolsonaro durante cerimônia no Palácio do Planalto no dia 28 de agosto. EVARISTO SA AFP
É difícil escrever mensalmente sem tocar em temas sensíveis que eu preferiria não abordar. É o caso agora.
Foram tantos os gols contra praticados pelo Governo atual que não há modo de deixá-los de lado. Pior, passei três dias na Argentina na semana anterior e lá participei de um encontro promovido pelo jornal Clarín em que estavam presentes e em diálogo público Macri e Fernandez.
Não pude fugir da imprensa local e da brasileira. Queriam saber, naturalmente, dos “temas quentes” sobre o Brasil. Como de hábito, não me furtei a responder, tomando o cuidado de lembrar que estava em país estrangeiro, embora irmão.
- A diplomacia a que me imponho por haver sido presidente
- obriga a não avançar com as velas pandas no exterior sobre temas nacionais de cá e de lá,
- sobretudo os que podem ser sensíveis às pessoas que lideram as duas nações.
Assim, com luvas de pelica, de volta ao Brasil, vamos ao que interessa.
É indiscutível que o Brasil, no exterior, marcha para ser a gata borralheira. Também
- com o desaguisado presidencial na questão do meio ambiente,
- nas supostas relações com as “milícias”,
- em casos de nepotismo, e por aí vai,
- é difícil contestar a avalanche de críticas e afirmações, nem sempre corretas,
- que desaguam nas mídias mais influentes do estrangeiro.
Por que e para que isso?
- o presidente e seu círculo mais íntimo
- parecem não haver entendido que não estamos mais na Guerra Fria.
- Não há mais o confronto entre dois blocos ideológicos.
Mesmo Trump, capitaneando uma relação comercial belicosa com a China e pensando em levantar muros na fronteira mexicana,
- não se pauta pela lógica bipolar
- de um mundo dividido entre esquerda e direita.
Nem a China. E muito menos a Europa.
Qual o sentido, pois,
- em fazer desaforos ao presidente da França e sua esposa,
- em ressuscitar um nacionalismo anacrônico
- parecido ao que aflorou (à época com maior razão) diante do projeto de um think tank americano, Hudson Institute,
- que nos anos 60 aventou a ideia estapafúrdia de transformar a Amazônia em um grande canal de navegação alternativo ao do Panamá?
A reação dos europeus ao aumento das queimadas na Amazônia responde a motivos distintos e não se deu de forma uniforme. Há uma preocupação genuína com questões que têm impactos globais (mudança climática e extinção da biodiversidade). Existem também razões menos universais,
- como a defesa de interesses protecionistas,
- e motivações circunstanciais, como o receio de derrotas em eleições locais a se realizar no próximo ano.
Em lugar de reagir toscamente,
- negando dados empíricos
- e insultando cientistas e chefes de estado de outros países,
- deveríamos ter reagido prontamente para combater as queimadas
- e mostrar, na prática, o compromisso soberano do Brasil com a proteção do meio ambiente.
Não há meio mais eficaz para desinflar a conjectura inaceitável sobre conferir um estatuto internacional à Amazônia.
Nessas horas precisamos de bom senso e racionalidade, virtudes difíceis em um país polarizado.
- Patriotismo não se mede por bravatas nacionalistas, sobretudo quando insultuosas.
- A proteção do bioma amazônico é, acima de tudo, do interesse do Brasil,
- um interesse coincidente com o dos demais países que compartilham esse bioma e também com o do planeta.
Dadas as restrições fiscais, recursos do exterior são bem-vindos.
- Não nos falta capacidade para bem administrá-los,
- com transparência, e em parceria com a sociedade civil,
- que pode e deve ser aliada e não inimiga na preservação do meio ambiente e na realização de projetos de desenvolvimento.
Há queimadas que
- em parte são cíclicas,
- em parte são legais,
- mas em grande parte (é preciso avaliar o tamanho) são criminosas:
- derrubada ilegal de mata para queimá-la e transformar a floresta em pasto ou em áreas para grãos.
Se nos faltasse terra, vá lá, caberia a discussão sobre o que fazer. Mas elas são abundantes
- e o agronegócio brasileiro,
- aquele que opera dentro da legalidade,
- não precisa depredar para ser competitivo.
- Ao contrário, só continuará a ser competitivo se não depredar, como prevê a Constituição e está estatuído nas leis.
Enquanto
- vozes lúcidas do agronegócio clamam por racionalidade,
- no Governo há quem insista em distorcer os fatos.
- Como se fosse pouco negar a validade de dados científicos,
- busca-se transformar vítimas em algozes.
Nessa linha, aponta-se a demarcação de terras indígenas como o grande obstáculo para o desenvolvimento da Amazônia.
- É essa retórica de desinformação,
- insulto e incentivo a práticas ilegais, reiterada ao longo de oito meses,
- a principal responsável pela crise atual.
De um lado,
- ela abriu a porteira para que os interessados no desmatamento ilegal
- se sentissem autorizados a tocar fogo no cerrado e na floresta.
De outro,
- deu o pretexto para que a defesa de interesses protecionistas se revestisse com a capa de legitimidade da preocupação ambiental.
- A retórica oficial tem sido danosa aos interesses do Brasil.
- Pode colocar em risco, até mesmo, o acordo do Mercosul com a União Europeia.
- primeiro, a reação rápida e vigorosa de vários setores da sociedade brasileira;
- segundo, a prontidão das Forças Armadas em responder à situação de emergência provocada pelo descontrole das queimadas na região amazônica.
Com tanto horror perante os céus, como disse um poeta,
- devemos aguentar firmes (imprensa, Congresso, Judiciários, líderes empresariais e da sociedade civil)
- para não deixar que arroubos personalistas e interesses familiares
- comprometam o futuro do país.
Creio que foi Octávio Mangabeira quem disse:
- a democracia é como uma plantinha tenra,
- precisa ser regada todos os dias para crescer.
- Trata-se agora de preservá-la.
Como mostram muitos livros recentes sobre a crise da democracia,
- a forma moderna de corrompê-la não passa por golpes militares,
- mas por atos governamentais que, quando não encontram reação à altura,
- pouco a pouco lhe vão arrancando as fibras.
O preço da liberdade é a eterna vigilância. É preciso nos manter atentos e fortes para que as instituições do Estado continuem a cumprir, com independência, as obrigações impostas pela Constituição.
Fernando Henrique Cardoso
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/31/opinion/1567204377_935262.html
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