… CONTINUAÇÃO (III)
Na Foto: Multidão de católicos à espera do resultado do conclave, em 2005: Francisco pede “a participação ativa de todos os elementos do povo de Deus”, escreve Ignace Berten. Foto © Wikimedia Commons
Tradução: Florbela Gomes
Não há na Igreja contemporânea apenas o silêncio dos responsáveis sobre aos crimes sexuais praticados, há também o silêncio imposto aos teólogos e indiretamente aos fiéis sobre as questões doutrinais.
Existe uma ligação clara entre o clericalismo e os ministérios e é urgente lançar sobre ambos um debate teológico verdadeiramente livre. (A publicação deste ensaio fica completa com esta terceira parte, depois da primeira sobre a estratégia do silêncio e a segunda acerca do clericalismo e abuso de poder.)
Não basta denunciar o clericalismo, que é, como diz o Papa, uma das principais causas da crise atual, e convidar a uma verdadeira conversão dos corações e das mentes.
Devemos fazer as perguntas
- sobre as estruturas eclesiais que geram o clericalismo
- e o fundamento teológico dessas estruturas.
Francisco pede “a participação ativa de todos os elementos do povo de Deus”.
Como teólogo, através deste trabalho, procuro trazer uma resposta modesta a esse apelo.
- Não pretendo ter todas as respostas às perguntas sobre os excessos criminosos dentro do clero nem sobre o silêncio da Igreja,
- não pretendo ter a verdade nas minhas propostas, especialmente as mais radicais que dizem respeito aos ministérios e sacramentos,
- só gostaria de trazer argumentos reflexivos para um debate teológico verdadeiramente livre que permita que todos se expressem:
- não apenas teólogos, mas também crentes com base na sua experiência de fé.
Existe uma ligação clara entre o clericalismo e os ministérios. A questão dos ministérios na Igreja deve repousar fundamentalmente sobre trabalhos que se orientam nessa direção (Schillebeeckx, por exemplo). Penso que o Papa deveria estabelecer
- uma comissão com a possibilidade de trabalhar livremente nesta questão,
- uma comissão suficientemente representativa do povo de Deus.
Um sínodo, como é concebido na atualidade e exclusivamente clerical, não é a instância adequada para responder a uma tal questão (a comissão instituída após o Concílio Vaticano II para a questão da contraceção estava a ir na direção certa, no entanto é necessário que este trabalho seja levado a sério!):
- celibato dos padres,
- acesso das mulheres aos ministérios,
- ministérios sacramentais específicos,
- mandatos ministeriais limitados no tempo, etc.,
estas questões devem ser abertas.
É necessário
- estudar seriamente a questão do poder na Igreja,
- poder sacralizado e monopolizado (ou confiscado) pelo clero.
A questão do poder também deve ser abordada lucidamente a partir da problemática de género: a análise do funcionamento da sociedade a partir dos papéis sociais também se aplica ao funcionamento da Igreja: não basta dizer que os ministérios ordenados pertencem à ordem sacramental, institucionalmente são também papéis sociais que precisam ser descodificados. No meu livro sobre o sínodo sobre a família e Amoris laetitia, sugeri inspirar-se na Igreja da Inglaterra, onde todas as decisões importantes são tomadas por três colégios:
- o dos bispos,
- dos padres
- e dos leigos,
sendo necessário obter a maioria nos três.
É urgente começar um debate livre e sem tabus
Precisamos repensar o significado e o estatuto dos sacramentos: serviço ou poder? Repensar em particular o significado dos ministérios ordenados.
- Instituição divina e implementação da vontade de Cristo
- ou iniciativa e decisão criativa da Igreja a serviço da vida das comunidades cristãs?
Nesta questão da natureza dos sacramentos surge também após a encíclica Amoris laetitia a questão da receção eucarística dos divorciados recasados civilmente:
- que estatuto eclesial para este novo casamento civil?
- Que significado e alcance do casamento sacramental?
Também é necessário trabalhar em questões antropológicas relacionadas com
- o corpo, a sexualidade e o equilíbrio emocional das pessoas,
- o reconhecimento da homossexualidade como uma orientação não escolhida
- e as consequências de tal reconhecimento, os elos entre sexualidade e poder. …
Não há na Igreja contemporânea
- apenas o silêncio dos responsáveis,
- há também o silêncio imposto aos teólogos e indiretamente aos fiéis sobre as questões doutrinais:
- há muito pouco espaço para o livre debate, para a verdadeira pesquisa teológica:
- o papel desempenhado pela Congregação para a Doutrina da Fé e o seu poder tem sido desproporcional.
Explicitamente, o cardeal Müller, ex-prefeito da Congregação atualmente afastado, declarou que
- dentro das atribuições da sua função ele tinha um mandato para enquadrar teologicamente o Papa!
- E continua a opor-se publicamente, com outros cardeais, às aberturas desejadas por Francisco.
O Papa claramente procura abrir o espaço de uma palavra livre:
- disse-o abertamente ao abrir o sínodo sobre a família;
- repete isso indiretamente ao pedir a todos os membros da Igreja que se envolvam no confronto com a crise atual.
- Nós não sairemos da crise se todos não tiverem a palavra, e especialmente aqueles que estão mais afetados.
Todo esse trabalho requer, ao mesmo tempo,
- a séria consideração da experiência dos crentes e do sensus fidei,
- o estudo crítico das fontes bíblicas e especialmente evangélicas,
- a tradição da Igreja e o conjunto das luzes antropológicas,
- quer sejam psicológicas ou filosóficas.
- Também requer um espaço real para o livre debate e sem tabus.
É óbvio que isso levará tempo. É urgente começar e com liberdade, paciência e perseverança.
Uma Igreja minoritária e pobre…
Devemo-nos desesperar com a Igreja? Algumas pessoas colocam-se esta pergunta hoje.
- Alguns, indignados ou desanimados, já responderam deixando a Igreja.
- A crise atual é provavelmente a mais séria desde há muito tempo.
- O fogo estava a começar, agora ganhou força e neste momento está longe de se apagar.
Como, no sofrimento e na fé, posso viver uma situação destas? Creio que em Jesus, Deus
- escolheu vir entre nós tornando-se homem,
- tornando-se humano com toda a beleza,
- mas também as fraquezas e os limites do ser humano.
Na base da nossa fé, há a pessoa de Jesus, confessada como Filho de Deus, e a sua mensagem, o Evangelho. A memória de Jesus e a palavra do Evangelho
- não poderiam ter feito história e terem chegado a nós hoje, se não tivessem sido instituídas, se não tivessem, no seu caminho, encarnado numa instituição.
- E é através desta instituição histórica que recebi a fé.
- Uma instituição humana em toda a linha. Com todas as belezas, fraquezas e às vezes as torpezas do ser humano.
Isso está terrivelmente provado hoje em dia. Esta crise pode, no entanto, ser benéfica.
O Papa Francisco libertou a palavra, e isso cria divisões: o debate sobre a fidelidade ao evangelho e a verdadeira tradição é difícil, mas só pode ser frutífero, abrindo-se para mais verdade, verdade humana, verdade moral, verdade espiritual.
- A descoberta das práticas sexuais e pedófilas desviantes e criminosas,
- a descoberta de maus-tratos por padres em todos os níveis da hierarquia e homens e mulheres religiosos
- não é o resultado de uma iniciativa da Igreja em si,
mas de forças externas:
- queixas das vítimas,
- jornalistas,
- investigações públicas,
- parlamentares ou outros
- e, depois, do poder judiciário.
Parece um tsunami cujas ondas devastadoras estão a atingir gradualmente outras margens. Mas aqui novamente deve ser positivo: mais transparência, mais lucidez, mais verdade. E sem dúvida um chamamento para uma vida mais humana e mais evangélica, para um maior sentido de responsabilidade.
Ouvir as vítimas tornou-se uma prioridade. Esta exigência acolhedora e benevolente responde à opção preferencial pelos pobres, que está no coração do Evangelho e é oficialmente reconhecida como um apelo dirigido a toda a Igreja desde João Paulo II.
Progressivamente vão-se dando passos nessa direção. Podemos ter a certeza de que haverão outros. Aqui também a palavra é livre,
- não apenas sobre o facto dos desvios,
- mas sobre o que, de uma maneira ou de outra, contribuiu para que ela fosse escondida.
Noutra área, também relacionada com a natureza humana da instituição, a fraude é revelada na gestão das finanças e do dinheiro. Francisco começou seriamente a pôr ordem nas finanças do Vaticano. Mas também surgem questões a todos os níveis da Igreja, dioceses, comunidades religiosas e paróquias: muitas más práticas…
Mais uma vez, na maioria das vezes as acusações vêm de fora. E isso também contribui para mais limpeza.
A nossa Igreja já perdeu em grande parte, gradualmente e por muito tempo nos nossos países, o seu peso social e a sua beleza. Cada vez mais está a tornar-se uma Igreja minoritária e pobre, pobre em meios, pobre em capacidade de influência.
Só lhe resta uma força: a do testemunho evangélico inspirado pelo Espírito. E é este Espírito que nos permite viver com fé e esperança neste tempo presente, e que nos chama a apoiar-nos uns aos outros neste caminho, caminho de conversão.
Ignace Berten
(ver elementos sobre o autor no final da primeira parte deste ensaio)
Fonte: https://setemargens.com/porque-um-tao-longo-silencio-iii-romper-o-silenci…
Leia Mais:
Leave a Reply