Micaela Diaz – Igreja Viva 01.08.19 // redamazonica.org// Foto: Daqui – Tradução: Orlando Almeida
Introdução histórica
Não é a primeira vez nem é estranho que existam na Igreja grupos divergentes e opositores, desde Paulo, que enfrentou Cefas em Antioquia (Gal 2,14), até os nossos dias.
Houve-os desde os primeiros concílios até os dois últimos. No Concílio Vaticano I (1870), um grupo de bispos e de teólogos era contra a definição da infalibilidade papal.
Alguns não aceitaram o concílio e separaram-se de Roma dando origem aos chamados Vetero-católicos.
- Outros, sem abandonar a Igreja,
- não quiseram participar ou assistir à última votação conciliar sobre a infalibilidade
- e algum deles ficou tão irritado que jogou todos os documentos conciliares no rio Tibre.
Um século depois (1970), a problemática da infalibilidade ressurgiu, com as disputas teológicas entre
- a voz crítica de Hans Küng, de um lado,
- e as de Karl Rahner, Walter Kasper e outros teólogos alemães, mais conciliadores, do outro.
A controvérsia prosseguiu entre historiadores críticos ao Vaticano I,
- como A. B. Hasler, discípulo de Küng,
- e outros historiadores mais ponderados,
- como Yves Congar, Hoffman e Walter Kasper.
Küng foi afastado do ensino teológico.
Na época de Pio XII,
- quando em 1950 o Papa publicou a encíclica Humani generis contra a chamada Nouvelle théologie,
- alguns teólogos foram destituídos das suas cátedras,
- entre os quais os jesuítas de Fourvière-Lyon, Henri de Lubac e Jean Daniélou,
- e os dominicanos de Le Saulchoir, Yves Congar e Dominique Chénu.
Mais tarde todos eles foram nomeadoss peritos teológicos por João XXIII, no Vaticano II.
Neste concílio surgiu uma forte oposição liderada pelo bispo francês Marcel Lefèbvre, que
- rejeitou o Concílio Vaticano II
- por considerá-lo neo-modernista e neo-protestante
- acabou sendo excomungado por João Paulo II em 1988,
- quando começou a ordenar bispos à margem de Roma, para a sua Fraternidade São Pio X.
Paulo VI, depois da sua encíclica Humanae vitae, de 1968, sobre o controle de natalidade,
- foi respeitosamente contestado por numerosas conferências episcopais
- que, sem negar os valores do seu conteúdo,
- pediam uma maior complementação e matização.
Durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI,
- mais de 100 teólogos foram questionados, admoestados,
- obrigados a guardar silêncio,
- alguns removidos das suas cátedras e um até mesmo excomungado.
Vale a pena fazer este preâmbulo histórico
- para não nos surpreendermos com o fato de, ainda hoje,
- diante da nova imagem da Igreja proposta por Francisco,
- surgirem vozes discordantes e críticas fortemente contrárias ao seu pontificado.
Através do vaivém da história deduzimos que o tipo e a orientação da oposição dependem sempre do momento histórico que se vive:
- são vozes progressistas e proféticas em épocas de Cristandade clássica ou de Neo-cristandade,
- e vozes reacionárias, fundamentalistas e conservadoras
- em épocas de uma reforma eclesial que deseja retornar às fontes evangélicas e ao estilo de Jesus.
Críticas a Francisco
Atualmente, existe um forte grupo de oposição contra a Igreja de Francisco:
- leigos, teólogos, bispos e cardeais
- que desejariam a sua renúncia ou o seu rápido desaparecimento
- e esperam um novo conclave para mudar o rumo da Igreja atual.
Não queremos fazer aqui uma investigação sócio-histórica, muito menos um espetáculo midiático, tipo faroeste, entre bons e maus, por isso preferimos não citar os nomes e sobrenomes dos opositores que hoje estão querendo ‘esfolar vivo’ Francisco, mas queremos sim
- detectar quais são as linhas de fundo teológico subjacentes a esta sistemática oposição a Francisco,
- saber qual é o tema da controvérsia.
As críticas a Francisco têm duas dimensões,
- uma teológica
- e outra mais propriamente sócio-política,
embora, como veremos mais adiante, muitas vezes as duas linhas sejam convergentes.
Os cardeais inimigos declarados de Francisco: Da esquerda para a direita, primeiro em cima e depois em baixo: cardeais Raymond Burke, Joachim Meisner (agora falecido), Walter Brandmüller e Carlo Caffarra. Mas ainda falta o Cerdeal Müller, o que queria ensinar teologia ao Papa Francisco/O dogma da fé – WordPress.com
Cardeal Müller, o mais recente inimigo / Medjugorje Hoje
1. Crítica teológica.
A crítica teológica baseia-se na convicção de que Francisco
- não é um teólogo,
- mas alguém que vem do Sul, do fim do mundo,
- e de que essa falta de competência teológica explica as suas imprecisões e até seus erros doutrinários.
Essa falta de competência teológica de Francisco
- é posta em contraste com a competência acadêmica de João Paulo II
- e, obviamente, de Josef Ratzinger-Bento XVI.
Essa falta de teologia de Francisco
- explicaria suas perigosas declarações sobre a misericórdia de Deus em Misericordiae Vultus [O rosto da misericórdia];
- explicaria a sua tendência filo-comunista para com os pobres e com os movimentos populares e a piedade popular como lugar teológico em Evangelii Gaudium – A Alegria do Evangelho (EG 197-201);
- explicaria a sua falta de teologia moral, ao abrir a porta dos sacramentos da penitência e da eucaristia, – em alguns casos e prévio discernimento pessoal e eclesial, – para pessoas unidas por matrimônios católicos que se separararam e se casaram novamente, como aparece numa nota do capítulo oitavo de Amoris Laetitia – A Alegria do Amor (AL 305, nota 351);
- explicaria a sua pouca competência científica e ecológica manifestada em sua encíclica sobre o cuidado da casa comum (Laudato si´);
- explicaria o escândalo da sua excessiva ênfase na misericórdia divina (Misericordiae Vultus), que deprecia a graça e a cruz de Jesus.
Diante desta acusação, gostaria de recordar uma afirmação clássica de Tomás de Aquino que distingue entrea
- a cátedra magisterial, típica dos teólogos professores das universidades,
- e a cátedra pastoral que corresponde aos bispos e pastores da Igreja [1].
Newman retoma esta tradição afirmando que, embora às vezes possa haver tensão entre as duas cátedras, no fim há convergência entre elas.
Esta distinção aplica-se a Francisco que,
- embora como padre jesuíta Jorge Mario Bergoglio tenha estudado e ensinado teologia pastoral em San Miguel de Buenos Aires,
- agora faz pronunciamentos que pertencem à cátedra pastoral do bispo de Roma.
Não tem a intenção de se pronunciar de forma douta e concludente como teólogo mas como pastor. Como já foi dito com certo humor, devemos passar do Bergoglio da história para o Francisco da fé.
O que no fundo incomoda os seus detratores é que a sua teologia parte da realidade,
- da realidade da injustiça,
- da realidade da pobreza,
- da realidade da destruição da natureza
- e da realidade do clericalismo eclesial.
Não os incomoda que ele abrace crianças e enfermos, mas
- incomoda-os sim que ele visite Lampedusa e campos de refugiados e migrantes como Lesbos,
- incomoda-os que diga que não se devem construir muros contra os refugiados mas pontes de diálogo e de hospitalidade;
- irrita-os que, seguindo João XXII, ele diga que a Igreja deve ser pobre e dos pobres e que os pastores devem ter cheiro de ovelhas;
que diga
- que a Igreja deve ser uma Igreja em saída
- que vá às periferias
- e que os pobres são um lugar teológico.
Irrita-os ao dizer
- que o clericalismo é a lepra da Igreja e ao enumerar as 14 tentações da Cúria do Vaticano,
- que vão desde sentirem-se imprescindíveis e necessários até ao anseio por riquezas, à vida dupla e ao Alzheimer espiritual.
E irrita-os por acresentar que estas também são tentações
- das dioceses,
- das paróquias
- e das comunidades religiosas.
Irrita-os ao dizer que a Igreja tem que ser uma pirâmide invertida,
- com os leigos em cima,
- e o papa e os bispos em baixo
e irrita-os por dizer
- que a Igreja é poliédrica
- e acima de tudo sinodal,
- que todos estamos fazendo o mesmo caminho juntos,
- que temos de ouvir e dialogar;
irrita-os que, em Episcopalis communio, fale
- de Igreja sinodal
- e da necessidade de nos ouvirmos uns aos outros.
Causa contrariedade aos grupos conservadores que Francisco tenha agradecido
- a Gustavo Gutiérrez,
- a Leonardo Boff,
- a Jon Sobrino
- e a José María Castillo
pelas suas contribuições teológicas e tenha anulado as suspensões ‘a divinis’
- de Miguel d´Escoto
- e Ernesto Cardenal.
Causa-lhes estranheza
- que tenha respondido a Küng, que tinha escrito a Francisco sobre a necessidade de repensar a infalibilidade,
- que tenha respondido chamando-o de “querido irmão” (Lieber Mitbruder)
- e dizendo que levaria em consideração as suas observações
- e que estava disposto a discutir a infalibilidade.
E desagrada a muitos que Francisco
- tenha canonizado Romero, o bispo mártir salvadorenho,
- considerado por muitos como um comunista e um idiota útil da esquerda,
- cuja causa tinha ficado bloqueada durante anos.
Irrita-os ao dizer que
- não é alguém capaz de julgar os homossexuais,
- ao afirmar que a Igreja é feminina
- e que se não se escutarem as mulheres, a Igreja ficará empobrecida e parcial.
A sua invocação à misericórdia, uma misericórdia que está no centro da revelação bíblica,
- não o impede de falar de tolerância zero contra os abusos de membros significativos da Igreja com menores e mulheres,
- um crime monstruoso, do qual é preciso pedir perdão a Deus e às vítimas,
- reconhecer o silêncio cúmplice e culpado da hierarquia,
- buscar reparação, proteger os jovens e as crianças,
- evitar que se venha a repetir.
E a sua mão não treme quando ele degrada e destitui o culpado, seja ele cardeal, núncio, bispo ou presbítero.
Evidentemente,
- não é que ele não seja teólogo,
- mas é que a sua teologia é pastoral:
Francisco
- passa do dogma ao kerigma,
- dos princípios teóricos ao discernimento pastoral e à mistagogia.
E a sua teologia não é colonial, mas do Sul e isso incomoda o Norte.
2. Crítica socio-política.
Face aos que acusam Francisco de terceiro-mundista e comunista, deve-se afirmar que
- as suas mensagens
- estão em perfeita continuidade com a tradição profética, bíblica e da doutrina social da Igreja.
O que machuca é a sua clarividência profética:
- não a uma economia de exclusão e da inequidade,
- não a uma economia que mata, não a uma economia sem rosto humano,
- não a um sistema social e econômico injusto que se cristaliza em estruturas sociais injustas,
- não a uma globalização da indiferença,
- não à idolatria do dinheiro,
- não a um dinheiro que governa em vez de servir,
- não a uma desigualdade que gera violência (que ninguém se escude em Deus para justificar a violência),
- não à insensibilidade social que nos anestesia diante do sofrimento dos outros,
- não ao armamentismo e à indústria da guerra, não ao tráfico de seres humanos,
- não a qualquer forma de morte provocada (EG 52-75).
Francisco não faz mais do que atualizar o mandamento de não matar e defende o valor da vida humana, do começo ao fim, repetindo-nos hoje a pergunta de Javé a Caim: “Onde está o teu irmão?”
Também incomoda a crítica de Francisco ao paradigma antropocêntrico e tecnocrático que
- destroi a natureza,
- contamina o meio ambiente,
- ataca a biodiversidade
- e exclui os pobres e os indígenas de uma vida humana digna (LS 20-52).
Desperta a ira das multinacionais quando critica
- as empresas madeireiras, petroleiras, hidroelétricas e de mineração
- que destroem o meio ambiente,
- prejudicam os indígenas daquele território
- e ameaçam o futuro da nossa casa comum.
Irrita quando critica os líderes políticos incapazes de tomar resoluções corajosas (LS 53-59).
E já está começando a incomodar o anúncio do próximo sínodo de outubro de 2019 sobre a Amazônia, que é um exemplo concreto da necessidade de
- proteger o meio ambiente
- e salvar os grupos indígenas da Amazônia do genocídio.
Alguns altos dignitários da igreja disseram que o Instrumentum laboris, ou seja o Documento Preparatório do Sínodo,
- é herético,
- panteísta
- e que nega a necessidade da salvação em Cristo.
Outros comentaristas
- concentraram-se unicamente na sugestão de ordenar homens casados indígenas para poderem celebrar a Eucaristia em lugares remotos da Amazônia,
- mas silenciaram totalmente sobre a denúncia profética que este Documento Preparatório do Sínodo faz contra a destruição extrativista que está sendo cometida na Amazônia,
- que causa da pobreza e da exclusão dos povos indígenas, provavelmente nunca tão ameaçados como agora.
A modo de conclusão
Há sem dúvida uma convergência entre a crítica teológica e a crítica social que se faz a Francisco:
- os grupos reacionários eclesiais
- alinham-se com os poderosos grupos econômicos e políticos, especialmente do Norte.
Podemos até perguntar-nos
- se esta recente explosão de abusos sexuais que afeta diretamente a figura de Francisco, que é ao mesmo tempo pastor reformista da Igreja e líder mundial,
- foi pura casualidade e simples coincidência.
Basicamente, a oposição a Francisco é uma oposição
- ao Concílio Vaticano II
- e à reforma evangélica da Igreja que João XIII queria promover.
Francisco situa-se na linha de todos os profetas que quiseram reformar a Igreja, junto com
- Francisco de Assis,
- Inácio de Loyola,
- Catarina de Sena
- e Teresa de Jesus,
- Angelo Roncalli,
- Helder Câmara,
- Dorothy Stang,
- Pedro Arrupe,
- Ignacio Ellacuría
- e o nonagenário bispo Casaldáliga.
Francisco ainda tem muitos assuntos pendentes para uma reforma evangélica da Igreja. Não sabemos qual nem como será a sua futura trajetória, nem o que acontecerá no próximo conclave.
Os Papas passam, mas o Senhor Jesus continua presente e anima a Igreja até o final dos séculos, o mesmo Jesus que era tido como
- comilão e beberrão,
- amigo de pecadores e de prostitutas,
- endemoniado, louco, sedicioso e blasfemo.
E acreditamos que o Espírito do Senhor que desceu sobre a Igreja primitiva no Pentecostes nunca a abandona e não permitirá que, a longo prazo, o pecado triunfe sobre a santidade.
E enquanto isso, como Francisco pede sempre, – desde a sua primeira aparição, na sacada de São Pedro no Vaticano como bispo de Roma, – até hoje, oremos ao Senhor por ele,
- para que sua esperança não desfaleça
- e ele confirme a fé dos seus irmãos.
E se não podemos orar ou não somos crentes, desejemos-lhe pelo menos algo de bom.
1 Quodlibet III,9, ad 3;In IV Sent, d 19,2.2 1 q 2 ad 1
Víctor Codina sj.
Fonte: https://www.iglesiaviva.net/2019/08/01/los-opositores-a-la-iglesia-de-francisco/
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