O que mais não falta por esse desvairado mundo é quem ande a matar o próximo em nome da sua crença religiosa.
Sim, matam-se pessoas devido a disputas religiosas e teológicas, tal como se matam pessoas em disputas desportivas, políticas, familiares ou sociais.
E ninguém em seu perfeito juízo propõe acabar com as famílias, a vida pública, a cidadania ou o desporto por causa disso.
Ainda há poucos dias uma discussão entre dois pastores em Timbaúba (Pernambuco, Brasil), sobre questões teológicas e interpretações bíblicas terminou com a morte de um deles. O indivíduo que assassinou o colega à facada foi preso em flagrante e levado para a delegacia local. A discussão terá acontecido nas traseiras do templo onde ambos serviam. O homicida ainda tentou esconder-se numa residência mas foi capturado e confessou o crime. A vítima depois de ser esfaqueada tentou fugir mas o agressor atingiu-o com uma pedra.
Também em Setembro de 2016,
- um debate teológico informal entre dois pastores americanos terminou com o homicídio de um deles,
- depois de a discussão descambar para a intolerância e a violência.
Discutiam no pátio de um lar de idosos nos subúrbios de Chicago, Illinois (EUA), a respeito de questões ligadas à Bíblia e à espiritualidade, como era hábito, quando um deles puxou a arma e deu dois tiros na cabeça do outro, que teve morte imediata, acto que foi registado por uma câmara de videovigilância. O assassino prestava assistência espiritual naquele centro de solidariedade.
Sim,
- matam-se pessoas devido a disputas religiosas e teológicas,
- tal como se matam pessoas em disputas desportivas, políticas, familiares ou sociais.
E ninguém em seu perfeito juízo propõe acabar com as famílias, a vida pública, a cidadania ou o desporto por causa disso. A questão
- não está nas diferenças político-partidárias, clubísticas, familiares ou religiosas, que sempre existiram, existirão e é saudável que existam,
- mas sim na atitude de respeito pelo outro e aceitação da diferença de opiniões e sensibilidade de cada um.
É claro que há contextos nos quais se torna mais chocante tal manifestação de intolerância e violência, como a religião ou a família. É suposto que o âmbito familiar constitua um espaço de paz e protecção mútua, mas é onde surgem frequentemente índices de violência relevantes – a chamada violência doméstica – e a maior taxa de abuso sexual infantil, como os estudos sobre pedofilia demonstram.
Assim como é suposto que o território relacional de uma mesma comunidade religiosa, enquanto família espiritual, se revista de segurança, crescimento pessoal, paz e edificação mútua. Mas também é aí que pode surgir o abuso religioso de carácter espiritual, psicológico e por vezes até físico.
- Os cínicos dirão que a religião faz mal às pessoas.
- Mas dirão o mesmo da família?
- Ou da vida associativa?
- Ou da participação política?
A solução será acabar com tudo quanto sejam comunidades religiosas, famílias, clubes, associações, colectividades e partidos políticos? E resta o quê?
Como é bom de ver, existem e existirão sempre problemas onde coexistirem pessoas.
- São as pessoas que criam os problemas e não as organizações.
- Estas podem, no limite, não os prevenir ou até potenciar, mas não os criam.
- Um pedófilo não o é por causa da sua família, mas apesar dela.
- Um corrupto não o é por causa da instituição onde trabalha, mas apesar dela.
- Os criminosos são sempre as pessoas e não as organizações.
Culpar as organizações é uma forma de diluir e branquear as responsabilidades individuais.
Fala-se muito de violência inter-religiosa (entre diferentes expressões religiosas) mas pouco de violência intrarreligiosa (dentro da mesma religião), que não é menos evidente e preocupante.
Sim, a Teologia pode matar, como qualquer outra coisa. Basta lembrarmo-nos dos horrores perpetrados pelos talibãs (estudantes de teologia islâmica) do Afeganistão. Como sempre, é a pulsão do poder que está por detrás da violência em qualquer destes âmbitos sociais, nem que seja o poder de ter razão.
Os casos acima citados revelam pelo menos duas coisas:
- fanatismo religioso, com a correspondente incapacidade de tentar escutar, compreender e respeitar o ponto de vista alheio;
- falta de preparação pastoral ou deslealdade para com a vocação de ministro do Evangelho;
- e sobretudo a pulsão de Caim que o levou a assassinar o irmão:
“E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra”(Génesis 4:10).
Ludwig Feuerbach dizia que
“Quando a moral se baseia na teologia, quando o direito depende da autoridade divina, as coisas mais imorais e injustas podem ser justificadas e impostas”.
- Os triunfalismos religiosos,
- tal como os modelos absolutistas de governo,
- devem ser arrumados na prateleira da História.
A Modernidade veio trazer capacitação aos indivíduos, libertando-os de soberanias abusivas ou ilegítimas.
Mas agora os indivíduos não podem, por sua vez, comportar-se socialmente como se fossem soberanos dos outros, que são mais fracos ou que pensam e sentem diferente, pois sempre que assim fizerem revelam-se indignos da sua própria liberdade.
José Brissos-Lino
é director do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona e coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo; texto publicado também na Visão Online.
Fonte: https://setemargens.com/a-teologia-mata/
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