José Brissos-Lino – 29/05/2019
Foto: Alicia Llop/ Getty Images
Muito se fala hoje em espiritualidade procurando distingui-la de religião.
No fundo, o que se pretende é aceder à Transcendência sem uma mediação institucional, em parte devido à péssima carga histórica de conflitualidade que as religiões carregam, devido à tentação do poder
De certo modo pode dizer-se que a religião institucionalizada falhou em parte na sua missão, por várias ordens de razões.
* Desde logo porque a sua praxis pode ser algo castradora, mas também devido ao excesso de ritualização a que obriga. Sabemos da importância de uma liturgia de culto minimamente estruturada numa religião de dimensão universal, em particular devido à importância da simbólica, que é fundamental nas religiões e geradora de sentido e orientação catequética.
Mas uma ordem de culto – como outras dimensões práticas da expressão da fé – extremamente rígida acaba por matar alguma espontaneidade, que é inerente à vida humana e à expressão das emoções, podendo levar à perda de sentido intrínseco.
- Os actos repetitivos, até à exaustão,
- tendem a perder o seu significado,
- sendo executados em perda de sentido.
Mesmo que não queiramos essa é uma limitação do comportamento humano. É por isso que rituais como tomar banho, lavar os dentes ou subir no elevador do nosso prédio são normalmente executados sem pensar, de forma mecânica.
* Outra questão que sugere a falência parcial da religião institucionalizada acontece
- sempre que os seus princípios doutrinários se encontram afastados da realidade da vida,
- devido ao difícil equilíbrio entre a tradição religiosa e a sociedade contemporânea,
- que se caracteriza por ser altamente dinâmica.
Os crentes apercebem-se e sofrem na pele esta discrepância, que não compreendem e que provoca o seu espírito crítico. Muitos optam por filtrar tais orientações, deixando de lado aquilo com que não concordam. No caso português ouvimos muitos católicos confessos dizerem: “Sou católico mas não concordo com…”
* Entretanto a questão mais grave será talvez a dos maus exemplos dados ao longo da história pelas estruturas das instituições religiosas. Desde logo
- as guerras, perseguições e opressões que promovem,
- mas também aquela irritante tendência para se queixarem de falta de liberdade nas regiões onde são minoritárias,
- enquanto vão gozando de privilégios onde constituem a maioria,
- por vezes até desenvolvendo mancebia com o poder secular,
- não se importando com a falta de direitos dos sectores religiosas aí em minoria,
- o que lhes retira toda a moral em termos globais.
O que está na onda mediática é o abuso sexual de sacerdotes católicos no mundo, embora se registem casos de outras comunidades religiosas com o mesmo tipo de problemas, mas os maus exemplos são inúmeros, como se sabe, também em matéria de manobras políticas e de corrupção.
* Por outro lado a Modernidade
- trouxe o primado da pessoa sobre o colectivo
- e do indivíduo sobre o grupo,
pelo que as pessoas já não se sujeitam a orientações superiores de forma acéfala, sem questionar a sua legitimidade e razoabilidade.
E se umas o fazem com base no bom senso outras há que tendem a discutir tais questões até mesmo em termos teológicos e científicos.
* Por fim, a secularização levou as sociedades ocidentais do materialismo – enquanto utopia da felicidade que desembocou em desencanto – a uma nova busca de sentido e a formas de espiritualidade que muitas expressões religiosas não conseguiram oferecer. A importância do
- auto-conhecimento,
- auto-controlo,
- relaxamento e práticas de meditação, por exemplo,
começaram a dar às pessoas aquilo que
- os dogmas,
- as liturgias rígidas,
- as penitências
- e o eterno peso da culpa
não conseguiram.
Tanto a religião como a espiritualidade podem revelar-se como vias falsas para obter uma relação com Deus.
- Se a religião tem frequentemente tendência para substituir uma relação genuína com Deus pela observância fria de rituais,
- por sua vez a espiritualidade tende a substituir tal relação por uma falsa conexão com o mundo espiritual.
Dizia Pedro Abrunhosa em entrevista ao jornal Público (30/11/18):
“Vivemos um período de profunda agonia espiritual. A palavra espírito, na sua génese, quer dizer força vital. Uma palavra que está associada ao início do pensamento não mitológico, que faz uma clivagem entre o pensamento reflexivo e o não-reflexivo. Portanto, espírito não é apenas uma coisa religiosa. Para mim é a atitude perante a profundidade, a diferença entre o ser e o parecer.”
Mais preocupadas com as questões do poder, as instituições religiosas passaram muitas vezes ao lado dos anseios profundos da alma humana, da valorização e empoderamento do indivíduo, que é muito mais do que um número ou uma ovelha passiva e descartável do rebanho espiritual.
E aí entrou o coaching religioso, a auto-ajuda e as novas propostas metafísicas.
José Brissos-Lino
Doutorado em Psicologia e Especialista em Ciência das Religiões; Diretor do Mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona; Coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo; Investigador do CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias – Universidade de Lisboa) e do CIPES (Centro de Investigação em Política, Economia e Sociedade – Universidade Lusófona). Desenvolve há muitos anos intensa atividade em instituições culturais, humanitárias e de solidariedade social, algumas das quais fundou.
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