Foto: Um raio sobre a cúpula de S. Pedro / photos.com.br
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado em Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 29-02-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
“O papa imóvel”, como os seus críticos “de esquerda” o qualificam, demonstrou uma extraordinária coragem ao construir o evento que se desenvolveu nesses dias em Roma sobre “A proteção dos menores na Igreja”.
Deixando Pedro em paz, que, como se sabe, era um medroso,
- é difícil encontrar entre os antecessores de Francisco um papa corajoso como ele, senão talvez Gregório Magno e poucos outros.
- De fato, ele teve a coragem de repensar a fundo a Igreja
- e de mostrá-la com palavras e gestos simples como uma Igreja possível.
E talvez aqui esteja uma chave para entrever um futuro que hoje ainda nos parece tão velado e coberto.
Enquanto isso, foi preciso uma grande coragem evangélica (“in sacris”, ela se chama parrésia)
- para reunir patriarcas, cardeais, bispos e religiosos de toda a terra em uma liturgia penitencial
- para acusarem a si mesmos “como pessoas e como instituição”
- e induzi-los a passar de uma “atitude defensivo-reativa em salvaguarda da Instituição”
- a uma busca sincera e decidida pelo bem da comunidade “dando prioridade às vítimas de abuso em todos os sentidos”.
Assim, vimos
- os confessores se confessando,
- os perdoadores pedindo perdão,
- os ministros impetrando a si mesmos antes que aos fiéis que lhes foram confiados:
algo “bastante incomum” nos Palácios do “poder” terreno e celeste do Vaticano, diz Rosanna Virgili com muito tato; digamos, também, que se trata de algo que nunca aconteceu antes.
Foi preciso coragem para convocar
- não um Concílio
- nem mesmo um Sínodo, que são coisas reservadas ao clero,
- mas um inédito encontro mundial que, “de maneira sinodal”,
- envolveu os leigos e, entre eles, as mulheres, quase antecipando um Igreja do futuro sem mais “clericalismo”,
- ou seja, sem mais o domínio reservado de uma classe de ministros ordenados do sexo masculino e celibatários, o que, segundo o papa, não é o melhor rosto da Igreja.
De fato, “o melhor rosto da Igreja”, disse Francisco no discurso conclusivo,
- “é o santo e paciente povo de Deus; e será justamente esse povo santo de Deus que nos libertará da chaga do clericalismo, que é o terreno fértil para todas essas abominações”;
- as abominações são os abusos contra as crianças, que não são apenas abusos sexuais, mas também, como o papa insiste, especialmente se cometidos pelo clero, abusos de consciência e de poder.
Assim, precisamente nesse drama que a Igreja está vivendo, assoma-se, como o Concílio Vaticano II pressentiu,
- não uma Igreja na qual o laicato é um personagem em busca de um autor, necessitado de uma teologia que o justifique,
- mas sim uma Igreja não clerical, na qual também cai o pressuposto da discriminação contra as mulheres.
E aqui também foi preciso coragem para explicar, como o papa fez depois de ouvir o relato de uma mulher, a Dra. Ghisoni,
- que ela não havia sido convidada para falar em virtude de um improvável “feminismo eclesiástico” (contra a proibição de fazer as mulheres falarem nas Igrejas transmitido por Paulo aos Coríntios),
- mas porque convidar uma mulher para falar sobre as feridas da Igreja é convidar a Igreja a falar sobre si mesma, sobre as feridas que tem.
“E esse é o passo que nós devemos dar com muita força”, disse o papa; reconhecer que “a mulher é a imagem da Igreja que é mulher, é esposa, é mãe”, e ela traz o seu estilo. “Sem esse estilo, falaríamos do povo de Deus, mas como organização, força sindical, não como família nascida da mãe Igreja.”
É claro que é preciso dar mais funções à mulher na Igreja, mas assim não se resolve o problema, pensa o papa:
“Trata-se de integrar a mulher como figura da Igreja no nosso pensamento, pensar a Igreja com as categorias de uma mulher”.
É a sugestão que, em perspectiva mais geral, já era dada pelo filósofo e teólogo Italo Mancini, quando, diante dos problemas do mundo,
- propunha o contramovimento do “princípio feminino”, o direito de Antígona,
- o direito do mais humilde, do mais elementar,
- daquilo que está mais ligado aos nutrimentos terrestres do que à piedade,
- contra aquilo que é faraônico, “zêusico” e ligado aos esplendores do céu,
- àquele domínio do alto que é tão próximo do trono dos poderosos: piedade contra majestade.
Mas, neste ponto,
- como poderíamos continuar excluindo as mulheres dos ministérios eclesiais
- com o argumento de que Jesus era homem?
E foi preciso coragem para mudar o objeto do encontro, que, no início, devia se referir não só à proteção dos menores, mas também dos “adultos vulneráveis”, isto é, a homossexualidade, mas depois se concentrou nas crianças.
Os polemistas se aproveitaram disso para acusar Francisco de subestimar o impacto da homossexualidade no clero, mas a separação dos dois temas permitiu que
- a “cúpula” não reduzisse a violência contra as crianças a um problema interno à Igreja, quase corporativo, banalmente explicado com o vínculo à castidade dos padres, como diz o vulgo,
- mas de torná-lo um grande tema de tomada de consciência mundial,
de levantar o problema da proteção dos menores na própria humanidade, não só na Igreja, porque há quase 85 milhões de crianças, esquecidas por todos, que são vítimas de toda espécie de abuso:
- as crianças-soldado,
- os menores prostituídos,
- as crianças desnutridas,
- as crianças sequestradas e muitas vezes vítimas do monstruoso comércio de órgãos humanos, ou transformadas em escravas,
- as crianças vítimas das guerras,
- as crianças refugiadas,
- as crianças abortadas
e assim por diante.
O encontro promovido pelo Papa Francisco, assim, alcançou a extensão e a profundidade da análise e da denúncia que, ainda em 1995, haviam sido levantadas em três sessões do Tribunal Permanente dos Povos, em Trento, Macerata e Nápoles; já naquela época, haviam sido reveladas
- as monstruosas violações da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança,
- e a dor das crianças tinha sido assumida como indicador da dor do mundo
- e advertência contra a precipitada degradação do estado do mundo que, depois, se manifestaria cada vez mais até hoje.
Mas a assunção do problema no âmbito eclesial
- permitiu ir além das explicações e dos prognósticos de ordem sociológica ou política;
- permitiu lembrar as ideologias sacrificiais que, em religiões antigas, chegavam à oferta de seres humanos, muitas vezes de crianças,
- e reconhecer também hoje, em tal crueldade, “um sacrifício ao deus poder, dinheiro, orgulho, soberba”, que, portanto, deve ser abolido assim como os sacrifícios antigos;
- e permitiu captar aquela que Francisco chamou de “significação existencial”, ulterior a esse fenômeno criminoso, que está na irrupção do mistério do mal e na sua pretensão de domínio do mundo.
“A mão do mal que não poupa sequer a inocência dos pequenos” (como fez em Herodes) e encontra reação e resposta também na ordem dos meios espirituais, das medidas sugeridas pela fé, na salvação que vem de Deus.
E isso permitiu à Igreja desenhada pelo papa recuperar também aquele rosto severo de Deus e aquele “santo temor de Deus” que podiam parecer se dissolver na grande pregação da misericórdia; só que a ira de Deus não é mais apresentada como a do Dies irae de Mozart e Tomás de Celano que queima “o século em faíscas” e que prelados tardo-fariseus ainda identificam nos terremotos, nos tsunamis e em outras calamidades naturais, mas é vista refletida “na raiva, justificada, das pessoas”, “no grito silencioso dos pequenos”, assim como Paulo VI a identificara na “ira dos pobres”.
Acaba, assim, hoje, a Igreja incapaz de ouvir esse grito, e, se ela mesma se fizer esse grito no mundo, uma história nova poderá começar.
Raniero La Valle
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/587033-francisco-e-a-ira-de-deus-artigo-de-raniero-la-valle
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