
Segundo apurou o jornal paulista, o governo Bolsonaro
- pretende conter o que considera “um avanço da Igreja Católica na liderança da oposição,
- no vácuo da derrota e perda de protagonismo dos partidos de esquerda”.
Um alerta da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e dos comandos militares relatam
- recentes encontros de cardeais brasileiros com o Papa Francisco, no Vaticano,
- para discutir a realização do Sínodo sobre Amazônia,
- que reunirá em Roma, em outubro, bispos de todos os continentes.
O debate irá abordar
- a situação de povos indígenas,
- mudanças climáticas provocadas por desmatamento
- e a questões ligadas aos quilombolas e às comunidades tradicionais amazônicas.
Ainda segundo a reportagem, o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI), comandado pelo General Heleno, também monitora o clero e lideranças católicas através de informações do Comando Militar da Amazônia e do Comando Militar do Norte.
Será mesmo que o Sínodo da Amazônia é a razão da arapongagem oficial à Igreja Católica?
Vejamos:
1. A Igreja Católica e a Ditadura Militar:
Como é sabido,
- apesar de ter apoiado o golpe militar de 1964,
- a igreja católica foi a instituição que veio a ocupar o lugar de protagonismo
- nas denúncias contra as barbaridades praticadas durante da ditadura.
Foram vários os bispos e lideranças católicos que tomaram dianteira na luta contra a regime militar. Uma das figuras mais emblemáticas
- para a repercussão internacional das graves violações aos direitos humanos praticadas no período
- foi o arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara,
- que viajou o mundo inteiro à época denunciando os horrores da ditadura.
A partir de 1968, auge da tortura com o AI 5, as peregrinações do arcebispo renderam-lhe quase duas dezenas de títulos de doutor honoris causa em universidades nos Estados Unidos e na Europa. As viagens ao exterior daquele que era chamado de “arcebispo vermelho” pelos militares eram cobertas com atenção pela imprensa internacional. Na França, por exemplo,
- Dom Helder participava de debates transmitidos ao vivo pela TV.
- O arcebispo escancarou para o mundo o que ocorria nos porões da ditadura.
Dom Helder foi perseguido de várias formas.
- O Padre Antônio Henrique, amigo pessoal e assessor da Pastoral da Juventude,
- foi sequestrado em maio de 1969, torturado e morto na madrugada do dia 27
- por um grupo do Comando de Caça aos Comunistas e por agentes da polícia civil de Pernambuco.
O crime do Padre Antônio Henrique Pereira Neto foi oficialmente esclarecido pela Comissão da Verdade de Pernambuco. Como conclusão da investigação,
- a morte do padre foi considerada um crime político,
- contrariando as várias versões oficiais defendidas na época,
- de que teria sido um homicídio comum, até relacionado a drogas ou passional.
- Os detalhes foram apresentados no relatório do Volume 2, do Caderno da Memória e Verdade da Comissão, em 2017.
Segundo a Comissão da Verdade de Pernambuco, a morte foi uma forma utilizada por membros da ditadura militar para coibir as atitudes libertadoras de Dom Hélder Câmara.
Os militares sabem muito bem que,
- apesar da Igreja Católica ter perdido influência política nos últimos tempos,
- a instituição ainda goza de muita credibilidade
- e, além de grande capilaridade no país,
- poderá reeditar, no plano internacional, denúncias de violações de direitos que venham a ser institucionalizadas pelo governo atual.
Portanto, o enquadramento do episcopado nesse início de governo pode ser uma forma de dar um recado à CNBB, haja vista a experiência pretérita.
Porém, como ocorrera durante a ditadura,
- para além dos bispos,
- milhares de sacerdotes, religiosas, religiosos e leigos católicos
- atuam nas bases da sociedade
- e agem diferente dos neopentecostais católicos da atualidade.
Esses líderes não estão dispostos a ficarem somente louvando a Jesus enquanto a violência e as violações aos direitos humanos país assombram o país afora.
2. O “perigoso comunista” Papa Francisco:
É de conhecimento geral que o Papa Francisco é um oponente ferrenho de pelo menos dois dos principais motes do governo Bolsonaro:
- o ultraliberalismo
- e o menosprezo aos segmentos mais vulneráveis da sociedade,
- aqui inclusos indígenas e comunidades tradicionais.
Francisco, honrando aquele que lhe empresta o nome, é um defensor radical da natureza. Na encíclica “Laudato si’, sobre o cuidado da Casa Comum”, de 2015, o Papa Francisco
- critica o consumismo e o desenvolvimento irresponsável
- e faz um apelo à mudança e à unificação global das ações
- para combater a degradação ambiental e as alterações climáticas.
Sobre o aquecimento global, por exemplo, escreveu o Papa:
“A humanidade é chamada a reconhecer a necessidade de mudanças de estilo de vida, produção e consumo, a fim de combater este aquecimento ou, pelo menos, as causas humanas que o produzem ou agravam”.
No ano passado, o Papa aprovou e mandou divulgar um documento sobre questões financeiras sob o título de
“Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro”.
Trata-se de
- um estudo recheado de análises técnicas,
- que é um verdadeiro petardo sobre a forma como o sistema financeiro neoliberal
- está escravizando o mundo e e promovendo uma das maiores concentrações de renda da história do capitalismo.
Por diversas vezes Francisco tem demonstrado e denunciado o domínio de uma “economia que mata” e exclui.
- Denuncia governos submissos à ditadura do capital
- e que colocam os seres humanos, principalmente os que chama de“descartáveis” em segundo plano.
Em relação ao Brasil, o Pontífice deu vários sinais de discordância
- de políticas neoliberais tomadas durante o governo Temer,
- sem contar sua posição contrária aos “golpes brandos” que aconteceram na América Latina,
- incluso o impeachment de Dilma Rousseff.
É óbvio que os generais sabem que
- o Papa Francisco acompanha a muito tempo a situação política e social brasileira
- e, apesar de não interferir diretamente nos assuntos domésticos,
- tem sinalizado ao episcopado nacional que a igreja tem lado:
- dos pobres e dos excluídos; na defesa dos direitos humanos e da dignidade humana; na defesa da natureza.
Ademais, grupos bolsonaristas em redes sociais e na mídia empresarial não cansam de acusar Francisco de comunista. E, como o fantasma do comunismo à brasileira virou um grande problema para setores do atual governo, nada melhor que criar condições para se tentar atacar e deslegitimar o pontífice (alvo de ataques, inclusive, de setores ultraconservadores da Igreja Católica).
Certamente, sob Francisco, o apoio da Igreja
- aos indígenas,
- às comunidades tradicionais
- e à preservação do meio ambiente
- serão reafirmados no Sínodo.
Gostem ou não os generais brasileiros.
3. A velha política do inimigo interno:
Mas, talvez,
- a principal questão que está por detrás da arapongagem da Igreja Católica
- seja a reedição da velha política de perseguição aos “inimigos internos”,
- tão cara a segmentos das Forças Armadas desde a década de 1960.
Trata-se da “doutrina da segurança nacional”.
Por incrível que possa parecer, essa política urdida durante a ditadura militar fez com que os órgãos de inteligência brasileiros, sempre ligados às Forças Armadas, desenvolvessem uma metodologia de monitoramento, vigilância e repressão a
- movimentos sociais,
- eclesiais,
- partidos de esquerda
- e organizações não-governamentais
em detrimento de cuidar da espionagem internacional que atenta contra a soberania do país.
Ou seja,
- ao invés de utilizar recursos de espionagem e contraespionagem para proteger o país da cobiça internacional,
- ainda mais em tempos de neocolonialismo norteamericano
- e do incremento das máfias internacionais corporativas mundo afora,
- os órgãos de inteligência, inclusive depois da redemocratização,
continuaram com a velha política de caça aos inimigos internos, base inclusive da política de segurança pública brasileira até os nossos dias…
Essa situação ficou evidente no debate havido entre o general Heleno e a ex-presidenta Dilma Rousseff no início de janeiro passado.
Como se sabe, ao assumir o cargo de ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o mesmo general Augusto Heleno disse que
- a ex-presidente Dilma Rousseff destruiu o sistema de inteligência no país
- e que o governo de Jair Bolsonaro terá um “trabalho penoso” pela frente:
- “Esse sistema foi recuperado pelo general Etchegoyen e foi derretido pela senhora Rousseff, que não acreditava em inteligência”,
declarou Heleno, na solenidade de transmissão de cargo.
Na sequência a ex-presidenta explicitou a velha política que sempre direcionou os serviços de inteligência brasileiros.
Em suas contas nas redes sociais Dilma escreveu:
“De fato, durante meu mandato,
- tive várias situações de manifesta ineficácia do GSI e do sistema de inteligência a ele articulado.
- Houve falha, por exemplo, ao não detectar e impedir o grampo feito ilegalmente no meu gabinete, em março de 2016 – sem autorização do Supremo Tribunal Federal –,
- quando foi captado e divulgado meu diálogo com Luiz Inácio Lula da Silva, às vésperas dele ser nomeado para a Casa Civil.
O caso mais grave, entretanto, ocorreu em 2013, por ocasião da espionagem feita
- em meu gabinete,
- no avião presidencial
- e na Petrobras
pela National Security Agency (NSA), a agência de inteligência dos EUA.
Os setores da inteligência brasileira
- não só desconheciam que a interferência vinha ocorrendo há tempo – só souberam após o caso Snowden –
- como sequer sabiam os meios necessários para bloqueá-la.
- Nem mesmo sabiam o que havia sido captado pela NSA nos referidos grampos.
Uma “inteligência” ligada à Presidência da República que não tem
- conhecimento,
- capacidade
- e tecnologia
para enfrentar a moderna espionagem cibernética não é crível.
Na verdade, a própria defesa da soberania do país
- exige que nela não se acredite
- para que se possa tomar todas as medidas necessárias para torná-la efetiva e contemporânea.”
Portanto, a “inteligência” da Abin e do GSI ao que tudo indica continuou preocupada com os “inimigos internos”.
E, atualmente, enquanto
- o país se transforma numa republiqueta vassala dos Estados Unidos;
- nossas reservas petrolíferas e minerais são abocanhadas por multinacionais;
- nossas empresas de tecnologia, com a Embraer, “voam” para o Norte
e a Amazônia vai sendo preparada para a invasão externa de ianques à caça
- de metais preciosos
- e de uma incalculável biodiversidade,
- sem contar a fúria predatória do agronegócio nacional que não tem ética, nem pudor,
a “inteligência” continua à caça dos “perigosíssimos” inimigos internos.
Como se pode perceber,
- o sínodo da Amazônia pode se constituir como mais uma justificativa para a espionagem da sociedade civil,
- sob o pretexto de vigilância do clero “esquerdopata”.
Afinal, até medida provisória, a de número 870/2019, já foi enviada ao Congresso para vigiar organizações não-governamentais. Há “inimigos”pra todo lado…
Ao que tudo indica, esse conjunto de ações são uma reedição da velha política da caça ao inimigo interno. Com o Supremo, com tudo, diga-se de passagem…

Doutor em Ciências Sociais, professor universitário e membro da Comissão da Verdade de MG
Leave a Reply