Frei Bento Domingues, O.P. – 20/01/2019
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A Mãe de Jesus dá-se conta de uma vergonha que se avizinha para o casal. O vinho esgotou-se antes de a festa acabar.
Ela não suporta que o casal possa passar por essa situação humilhante e avisa o filho que a sacode de forma bem ríspida. Ela conhece-o e limita-se a recomendar aos serventes que façam de conta que é ele o responsável pela festa.
1. O Sábado é uma instituição da religião bíblica e um grande marco civilizacional. O ser humano não pode viver só para trabalhar. Precisa de ócio, de expressões culturais, lúdicas e cultuais para que o próprio trabalho possa ter sentido criador e não ser apenas uma resignação alienante.
A polémica constante de Jesus com as observâncias sabáticas, referida pelos quatro Evangelhos,
- não era contra essa admirável instituição,
- mas por ter sido atraiçoado o seu espírito.
- A instituição da liberdade transformada numa prisão.
Daí o protesto de Jesus: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. Enunciou assim um princípio universal acerca da finalidade de todas as instituições, o qual deve vigiar sempre o seu uso e as suas reformas.
Hoje,
- a quarta revolução industrial,
- as novas tecnologias,
- as consequências de algumas formas de globalização
- e a incerteza de tudo
obrigam a alterar o debate sobre o trabalho.
No calendário cristão, o Domingo não pertence ao fim da semana, mas ao seu começo, celebrando a renovação da esperança, a virtude da não desistência. Como o nome indica, nasceu da vitória de Jesus sobre a morte, proclamado por Deus, Senhor da vida.
É o dia em que
- a Igreja de todos os tempos e lugares, povos e culturas,
- convoca os cristãos para a festa da alegria.
Já foram adiantadas muitas explicações para a grande baixa na frequência da celebração semanal da Eucaristia, sobretudo na Europa. Para além daquilo que as ciências humanas podem estudar, parece-me que as lideranças católicas esqueceram que,
- no momento em que os chamados “mandamentos da Igreja”
- perderam a força de uma convicção interior assumida,
- era necessária uma pastoral baseada no princípio do próprio Jesus:
será que as regras e as formas destas instituições estavam aptas a servir a via cristã num contexto cultural inteiramente novo?
Sem a cultura da criatividade das comunidades, a não confundir com o culto da banalidade, será sempre curta qualquer reforma litúrgica. Ainda há muito pouco tempo, alguém me observou que não se pode continuar a dizer solenemente: meus irmãos, estamos aqui para celebrar a grande festa da nossa fé e, depois, inaugurar apenas uma grande seca.
- Textos, muitas vezes belos, que morrem ao ser mal lidos,
- cânticos sem alcance musical envolvente,
- pessoas sem corpo, estacas que se movimentam apenas para estender a mão em sinal de paz e para receberem a hóstia santa.
Entram na Igreja sem se conhecerem e saem só com as relações que já tinham! Qual o caminho, para se perceber que a celebração
- é um acontecimento de revisão cristã da semana anterior
- e de relançamento da esperança activa, para uma nova semana mais criativa?
2. A selecção de textos bíblicos para celebrar este Domingo são muito belos, mas encerram vários programas de acção. Isaías não suporta que Jerusalém não seja a festa da paz, baseada na justiça[i]. S. Paulo[ii] obriga-nos, como Igreja que somos, a fazer uma pergunta:
- como dar, hoje, voz e vez aos que frequentam os seus espaços de culto e de cultura
- para que possam dar o contributo do seu tempo e das suas competências,
- não só para reconfigurar as comunidades cristãs como formas de acolhimento,
- mas também como provocação a saírem para reconfigurar a sociedade?
Paulo tem uma concepção da diversidade de dons espirituais na qual nem a diversidade atropela a unidade, nem a unidade suprime a diversidade. Ao dizer isto não está a enunciar um teorema abstracto.
- Está confrontado com um mundo de conflitos, mas prefere essa agitação a uma paz podre.
- Não tem o culto do conflito pelo conflito, mas o de transformar a pujança espiritual das comunidades,
- canalizando-a para todas as formas de serviços e neutralizar as tentações de dominação.
Não há carisma do Espírito Santo para abafar os outros. Essa forma de ser Igreja é o contrário de uma administração central com funcionários que dão contas a um patrão. O espírito de Cristo tem outro regime: quem desejar ser o primeiro, seja o primeiro a servir.
Este Domingo é conhecido como o das Bodas de Caná da Galileia. Apresenta uma mulher aflita com a aflição de todos. É uma cena exclusiva do Evangelho de S. João[iii], que tem dado lugar a muitas interpretações e conjecturas. Não me preocupa muito saber se foi um acontecimento histórico tal como vem narrado ou se é um conto exemplar, voz de uma realidade ainda mais bela, profunda e complexa.
Parece ser uma parábola a falar de outra a propósito de um casamento. À primeira vista, a mãe de Jesus foi convidada e Jesus levou com ele os discípulos. A Mãe de Jesus dá-se conta de uma vergonha que se avizinha para o casal. O vinho esgotou-se antes de a festa acabar. Ela não suporta que o casal possa passar por essa situação humilhante e avisa o filho que a sacode de forma bem ríspida. Ela conhece-o e limita-se a recomendar aos serventes que façam de conta que é ele o responsável pela festa.
É conhecido o resultado da intervenção de Jesus. Para espanto de todos, a água foi transformada em abundante vinho e do melhor.
Recomento a leitura do próprio texto na íntegra. A sua beleza enigmática o exige.
Esta história devia acabar aqui, mas o Evangelho diz que foi apenas o começo dos sinais de transformação em que Jesus se iniciou.
3. Muitos leitores desta narrativa podem não se aperceber de um outro milagre ou sinal, como lhe chama o evangelista, dentro do já referido: a alteração das relações entre mãe e filho. Até por uma razão simples. O texto lido na missa acaba antes de terminar. Se no começo desta história o protagonismo pertence à Mãe de Jesus, depois ela passa a segundo plano e desaparece: Depois disso, desceu a Cafarnaum, Ele, a sua Mãe, os seus irmãos e os seus discípulos e ali ficaram apenas alguns dias[iv].
É espantoso! O 4º Evangelho nunca mais fala da Mãe de Jesus. Só reaparece quase no fim: perto da cruz de Jesus permaneciam de pé a sua Mãe, a irmã da sua Mãe, Maria, mulher de Clopas e Maria Madalena. Jesus, vendo a sua Mãe e, perto dela, o discípulo a quem amava, disse à sua Mãe: Mulher, eis aí o teu filho! Depois disse ao discípulo: eis a tua mãe! E a partir dessa hora, o discípulo recebeu-a na sua casa[v].
Quem perde ganha. Consta que é uma lei do Novo Testamento. A Mãe de Jesus teve de O deixar ir fazer família com quem não era da família. Acabou por ser ela a Mãe da nova família de Jesus.
[i] Is 62, 1-5
[ii] 1Cor 12, 4-11
[iii] Jo 2, 1-11
[iv] Jo 2, 17
[v] Jo 19, 25-27
Frei Bento Domingues
in Público 20. 01. 2019
www.publico.pt/2019/01/20/sociedade/opiniao/perder-ganhar-1858425
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