Frei Bento Domingues, O.P. – 16/12/2018
Foto: Formação, cançãonova.com
Pensando no que recebemos de Jesus Cristo, tenho de supor que do Oriente e do Ocidente, do Norte e no Sul, de todos os tempos, de todas as religiões e sem religião, cada um com os seus sonhos, ou sem sonhos nenhuns, os que morreram apenas partiram e encontraram na memória e no coração de Deus a mesa posta para a festa de todos.
Nada menos é digno do ser humano e muito menos da louca alegria de Deus de continuar a ver os seus filhos reunidos dos dois lados da vida. Ele que é Deus dos vivos não da morte
- Não sei se Bergoglio conhece a literatura portuguesa. Espero que Tolentino Mendonça (arcebispo português, poeta e escritor, recém-nomeado Bibliotecário-mor do Vaticano – NdR) não deixe de lhe recomendar algumas leituras essenciais antes de voltar a Portugal, pátria dos antepassados do argentino J. L. Borges.
O Cardeal G. Ravasi, esse conhece, de certeza, Fernando Pessoa. Não pode ignorar o sonho piedosamente blasfemo de Alberto Caeiro. Este viu Jesus Cristo aproveitar o dia em que Deus estava a dormir, o Espírito Santo andava a voar e a Virgem Maria a fazer meia, para
- fugir do céu, onde tudo é convencional e aborrecido,
- e tornar-se outra vez menino, uma criança tão humana que é divina,
- a Eterna Criança, o Deus que faltava, que sorri e brinca,
- o Menino Jesus verdadeiro que veio viver para a aldeia com o nosso poeta.
Lembrei-me desse sonho ao ler a mensagem que o Papa Francisco enviou ao referido Cardeal italiano, manifestando o seu agrado por verificar que a eternidade, o outro lado da vida, tivesse sido escolhida para tema da XXIII Sessão das Academias Pontifícias.
Confesso que, no primeiro momento, achei algo despropositada aquela mensagem.
- Terá a recitação dominical do Credo, por milhões de fiéis, perdido a sua esperada eficácia?
- Será verdade que, nos últimos tempos, a convicção central da fé cristã terá sido negligenciada, tanto na investigação teológica como no anúncio e na formação dos fiéis?[i].
Poderá
- a teologia universitária e dos seminários,
- a doutrina dos catecismos, da pastoral e da nova evangelização
- esquecer-se do Céu?
A observação do Papa é, no entanto, mais do que um desabafo de circunstância. Ele próprio colocou o dedo na ferida:
«ao proclamar, hoje, essa verdade de fé, ela pode parecer quase incompreensível e, às vezes, transmitir uma imagem pouco positiva e “atraente” da vida eterna. O outro lado da vida pode ser percebido como
- monótono e repetitivo,
- chato,
- triste
ou totalmente insignificante e irrelevante para o presente».
Esta descrição papal não está longe do sonho de Alberto Caeiro, heterónimo de F. Pessoa. Nem o menino Jesus pode aguentar esse aborrecimento0.
Muitas das representações homiléticas e rituais acerca da vida eterna
- encenam uma eterna chatice
- e as especulações sobre a visão beatífica são uma cegueira teológica.
Só por medo do inferno se podia suportar aquela interminável monotonia. O que mata a esperança de uma juventude eternamente renovada, coração da fé cristã,
- é a lenga-lenga ritual dos funerais
- e das missas de corpo presente,
- do sétimo dia,
- do trigésimo dia, etc.
As preocupações farisaicas
- com a ortodoxia das fórmulas e dos gestos
- levam, muitas vezes, a esquecer, nas horas enlutadas e dolorosas,
- a esperança da vida exuberante sugerida pela simbólica da tradição cristã.
A linguagem religiosa
- não se destina a dar informações sobre as ocupações depois da morte,
- mas a criar ilhas de resistência ao niilismo.
É preciso ir até ao fim da noite para encontrar outra aurora, escreveu Bernanos.
- Quem senão Deus nos poderá dar a mão?
- A Palavra de Deus não é um som, mas a pura voz do amor que nos chama.
É preciso continuar a dizer e a cantar com frei José Augusto Mourão: Ao pé de Deus hei-de sempre viver, com Deus cheguei e com Ele vou partir!
- O Deus escondido, da pura gratuidade, da infinita misericórdia,
- não pode ser profanado pela ideia mundana da meritocracia e dos seus tribunais.
Deus é servido ou ofendido apenas pelas nossas atitudes quotidianas de serviço ou desprezo, em relação aos que se encontram em necessidade[ii].
Dada a descontinuidade
- entre a linguagem dos rituais, que procuram mostrar que a morte não é a última palavra sobre a vida humana,
- e os novos fenómenos culturais e sociais,
como será possível responder às preocupações manifestadas pelo Papa Francisco?
Como transmitir a certeza de que os mortos vivem hoje na memória viva e criadora de Deus?
Importa, antes de mais, dar-se conta das dificuldades e saber que não há soluções prontas a servir.
- Os teólogos, os catequistas, os pregadores
- precisam de trabalhar com os praticantes das ciências humanas
- para avaliar as atitudes, os gestos e a linguagem que configuraram as expressões litúrgicas do passado
- e os caminhos para as alterações mais adequadas[iii].
Tendo isso em conta, é preciso não esquecer que o coração da fé cristã é irrigado pelo desejo, alma da esperança.
- No fim da viagem Alguém, mais forte do que o abismo da morte, nos acolherá.
- A megalomania do desejo é tão essencial ao psiquismo humano que é dela que todas as outras faculdades recebem a energia.
- A missão dos cristãos consiste em tornar a vida eterna o horizonte mais desejado de tudo quanto vivemos e fazemos.
Estamos polarizados por novos céus e nova terra.
- O olhar não vê, mas Deus transborda em tudo.
- Em Deus vivemos, nos movemos e existimos em liberdade criadora,
- pois é falsa a rivalidade entre o humano e o divino.
Como diz Santo Agostinho, em Cristo, caminhamos no Caminho. Não há separação entre a viagem e o encontro com o infinito do amor.
- As celebrações do Advento vivem da convicção de que não estamos condenados a repetir o passado. Quando os costumes nos dizem que sempre assim foi, é sinal de que já é tempo de mudar de rumo. Tudo o que vem nas Escrituras cristãs, nos sacramentos, na liturgia, na pregação, na organização da Igreja, é para que a nossa alegria seja completa[iv]. Esta afirmação, da 1ª Carta de João, devia ser o critério de avaliação dos nossos investimentos vitais.
Conheço alguns testemunhos de cristãos, testemunhos de pura fé, escritos pouco antes da morte, a serem lidos às famílias e aos amigos, para lhes dizerem que não toquem a Finados. Já chegaram a Porto Seguro.
Escrevi este texto a pensar naqueles que, na noite de Natal, vão sentir a falta de quem, nessa noite, esteve sempre à mesa, a trocar presentes, alegrias e gargalhadas. Era a noite das boas memórias.
Pensando no que recebemos de Jesus Cristo, tenho de supor que
- do Oriente e do Ocidente, do Norte e no Sul,
- de todos os tempos, de todas as religiões e sem religião,
- cada um com os seus sonhos, ou sem sonhos nenhuns,
os que morreram apenas partiram e encontraram na memória e no coração de Deus a mesa posta para a festa de todos.
Nada menos é digno do ser humano e muito menos da louca alegria de Deus de continuar a ver os seus filhos reunidos dos dois lados da vida. Ele que é Deus dos vivos não da morte.
Frei Bento Domingues, O.P.
www.publico.pt/2018/12/16/sociedade/opiniao/causa-alegria-1854508
Notas:
[i] Mensagem do Papa Francisco ao Cardeal G. Ravasi por ocasião da XXIII sessão pública solene das Academias Pontifícias, 04. 12. 2018
[ii] Mt 25
[iii] Por analogia com o Baptismo e a Eucaristia, cf. Joris Geldhof, Être et devenir chrétien dans les cultures postmodernes, in «La Maison-Dieu», 278, 2014/2, 13-50 ; ver também Revue des sciences philosophiques et théologiques 95, 2011,129-145.
[iv] 1Jo 1, 1-4
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