O artigo é de Umair Haque, Diretor do Havas Media Labs e autor de “Betterness: Economics for Humans” e “The New Capitalist Manifesto: Building a Disruptively Better Business“, publicado por Outras Palavras, 11-12-2018. A tradução é de Marianna Braghini.
Eis o artigo.
Há Paris, em chamas. Há a Itália, tomada pela raiva. Há o Reino Unido, cometendo o maior ato de auto-destruição na história recente. Há os Estados Unidos – tantos problemas tenebrosos, de tiroteios em massa à classe média implorando cuidados de saúde a estranhos, online. Ninguém sabe direito por onde começar.
E, na semana passada, houve o G20.
O curioso é que
- o problema central,
- que surge como uma avalanche de raiva, ressentimento, medo e fúria…
- sequer esteve na agenda.
Na verdade, o que está em pauta é o oposto deste problema.
O problema é o Capital.
Ele
- concentrou-senas mãos de alguns poucos,
- que o ganharam por meios duvidáveis,
- e depois o enterraram em arcas do tesouro pelo mundo.
O resultado é que não há dinheiro suficiente nas mãos das pessoas e sociedades. Voltaremos ao tema, mas primeiro, vamos entender como tudo aconteceu.
O que eclode em todo o mundo é que as pessoas sentem-se atoladas, porque de fato estão. Sua renda deixou de crescer, inclusive nos países ricos.
- Nos EUA, essa tendência começou em 1970 – precisamente no momento em que a segregação racial era vencida.
- Na Europa, teve início entre cinco e quinze anos atrás.
E a questão é que seus líderes, instituições e governos estão dando pouca ou nenhuma atenção ao problema:
- não têm nenhum plano ou agenda
- para reverter a desastrosa tendência de estagnação.
“Estagnação”– que na verdade significa escassez de dinheiro em uma sociedade – é precisamente o que aconteceu durante os anos 1930.
Deu-se em diferentes nações, de diferentes maneiras.
- Na Alemanha, as dívidas contraídas após a I Guerra Mundial com o Reino Unido e França
- eram onerosas demais para ser pagas. A classe média foi levada à ruína e os pobres afundaram na miséria.
- Nos EUA, a combinação de monopólios e especulação, durante a década de 1920, deixou o país em “depressão”.
- A poupança média arduamente conquistada fora esbanjada por bancos e fundos em diversos esquemas fraudulentos do tipo “fique rico rápido”.
Os resultados foram sempre os mesmos – as condições de vida das pessoas atolaram e começaram a regredir.
Como o fenômeno da estagnação acontece agora?
De forma muito parecida.
- Uma grande crise financeira.
- Os bancos foram socorridos.
Uma geração de governantes neoliberais imaginou que seus países estavam “falidos”.Eles
- começaram a cortar em investimento social
- no exato momento em que a economia titubeava – e bang!
Este duplo golpe esmagou as pessoas comuns.
- No Reino Unido, por exemplo, a queda no padrão de moradia foi a maior em séculos.
- Nos EUA, a vida das pessoas começou a desmoronar. A classe média literalmente implodiu, tornando-se uma minoria.
- Na Alemanha, França, Itália, o conforto e a facilidade de gerações da social democracia estão ameaçados.
Nasceu a era da “austeridade”. Infelizmente é onde estamos hoje.
- Enquanto Paris queima,
- enquanto as pessoas se enfurecem,
- enquanto a Itália se inflama,
- as pessoas tornam-se furiosas.
Os Estados Unidos desmoronaram, o Reino Unido destrói-se em confusão e desorientação.
- Não há nenhum plano de socorro às sociedades, pessoas, idosos,juventude.
- Nem ao menos um.
- E sem tal planejamento, se você entendeu tudo acima,
- não há nenhuma chance de que o mundo continue em paz, cooperação e prosperidade.
Sem um socorro às pessoas, o problema central no mundo – a estagnação – não tem solução.
Ela prosseguirá, porque
- a concentração de dinheiro
- e a resultante escassez deste entre as pessoas e sociedades
- não irá mudar.
Enquanto isso acontece, os cidadãos parecem cada vez mais inclinados a escolher governantes autoritários, extremistas e fanáticos – que de forma inteligente direcionam a fúria contra os que estão abaixo, nas hierarquias sociais:
- imigrantes,
- refugiados
- e assim por diante.
Essa é exatamente a lição dos anos 1930 — mas estamos revivendo tudo agora e por algum motivo, parece que nossos governantes
- estão totalmente alheios (como os conservadores norte-americanos),
- não se importam muito (como os neoliberais da UE)
- ou sorriem e convidam ao apocalipse (como os apoiadores do Brexit).
O que significa “um socorro” às pessoas? Do que estariam sendo resgatadas?
As sociedades e pessoas
- necessitam muito ser recapitalizadas – ou seja, precisam de dinheiro suficiente
- para que os rendimentos voltem a crescer,
- para que prevaleça um senso de segurança,
- para desfrutar de um senso de liberdade mais uma vez,
- para que cresça uma esperança de prosperidade.
Por isso, um resgate das pessoas é bem simples. Significa apenas investir o dinheiro criado nas próprias pessoas.
- Seja diretamente – na forma monetária –
- ou indiretamente,
por meio de
- mais e melhores hospitais,
- escolas,
- mídia,
- educação
- e todos os trabalhos que este movimento criaria.
Apesar disso, o foco dos governantes – e mesmo da maior parte das pessoas – tornou-se, em grande parte, a “austeridade”.
Mas
- falar em “austeridade” é precisamente o mesmo que dizer
- “mesmo que eu não tenha dinheiro suficiente para prosperar, e nem o meu país,
- não quero que ninguém nunca mais tenha dinheiro algum.
- Prefiro que as pessoas permaneçam pobres e endividadas!”
É uma crença engraçada, bizarra e perigosamente insensata — que sugere ignorância completa
- do mundo,
- da história
- e de política econômica.
Os Sentidos da Rebelião Francesa / Outras Palavras
Um “resgate das pessoas” significa dar dinheiro liberalmente (olá, liberais!).
- Isso o horroriza?
- Você vale mais que alguns poucos milhões?
- Então, você deveria se posicionar a favor da proposta – e não contra ela.
Se você é um cidadão médio do mundo rico,
- sua poupança é bem menor que suas dívidas,
- porque sua renda não cresce há anos, talvez décadas.
Imprimir dinheiro causa inflação, mas também acaba com os débitos. E portanto resolve ambos problemas de estagnação de uma só vez.
Inflação significa que
- sua renda cresce (não apenas “os preços”)
- e também significa que suas dívidas encolhem.
Você deve querer ambas as coisas nessa conjuntura da história:
- menor débito
- e maior renda.
O jeito mais simples de pensar a respeito é:
- você deveria querer mais dinheiro – e não menos –
- porque o problema é que você não tem o suficiente para levar uma boa vida.
- Por isso, deveria ser fortemente a favor da criação de dinheiro novo,
- porque é o único meio que conseguirá obter mais recursos.
E ainda assim você ainda pensa que um resgate individual, ser recapitalizado, é política errada. Você provavelmente está confuso(a) sobre as noções básicas de economia:
- acha que o ruim é bom,
- e que o bom é ruim.
E é também por conta disso que os governantes atuais falharam na gerência da economia global. Eles cometeram o mesmo erro que você. Eles decidiram que
- é melhor ser pobre do que ser rico;
- melhor ser desprovido de poder do que ser empoderado;
- melhor ser ignorante do que sábio.
De onde vem esse equívoco sobre economia básica – a ideia segundo a qual
- as sociedades nunca poderiam,
- nem deveriam criar dinheiro novo
- e dividi-lo entre as pessoas?
Quem ensinou isso?
- Esta é a internalização da lógica capitalista.
- Equivale a pensar que o dinheiro existe apenas para ser propriedade privada de um pequeno número de pessoas,
- em vez de um recurso público do qual dependem uma ou um conjunto de sociedades.
As únicas pessoas que se beneficiam da “austeridade”
- são os verdadeiros capitalistas
- – aqueles cuja renda vem do capital,
- pois são donos de toda a dívida.
Para eles, é verdade, o investimento social é ruim. Mas não para você! A esta altura, é a única coisa no mundo que pode erguê-lo.
Uma Rebelião ainda a analisar – Foto: Night Flight To Venus / IHU
O capitalismo nos ensinou que
- uma sociedade investindo em si mesma
- – criando dinheiro e o distribuindo entre as pessoas –
- é ruim.
Por isso, você, como muitas outras pessoas, age furiosamente contra seus próprios interesses.
“São aqueles imigrantes! Foram eles que arruinaram minha vida!”. Não, não caro amigo.
- Os imigrantes estão em situação ainda pior que a sua.
- Hoje todos estão sofrendo porque o capitalismo, por meio do neoliberalismo,
- convenceu quase todo mundo que é melhor ser pobre do que ser rico.
O resultado é
- uma escassez de dinheiro,
- um déficit de investimento,
- porque o capital se empilhou – onde mais? – nas mãos dos capitalistas,
- em níveis sem precedentes desde os anos 1930.
Por que há pouco estoque de dinheiro e capital para as pessoas comuns?
A razão deveria ser óbvia. Porque o acúmulo, entre os super-ricos é grande e injusto demais.
A desigualdade tem crescido arrasadoramente e de forma íngreme, todos sabemos – mas o que ela realmente significa é que
- há muito dinheiro concentrado no topo das sociedades,
- e muito pouco fluindo para todos os demais.
Este dinheiro amontoado no topo literalmente não tem mais nenhum lugar útil para ir – todas as mansões e iates foram comprados. Por isso, há agora setores inteiros cujo único propósito é
- desviar as fortunas dos super-ricos para paraísos fiscais,
- para escondê-las em arcas de tesouro.
- O resultado é que as sociedades estão famintas de dinheiro e as condições de vida estagnaram ou regridem.
Os governantes atuais
- escolhem “austeridade”
- em vez de investimento.
Significa
- empobrecimento,
- ruína e colapso
em vez da
- prosperidade,
- democracia
- e abundância.
É vital entender que tudo isso é uma escolha — não um tipo de restrição natural.
Frequentemente, afirma-se que uma
- “união mais profunda”da Europa
- exigiria criar pobreza.
Nada poderia ser tão distante da verdade.
A Europa, como os Estados Unidos, fez a escolha errada — só que em grau menor.
- Deixar as pessoas e sociedades famintas de dinheiro
- é sempre uma escolha, nunca uma necessidade.
“O dinheiro é para os capitalistas — todo mundo estaria melhor assim!”
Quanta estupidez! O que realmente aconteceu foi tão previsível quanto péssimo:
- os capitalistas abocanharam todo o dinheiro em que conseguiram colocar as mãos,
- espoliando uma sociedade após outra.
- Depois, esconderam-no em arcas de tesouro enterradas pelo mundo.
Mas o resultado é que agora há menos dinheiro para ser
- gasto,
- utilizado,
- compartilhado,
- trocado, investido.
Ainda assim, os sábios que comandam o mundo coçam suas barbas, perguntando-se: onde iremos conseguir mais dessa mágica substância, deste misterioso poder, o dinheiro? E o mundo se pergunta — em raiva, em fúria, em desespero, junto com eles – nunca entendendo que o dinheiro não tem nenhum segredo. Desde que as pessoas sejam suficientemente corajosas, sábias e honestas para dar umas às outras.
Umair Haque
Fontes: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/585457-os-sentidos-da-rebeliao-francesa
https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/os-sentidos-da-rebeliao-francesa/
Atravessamos a pior década económica desde a Grande Depressão. Não se trata apenas de uma recessão. É a prova de que nossas instituições económicas se encontram obsoletas, de que o conjunto de ideias herdadas da era industrial já não funciona no mundo de hoje.
Neste livro, Umair Haque, especialista em estratégia económica, defende um novo caminho. Segundo o autor, se optarmos por um «capitalismo construtivo» será possível superar o velho paradigma de crescimento a curto prazo, concorrência a todo o custo, empregos «dilbertianos» e o habitual empurrar de custos para as gerações seguintes. Estes pressupostos antiquados só servem para criar ganhos em grande parte ilusórios e gerar a cada ano menos retorno.
Se A Riqueza das Nações foi o primeiro manifesto capitalista, esta obra propõe um novo paradigma, igualmente poderoso.
Para alcançar valor real, vantagens duradoura, sustentáveis e com significado ¿, que beneficie a sociedade, Umair Haque elenca cinco pilares de prosperidade para o século XXI: A Vantagem do Prejuízo, Capacidade de Resposta, Resistência, Criatividade e Fazer a Diferença.
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