
Tom C. Avendaño – 27/11/2018 – Imagem: IHU
Vestido com seu eterno uniforme – terno escuro camisa branca parcialmente desabotoada – com o qual se tornou um dos pensadores mais midiáticos e conhecidos da França e de grande parte da Europa, Lévy (Argélia, 1948) vai direto ao problema entre goles de chá em um hotel em São Paulo: “Todo o mundo está olhando para o Brasil.
O que seu presidente eleito, [Jair] Bolsonaro, faz é discutido em todos os lugares e o que estamos vendo que
- é um presidente sem programa,
- nostálgico de um dos momentos mais sombrios da história do país
- e sem amor genuíno por sua terra natal.
O mundo
- está assombrado com a incrível vulgaridade de alguns de seus comentários.
- É pornografia política. Como fala das minorias, das mulheres.
“O mundo está estupefato”, repete com finíssima indignação parisiense. E resume a questão que mais escandaliza os cientistas políticos de todo o mundo: “E não venceu dando um golpe, mas através das urnas”.
Foto: tv-ranking.com
O Brasil é apenas uma frente de uma guerra global, pondera com um certeiro cruzamento de pernas, uma guerra que absorve praticamente o mundo inteiro.
“Há uma luta ideológica
- entre a xenofobia e o humanismo,
- entre os extremos, da esquerda à direita,
- que se alinharam nas ruas
- para destruir os valores republicanos e as forças do progresso”, diz.
“O Brasil está dentro dessa corrente global e, de certo modo, seu líder populista é o mais caricatural de todos.”
A entrevista é de Tom C. Avendaño, publicada por El País, 26-11-2018.
Eis a entrevista.
Quando Trump ganhou a presidência em 2016, o senhor alertou os norte-americanos de que, para além da ideologia do vencedor, “milhões de gênios acabaram de sair da lâmpada” com aquela vitória. O senhor estenderia esse alerta hoje aos brasileiros?
Fiz duas advertências quando Trump foi eleito.
- Os geniozinhos saíram da lâmpada
- e também avisei aos judeus que se cuidassem dos presentes e afetos de Trump.
O afeto que não nasce do amor verdadeiro é muito perigoso e tem efeitos colaterais terríveis. Diria o mesmo aos brasileiros.
- A eleição de Bolsonaro libertou milhões de geniozinhos.
- E eu diria a eles para terem cuidado com esses gestos de amizade aparente,
- não porque podem se revelar uma mentira amanhã,
- mas porque podem ter um significado inesperado e triste amanhã.
Não vi na história uma época em que os judeus não acabem como vítimas.
O senhor se mobilizou especialmente contra o Brexit nos últimos anos. Compartilha das comparações de que essa votação e a vitória de Bolsonaro pertencem à mesma convulsão destrutiva contra a ordem estabelecida?
- O Brexit não está destruindo o establishment;
- o Brexit é o establishment.
- Boris Johnson, as pessoas que clamam pela separação, são o establishment.
O que é que o Brexit destrói? O Reino Unido. Não o establishment. Da mesma forma,
- Bolsonaro também não faz dano algum ao establishment,
- ele o faz ao Brasil.
Ou poderia fazer, pelo menos.
Ele faz parte do establishment,
- do pior do Exército
- e do pior da direita das cavernas.
E se é uma arma de destruição,
- não é da destruição das elites,
- mas do que foi construído neste país,
- desde que, mais ou menos, terminou a ditadura militar (1964-1985).
Ele, no entanto, declara guerra à esquerda e consegue que a direita o deixe em paz, talvez motivada por esse inimigo comum. Mas Bolsonaro não é mais inimigo?
A vitória de Bolsonaro
- é uma derrota da esquerda,
- mas é uma derrota muito mais importante da direita.
- Bolsonaro a devorou.
Essa direita
- liberal,
- limpa,
- republicana,
- que quis construir um país de costas para a ditadura,
- essa direita é o objetivo principal de Bolsonaro.
Ele quer acabar com ela e em parte conseguiu. Hoje ela está fora do jogo.
Bolsonaro fez com que milhões de pessoas falassem da esquerda como uma entidade única que abarca do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao venezuelano Hugo Chávez…
Bolsonaro e Chávez, ou Bolsonaro e Maduro, têm mais semelhanças entre si do que diferenças – Bernard-Henry Lévy – Tweet
[interrompe]
- Não existe comparação possível entre Lula e Chávez.
- Mas existe entre Chávez e Bolsonaro,
que pertencem à mesma família de líderes:
- populistas,
- mentirosos,
- líderes que não se importam com o seu país.
Lula pode ter cometido erros,
- eu não sei,
- talvez o saibamos no dia em que for julgado com justiça.
Mas, para mim, até agora,
- era um líder bom e decente para o Brasil,
- e sua presidência foi um momento honorável na história do país.
Bolsonaro e Chávez, ou Bolsonaro e Maduro, têm mais semelhanças entre si do que diferenças.
Durante quase 40 anos e até recentemente o senhor disse que devíamos “quebrar a esquerda”, citando Maurice Clavel, para derrotar a direita. O senhor ainda mantém isso hoje?
A esquerda já está quebrada. Você tem por um lado
- Lula no Brasil,
- [o ex-presidente socialista François] Hollande na França
- e o [ex-primeiro-ministro italiano Matteo] Renzi na Itália,
grandes líderes da esquerda ocidental, que se separaram da outra esquerda, a falsa, a radical.
Na França
- não há relação entre o ex-presidente Hollande
- e [o líder da esquerda alternativa francesa, Jean-Luc] Mélenchon.
Essa dissociação já aconteceu lá e na Itália também.
- A verdadeira rachadura, e isso existe na Europa e na América Latina,
- é o populismo contra os princípios humanistas, universalistas e reformistas.
Lula é a personificação dessa diferença.
- Ele é a esquerda humanista,
- a verdadeira,
aquela que defende os interesses do povo contra
- o nacionalismo,
- a xenofobia
- e a mentira.
- Contra as tentações de Chávez.
Mas a história dele não acabou.
As eleições vencidas por populistas não foram desprovidas de candidatos, digamos, tradicionais, aceitáveis, de esquerda e de direita. O senhor está preocupado que certas formas se percam?
Esquerda e direita não importam mais. A única corrente que existe agora é que estamos vivendo um momento populista.
Com a ajuda
- da Internet e das redes sociais,
- a subcultura das televisões,
- passamos por um momento que dá vantagem aos líderes populistas.
E todo político republicano, democrático, razoável e old school deve se adaptar à nova situação. Eles ainda não o fizeram, mas terão de fazê-lo para não serem devorados por esse enorme monstro que está surgindo em todo o mundo.
É preciso se adaptar ou contra-atacar?
Será preciso tempo. As épocas sombrias nunca duram para sempre.
- Nos anos vinte, trinta e nos cinquenta havia multidões no Ocidente contra a democracia.
- E ainda assim esta prevaleceu.
- Eu acho que a mesma coisa vai acontecer agora.
Do que tenho certeza é que não se derrotará o novo populismo usando suas mesmas armas. Os democratas devem ter a coragem de não cair nessa armadilha.
- Eles têm de defender seus valores
- mesmo se durante algum tempo são minoria e não são ouvidos o suficiente.
- Se abandonarem seus valores, estarão perdidos.
O mundo se aproxima desse paradoxo de ter que defender a democracia quando a maioria está contra ela?
O sonho de muitos líderes é acabar com a democracia.Trump,
- Bolsonaro,
- Orban na Hungria.
Mas nos EUA estamos vendo até que ponto a democracia é capaz de resistir – Bernard-Henry Lévy – Tweet
O sonho de muitos líderes é acabar com a democracia. Trump, Bolsonaro, [Viktor] Orban na Hungria. Mas nos Estados Unidos estamos vendo até que ponto a democracia é capaz de resistir.
- O verdadeiro muro americano não é o que Trump quer construir entre os Estados Unidos e o México,
- mas o que a sociedade civil norte-americana construiu para ele.
Trump não é livre para fazer o que quer e está dando cabeçadas na parede. Talvez isso acabe quebrando a cabeça dele, vamos ver.
E o que eu desejo para o Brasil é algo parecido,
- que se revele um muro da democracia
- e enfrente a vulgaridade, a estupidez e a ausência de ideias.
Tom C. Avendaño
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Só gostaria que alguém me explicasse o que é definido para dizer que alguém é de direita e de esquerda no Brasil. Porque a única fala que está acima diz que Lula é esquerda. A pergunta é qual o ponto para dizer que Lula é esquerda. Aumentou a assistência social?