Um pouco antes da reunião dos bispos dos EUA nesta semana em Baltimore, a expectativa – para ser claro, dos próprios bispos – era de tomar decisões importantes sobre a crise de abuso sexual clerical que abalou a Igreja nos últimos seis meses.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 13-11-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Mas o que aconteceu na segunda de manhã basicamente sugou todo o oxigênio da sala, assim que o cardeal Daniel Dinardo, de Galveston-Houston, presidente da conferência, anunciou que o Vaticano havia pedido que
- os bispos atrasassem qualquer medida até fevereiro,
- quando o Papa Francisco planeja convocar uma reunião de cúpula dos presidentes das conferências episcopais do mundo todo para discutir a proteção às crianças.
É interessante notar que a ação comunicada aos bispos dos Estados Unidos no final do domingo veio depois do encontro entre o Papa Francisco com o cardeal canadense Marc Ouellet, prefeito da Congregação dos Bispos do Vaticano, e o arcebispo francês Christophe Pierre, embaixador do Vaticano para os EUA, em Roma, no sábado.
Segue um resumo rápido: se já havia grandes expectativas para a reunião de fevereiro, agora a expectativa cresceu exponencialmente.
- O fato de o Vaticano pedir que a Conferência dos Bispos do quarto maior país católico do mundo, que está profundamente marcado pela crise,
- espere mais três meses antes de tomar qualquer ação significativa sugere que a reunião de fevereiro
- vai ter de apresentar algo muito significativo. Senão, pelo menos nos EUA, a situação vai ficar feia.
O próprio DiNardo parecia atordoado ao fazer o anúncio, e isso certamente descreve a reação de muitos dos outros bispos.
Certamente, há várias razões para a solicitação, que não necessariamente indicam uma negação. O padre jesuíta James Martin sugeriu várias delas em uma série de tweets nesta segunda-feira pela manhã, sugerindo
- que talvez Francisco queira uma resposta mais universal,
- que talvez a Conferência dos Bispos dos EUA não seja unida o suficiente para enfrentar a situação
- e que talvez o Papa tenha algo na manga para fevereiro que ele não quer antecipar.
Mas acabou surgindo uma explicação alternativa. Várias fontes disseram ao Crux que
- havia problemas sérios legislativos com várias das propostas desenvolvidas pelos bispos,
- as quais só foram finalizadas no dia 30 de outubro,
- dando ao Vaticano pouco tempo de reação.
De acordo com essa visão, na verdade Ouellet
- fez um favor à conferência ao pedir que esperassem um pouco,
- evitando um cenário em que suas propostas fossem derrubadas em Roma,
- o que seria uma visto como reprovação por não terem feito a lição de casa.
Tudo isso pode muito bem ser verdade. Mas, verdade seja dita, os católicos estadunidenses
- estão com raiva,
- desiludidos e descontentes
- e esperam que as autoridades da Igreja deem algum motivo para ter esperança.
Este acontecimento, vale lembrar, vem logo após o Sínodo dos Bispos dedicado aos jovens, em Roma, de 3 a 28 de outubro, que
- chegou a pedir desculpas pelos casos de abuso clerical
- e reafirmar o compromisso da Igreja com uma política de “tolerância zero” ,
- mas que depois voltou atrás pela oposição dos bispos da África, de partes da Ásia e até mesmo alguns italianos, que alegaram, inter alia, (entre outras coisas – NdR), que seria “prematuro” emitir tais declarações antes da reunião de fevereiro para deixar o Papa livre para agir.
Em relação ao contexto, o pedido da Conferência dos Bispos dos EUA para limitar sua ação foi feito
- uma semana depois que os bispos católicos da França divulgaram fortes novos protocolos antiabuso, criando uma nova comissão independente para avaliar como se lidou com os casos.
- Na mesma semana, os bispos italianos também devem publicar novas orientações.
Certamente, essas conferências, até certo ponto, estão atrás dos bispos dos EUA, então as questões apresentadas eram diferentes.
Ainda assim, é difícil explicar por que Roma destacou
- a conferência dos EUA,
- colocando-os na posição embaraçosa de explicar por que suas mãos estão atadas,
- mas o mesmo não aconteceu com os bispos de outras partes do mundo.
Em reação ao anúncio de DiNardo, o cardeal Blase Cupich, de Chicago, propôs que os bispos fizessem uma votação informal sobre as questões que já estavam planejando discutir, como a política de “tolerância zero” para os bispos, simplesmente para expressar o posicionamento da conferência. Isso poderia ser útil em fevereiro, em Roma, quando DiNardo vai participar da reunião dos presidentes das conferências.
Para Cupich, na verdade, é um “momento decisivo” para a Igreja.
“Temos de ser muito claros sobre nosso posicionamento, e precisamos expressá-lo”, disse Cupich.
Ainda não se sabe se é isso que os bispos vão fazer, nem se vão ficar presos ao discurso do que foi pedido por Roma.
(Como nota de rodapé, observo que
- é um pouco curioso que DiNardo tenha feito o anúncio,
- e não o arcebispo francês Christoph Pierre, o embaixador do Vaticano para os EUA, que está em Baltimore.
Se é um pedido do Vaticano, não se sabe por que o representante do Papa no país não fez o anúncio).
Na acalorada discussão da mídia dos EUA na segunda-feira, havia muitas referências casuais ao fato de o “Vaticano” estar impedindo o trabalho dos bispos do país. No entanto, a verdade é que, no papado de Francisco,
- as estruturas tradicionais do Vaticano
- perderam grande parte do poder para a liderança pessoal do próprio Papa.
Mais cedo ou mais tarde, a questão não será o posicionamento do “Vaticano”, mas sim do próprio pontífice.
Enquanto isso, espera-se que
- os bispos dos países que perderam a luta no último sínodo – EUA, Austrália, Irlanda, Reino Unido, Alemanha, Bélgica
- e outros que viveram a crise de abusos intensamente –
- se organizem para a reunião de fevereiro com antecedência, para transmitir uma mensagem unificada e eficaz sobre a necessidade de reformas significativas.
Sem isso, corre-se o risco de ter outro encontro no Vaticano com um resultado ambíguo. Se isso acontecer, poderia ser um desastre pastoral para países onde a crise é uma realidade presente na vida, como os Estados Unidos.
John L. Allen Jr
Leia mais:
- Esqueçam o Vaticano: os Bispos podem avançar e impedir o acobertamento de abuso
- Dom Scicluna à frente da organização da reunião dos presidentes das Conferências Episcopais para tratar da questão dos abusos?
- É possível um cisma na Igreja Católica? Artigo de Thomas Reese
- EUA. Vaticano pede que bispos adiem a votação sobre medidas contra abuso e gera confusão entre alguns prelados
- EUA. Bomba na reunião dos bispos: Vaticano impede votação sobre crise de abusos
- EUA. O Vaticano pede que ainda não seja votado o código de conduta para os bispos e a equipe de leigos que deveria tratar dos abusos
- Jesuítas publicarão os nomes dos padres acusados de abuso sexual no oeste dos EUA
- Carta aberta aos bispos dos EUA: acabou
- Nos próximos dias, a chegada de alguns bispos dos EUA, entre os quais o cardeal Daniel DiNardo e, em seguida, o encontro com o Papa Francisco
- EUA. Plano dos bispos para lidar com o abuso é insuficiente em termos de responsabilização
- Bispos americanos relatam que encontro com Francisco sobre abusos sexuais foi “longo e frutífero”.
- EUA e os abusos. Sete dias de retiro para bispos com o padre Cantalamessa
- Abusos e acobertamentos: acusações contra cardeal DiNardo às vésperas da audiência com o papa
- Resposta do Presidente da Conferência dos Bispos dos EUA à Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus
- O que os bispos dos EUA podem fazer em meio aos escândalos de abuso?
- A cúpula de proteção às crianças de Francisco pode ser a aposta de mais alto risco do seu papado
- Encontro dos bispos em fevereiro será um momento decisivo para o Papa Francisco
- Papa Francisco convoca uma reunião com os Presidentes das Conferências Episcopais sobre o tema da ‘proteção dos menores”
- “Alguns bispos dos Estados Unidos culpam Francisco para se defender do colapso de sua credibilidade”. Entrevista com Massimo Faggioli
- Após os acontecimentos da Pensilvânia, Papa Francisco na sua Carta ao Povo de Deus convidou os católicos “ao exercício penitencial da oração e do jejum”. Qual Episcopado anunciou as primeiras iniciativas? Nenhum
- Bispo da Pensilvânia diz que os bispos que acobertaram casos de abuso devem se demitir
- Cardeal Wuerl, de Washington, o relatório da Pensilvânia e os desafios da viagem do Papa Francisco à Irlanda
- Apenas dois padres da Pensilvânia – entre 300 acusados – podem ser processados
- Abuso, o Vaticano sobre o relatório da Pensilvânia: “vergonha e dor”
- Relatório do grande júri da Pensilvânia é o novo fundo do poço da Igreja. Artigo de Thomas Reese
- EUA. Igreja da Pensilvânia encobriu mais de 1.000 abusos contra crianças nas últimas décadas
Leave a Reply