“Caricaturas de Deus não faltam, portanto, e a chance de se autoafirmarem como divindade constitui uma tentação de difícil resistência, conforme o uso com que se possa contar com elas.
Explorar a imagem de Deus para colocá-lo acima de tudo, como prega o presidente eleito, não está fácil saber a quem ele se refere”, escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
O presidente Jair Bolsonaro vem reafirmando, com muita ênfase, que Deus está “acima de tudo”. Autoriza pensar-se que
- o seu governo vai se inspirar em Deus,
- alguém por ele conhecido,
- no qual ele acredita
- e pretende obedecer.
A história tem mostrado uma declaração desse tipo revelar-se muito perigosa. O risco se encontra em
- como se identifica Deus,
- onde e quando Ele se faz Presente e se manifesta,
- do que ama ou desgosta,
- que tipo de poder exerce,
- se esse poder deve ser aceito até pela pessoa que não acredita nem na sua existência.
Segundo os precários limites
- da nossa razão,
- dos nossos sentimentos herdados social e culturalmente,
- das influências a que estamos sujeitas/os,
- da nossa convicção de que só nós possuímos de fato a verdade sobre Ele e só nós não somos guiados por ideologia,
é preciso reconhecer humildemente que a gente pode se enganar feio.
O Deus que entendemos conhecer pessoalmente
- pode ser muito diferente do que se pensa
- e no lugar dele podemos estar erigindo um altar para outros até de forma inconsciente.
Basta lembrar a devoção e a adoração que se presta
- ao dinheiro,
- ao mercado,
- ao partido,
- à ciência,
- às artes,
- às igrejas,
- às instituições,
- às leis,
- às autoridades,
- às modas,
- os costumes,
- às ideologias, etc…
Queimar hereges já foi prática até da Igreja católica no passado,
- uma forma desgraçada de se impor um conhecimento e uma obediência
- a um deus que podia ser tudo menos deus.
Foi em nome desse fervor purista de deus
– do qual parece se sentir
- sacerdote,
- juiz
- e oficial de justiça o presidente –
que se transformou Deus em carrasco e, em nome dele, todo o poder político da instituição religiosa aliada à romana e oficial da época, prendeu, processou e assassinou Jesus Cristo.
Caricaturas de Deus não faltam, portanto, e a chance de se autoafirmarem como divindade constitui uma tentação de difícil resistência, conforme o uso com que se possa contar com elas.
Explorar a imagem de Deus para colocá-lo acima de tudo, como prega o presidente eleito, não está fácil saber a quem ele se refere.
Pelo que está apresentando como futuras diretrizes do seu governo, está parecendo uma hábil manobra de colocar
- Deus completamente desencarnado da nossa história,
- um ausente que só aparece quando exercita a sua autoridade com violência punitiva.
Uma estratégia de revelação oportunista e muito utilizada, por sinal, por toda/o a/o política/o só interessada/o em se aproximar do povo para melhor controlá-lo por duas formas muito conhecidas:
- no atacado, torná-lo alheio às suas dores e sofrimentos, pois no céu será premiado por isso;
no varejo,
- não permitir sua conscientização sobre as verdadeiras causas das injustiças que sofre,
- emburrecê-lo
- e aliená-lo de tal modo que a dominação sobre ele o sujeite resignado à fatalidade de sua condição humana de pobreza e miséria.
Um apoio extraterrestre assim, sobrenatural, envolto em mistério, um
serve bem para isso.
Pelas metas das políticas públicas que o presidente tem publicado, o seu deus tem manifestado preferências opostas a de outros entes adorados como deuses.
Se apenas Jesus Cristo, reconhecido como Deus por grande parte da humanidade, for comparado com o deus do presidente, a distância pode ser medida em anos luz.
- Desde a notória preferência dEste pelas/os pobres, puras/os, perseguidas/os, caluniadas/os, encarceradas/os,
- gente “com fome e sede de justiça”, manifestada nas famosas bem-aventuranças;
- desde as provas que servirão de base para um “juízo final” sobre a conduta de cada pessoa,
- não por sua riqueza, nem pela extensão de suas terras e sua autoridade,
- mas sim pelo bem que tiver feito à gente faminta, migrante sem lugar para se abrigar, doente ou aprisionada.
É essa multidão necessitada que o deus do presidente quer libertar e salvar? – Pelo contrário. Já deixou claro que “no que depender dele”,essa porção de povo vai é sofrer o peso da sua autoridade. O direito de se armar, inclusive para matar, ao qual se refere com frequência alarmante, passa por aí, mesmo contra o que ordena a Constituição Federal.
Abre mais ainda a porta para aquela espécie de aplicação da lei, como acontece muito frequentemente até hoje, viciada por preconceitos históricos desde a sua origem, contra gente pobre. É uma porta antecipadamente impedida de juízo contrário às distorções que se introduzem na interpretação do ordenamento jurídico inteiro do país, para reduzi-lo à completa impotência de ser sequer cogitado quando, pelo menos na letra, sustenta direitos humanos fundamentais sociais, e contraria os reais fatores de poder de mando garantido, como os do capital e do mercado.
O deus segurança para apoiar esses dois, por mais que se disfarce, é mesmo o deus do presidente. Sua política de segurança pública pode chegar ao que já tinha sido previsto há muito tempo e a mídia noticia diariamente:
- “A acumulação de capital resultante é realizada contra os outros
- e jamais pode ser transformada na segurança da vida de todos.
- A própria busca de tal segurança já romperia o elemento constituinte da sociedade burguesa.” {…}
- “Uns não podem dormir porque têm fome e os outros não podem dormir porque têm medo dos que têm fome.”
(in “A idolatria do mercado”, Assmann, Hugo e Hinkelammert, Hans. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 454)
O deus do presidente, por tudo isso, se assemelha bastante ao dos escribas e fariseus hipócritas denunciados por Jesus Cristo, que “amarram fardos pesados e os colocam nas costas dos outros, mas eles mesmos não os ajudam, nem ao menos com um dedo, a carregar esses fardos. Tudo o que eles fazem é para serem vistos pelos outros.” (Evangelho de São Mateus, 23, 4-5).
Um deus dessa espécie hipócrita e farisaica precisa ser desmascarado. Quem tem fé convém não só rezar ao seu Deus que dele nos livre, mas trate de se mexer em caminhada e oposição contrária, pois se o primeiro não passa de um ídolo fiel ao ódio e à morte, qualquer Outro exige enfrentá-lo fiel ao Amor e à Vida.
Jacques Távora Alfonsin
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/584606-deus-nos-livre-do-deus-do-presidente
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