O comentário é do jesuíta estadunidense Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos Estados Unidos, de 1998 a 2005, e autor de O Vaticano por dentro(Ed. Edusc, 1998), em artigo publicado por Religion News Service, 13-11-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Enquanto os bispos católicos dos Estados Unidos se reúnem em Baltimore para discutir questões polêmicas como o abuso sexual clerical e o racismo, algumas pessoas estão falando sobre a ameaça de cisma.
A história mostra que a possibilidade de cisma está sempre presente, mas as probabilidades contra um cisma são altas hoje.
Primeiro,
- para se ter um cisma, você precisa de pelo menos um bispo interessado em se separar.
- Se um padre e seus paroquianos decidem se separar da Igreja, isso não é um cisma.
- Se um padre lidera uma divisão, ela geralmente desaparece quando o padre morre.
Os bispos cismáticos podem ordenar outros bispos e padres, de modo que o afastamento tem uma maior chance de continuidade; o Grande Cisma de 1054 entre o cristianismo oriental e ocidental durou quase 1.000 anos.
Por outro lado, o cisma mais famoso do século XX foi liderado pelo arcebispo francês Marcel Lefebvre contra muitas das reformas ordenadas pelo Concílio Vaticano II, incluindo
- o ecumenismo,
- a liberdade religiosa
- e a tradução da liturgia ao vernáculo.
Em 1988, ele ordenou quatro bispos sem a aprovação do papa, mas levou consigo apenas um número relativamente pequeno de católicos para o cisma. Após sua morte, seu grupo não cresceu significativamente e experimentou suas próprias divisões (Bento XVI também tornou o grupo menos atraente ao permitir um maior uso da missa em latim pré-Vaticano II).
Certamente
- há bispos que não gostam do modo como o Papa Francisco está liderando a Igreja.
- O arcebispo Carlo Viganò pediu que o papa renunciasse.
- Outros, incluindo o cardeal Raymond Burke, criticaram Francisco, mas até agora nenhum deles demonstrou interesse algum em debandar.
Eles o veem como uma aberração que será corrigida pelo próximo papado. Afinal, aos 81 anos de idade, ele é mais velho do que muitos de seus críticos. Eles podem esperar por isso.
Para se ter um cisma,
- você também precisa de questões verdadeiramente divisivas que rachem a comunidade,
- não apenas os bispos.
Bispos conservadores se queixaram de que Francisco é
- excessivamente permissivo ao permitir que católicos divorciados em segunda união comunguem;
- demasiadamente suave com os católicos que praticam o controle de natalidade;
- e muito acolhedor aos católicos LGBT.
No entanto, pesquisas de opinião pública mostram que
- os católicos, até mesmo aqueles que frequentam a Igreja semanalmente,
- são muito mais liberais do que o papa nessas questões.
Embora blogueiros e comentaristas conservadores possam reclamar dessas questões,
- os fiéis não vão seguir um bispo ao cisma
- porque querem que as regras sobre o controle de natalidade, o divórcio e a homossexualidade sejam rigorosamente cumpridas.
Os sentimentos são mais fortes em relação ao aborto, mas Francisco expressou repetidas vezes a sua oposição ao aborto, embora, no início de seu reinado, ele tenha indicado que não transformaria a questão em uma “obsessão”, já que todos conhecem a posição da Igreja.
Os temas em discussão na reunião de Baltimore, o abuso sexual e o racismo, certamente são controversos, mas
- os bispos estão unidos em sua oposição ao racismo
- e unidos no pânico ao lidar com a crise dos abusos sexuais.
Sobre o abuso sexual,
- a grande divisão não é entre os bispos,
- mas sim entre os bispos e o seu povo.
Os cismas mais importantes da história tiveram mais a ver com a política do que com a teologia. Isso foi verdade no Grande Cisma e na divisão anglicana com Henrique VIII. Hoje, o cisma entre os fiéis ortodoxos ucranianos e russos tem tudo a ver com a política.
Do mesmo modo, alguns também consideravam que os bispos pertencentes à Associação Patriótica Chinesa estavam em cisma, porque também ordenaram bispos sem a aprovação vaticana. O Vaticano evitava chamá-los de cismáticos, e um dos principais objetivos do recente acordo de Francisco com o governo chinês foi emendar a divisão entre os católicos chineses, mesmo que isso significasse aceitar alguns bispos que o Vaticano nunca teria ordenado voluntariamente.
A Igreja Católica dos Estados Unidos tem sido extraordinariamente bem-sucedida em manter os oponentes políticos no seu redil.
- Enquanto muitas Igrejas protestantes se dividiram durante a Guerra Civil,
- a Igreja Católica permaneceu unida.
Nas recentes eleições de meio de mandato, os católicos dividiram seu voto entre candidatos republicanos e candidatos democratas, como fizeram na última eleição presidencial, enquanto outras denominações tenderam a votar esmagadoramente em um partido.
Essa unidade está sentindo alguma tensão, mas ainda parece forte. De acordo com o Pew Research Center,
- 84% dos católicos têm uma opinião favorável sobre Francisco,
- mas, quando isso é analisado por partido, os números são de 89% para os católicos democratas e de 79% para os católicos republicanos.
Este último ainda é um número extraordinariamente alto; qualquer político adoraria ter essa classificação. Mas isso mostra como o partidarismo pode enfraquecer a união.
O Pew também constatou que
- 55% dos católicos republicanos acham que Francisco é liberal demais.
- O discurso do papa sobre construir pontes em vez de muros
- e o seu forte apoio aos refugiados e migrantes vai contra a ortodoxia de Trump.
Mas esses republicanos não parecem dispostos a abandonar a Igreja.
Assim como os bispos estadunidenses não parecem prontos para abandonar as sensibilidades de ambos os lados.
- Embora alguns prefiram se concentrar no aborto, no casamento gay e na liberdade religiosa,
- nenhum deles tem apoiado as políticas anti-imigrantes do governo Trump.
- Somente neste ano, a Conferência dos Bispos dos Estados Unidos publicou 21 comunicados de imprensa sobre a a imigração, todos críticos em relação ao governo Trump.
É verdade,
- eles querem juízes pró-vida nomeados para a Suprema Corte,
- mas, ao contrário das lideranças evangélicas,
- os bispos católicos não venderam suas almas ao Partido Republicano.
Eles ainda seguem a doutrina social católica, com a sua preocupação pelos trabalhadores, os pobres e os marginalizados. Na verdade, eles se sentem desconfortáveis com ambas os partidos.
A questão em Baltimore não é o cisma, mas sim a credibilidade.
- Se os bispos não forem capazes de lidar de maneira credível com o abuso sexual durante a sua reunião em Baltimore,
- os fiéis não vão se dividir; eles simplesmente vão embora.
Thomas J. Reese
Leia mais:
- EUA. Os bispos, a crise dos abusos e a suspensão do Vaticano
- Esqueçam o Vaticano: os Bispos podem avançar e impedir o acobertamento de abuso
- Dom Scicluna à frente da organização da reunião dos presidentes das Conferências Episcopais para tratar da questão dos abusos?
- EUA. Vaticano pede que bispos adiem a votação sobre medidas contra abuso e gera confusão entre alguns prelados
- EUA. Bomba na reunião dos bispos: Vaticano impede votação sobre crise de abusos
- EUA. O Vaticano pede que ainda não seja votado o código de conduta para os bispos e a equipe de leigos que deveria tratar dos abusos
- Cisma na Igreja? “É uma chantagem dos tradicionalistas na qual não se deve cair de modo algum”. Entrevista especial com Paul Valadier
- Jesuítas publicarão os nomes dos padres acusados de abuso sexual no oeste dos EUA
- Carta aberta aos bispos dos EUA: acabou
- Nos próximos dias, a chegada de alguns bispos dos EUA, entre os quais o cardeal Daniel DiNardo e, em seguida, o encontro com o Papa Francisco
- EUA. Plano dos bispos para lidar com o abuso é insuficiente em termos de responsabilização
- Bispos americanos relatam que encontro com Francisco sobre abusos sexuais foi “longo e frutífero”.
- EUA e os abusos. Sete dias de retiro para bispos com o padre Cantalamessa
- Abusos e acobertamentos: acusações contra cardeal DiNardo às vésperas da audiência com o papa
- Resposta do Presidente da Conferência dos Bispos dos EUA à Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus
- O que os bispos dos EUA podem fazer em meio aos escândalos de abuso?
- A cúpula de proteção às crianças de Francisco pode ser a aposta de mais alto risco do seu papado
- Encontro dos bispos em fevereiro será um momento decisivo para o Papa Francisco
- Papa Francisco convoca uma reunião com os Presidentes das Conferências Episcopais sobre o tema da ‘proteção dos menores”
- “Alguns bispos dos Estados Unidos culpam Francisco para se defender do colapso de sua credibilidade”. Entrevista com Massimo Faggioli
- Após os acontecimentos da Pensilvânia, Papa Francisco na sua Carta ao Povo de Deus convidou os católicos “ao exercício penitencial da oração e do jejum”. Qual Episcopado anunciou as primeiras iniciativas? Nenhum
- Bispo da Pensilvânia diz que os bispos que acobertaram casos de abuso devem se demitir
- Cardeal Wuerl, de Washington, o relatório da Pensilvânia e os desafios da viagem do Papa Francisco à Irlanda
- Apenas dois padres da Pensilvânia – entre 300 acusados – podem ser processados
- Abuso, o Vaticano sobre o relatório da Pensilvânia: “vergonha e dor”
- Relatório do grande júri da Pensilvânia é o novo fundo do poço da Igreja. Artigo de Thomas Reese
- EUA. Igreja da Pensilvânia encobriu mais de 1.000 abusos contra crianças nas últimas décadas
- Bispos católicos não hesitam em atacar Trump, mas demoram a aconselhar seus eleitores
- Outra carta dos quatro cardeais ao Papa. Agora pedem uma audiência
- Ex-núncio nos EUA, Viganò: ”O papa deve renunciar”
Leave a Reply