Anselmo Borges- 27/10/2018
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A consciência da inevitabilidade de morrer abala na sua raiz a existência enquanto totalidade, convocando o ser humano para a pergunta absoluta, que não é mera curiosidade:
- Quem sou eu?
- Que será de mim?
- Qual o sentido da minha vida e da História?
- O que é que, em última análise, habita no seu núcleo?
Há muito que para mim é claro que, para perceber uma sociedade, mais importante do que saber como é que nela se vive é saber como é que nela se morre e nela se trata a morte e os mortos.
Aí está: hoje a morte é tabu, mais: vivemos numa sociedade assente sobre o tabu da morte, tendo nele o seu fundamento.
Da morte não se fala. Não é de bom tom. E o que é que isso revela? Que vivemos numa sociedade desorientada, que
- não sabe o que há-de fazer com a morte
- e, por isso, também não sabe viver na fundura ético-metafísica que o pensamento da morte dá e exige.
O que aí fica, talvez intempestivamente, para os dois dias 1 e 2 de Novembro, que tradicionalmente eram consagrados à meditação sobre a morte e o seu sentido, que é o sentido da vida, são breves reflexões sobre este tema incómodo, mas sem o qual se deriva para o inessencial.
A morte é o mistério pura e simplesmente. Ninguém sabe o que é morrer. Ainda nenhum de nós, felizmente, morreu, e os mortos, esses, não falam. Não temos experiência do que é morrer nem do estar morto nem do Além. A morte escapa a todas as categorias. Como escreveu o filósofo Emmanuel Levinas, “a morte é o mais desconhecido de todos os desconhecidos. Ela é mesmo desconhecida de modo totalmente diferente de todo o desconhecido”.
Perante o rosto morto de uma pessoa, concretamente da pessoa amada ou de um amigo, sabemos que qualquer coisa de dramático e único aconteceu:
- o fim da existência no mundo,
- o “stop” definitivo e irreversível.
Mas o que é que isto quer dizer verdadeiramente?
“Nunca saberemos o que é que a morte significa para o próprio morto. Não sabemos sequer o que pode haver de legítimo na fórmula: para o próprio morto.”
Em última análise, não é possível fazer um juízo definitivo sobre a vida de alguém, porque nunca nos é dado saber o que foi a sua morte.
- No confronto com a morte,
- é com a irrepresentabilidade total que deparamos.
- Só os vivos falam da morte.
- Os mortos, esses, calam-se definitivamente.
Para que estou na Terra? Para que nasci? Imagem: Wix.com
Sigmund Freud também escreveu:
“O facto é que nos é absolutamente impossível representar a nossa própria morte, e todas as vezes que o tentamos apercebemo-nos de que assistimos a ela como espectadores. É por isso que a escola psicanalítica pôde declarar que, no fundo, ninguém crê na sua própria morte ou, o que é o mesmo, que, no seu inconsciente, cada um está persuadido da sua própria imortalidade.”
No fundo, nenhum de nós acredita que há-de morrer:
- a morte é sempre a morte dos outros,
- só acontece aos outros,
- cada um de nós pensa que será excepção.
Porque é impossível eu conceber a minha consciência, a consciência de mim, morta.
Por outro lado, paradoxalmente, no núcleo da própria existência, há uma experiência vivida da morte enquanto limite último insuprimível e insuperável.
No centro da vida,
- a morte está presente como mistério,
- o impensável que obriga a pensar.
A vida vê-se inevitavelmente confrontada com a morte enquanto barreira intransponível. Porque o ser humano é o ser da antecipação, toma consciência de que é inevitavelmente mortal: dada a sua condição corpórea, no horizonte da sua vida, antecipando o futuro, a morte surge-lhe como termo inescapável.
E, se a morte enquanto totalização põe em questão
- não só o aquém,
- mas também o seu além,
- falar da morte humana enfrenta-se com a pergunta inevitável: e depois?
Porque, se também o animal pode ter medo de morrer, só a pessoa humana, porque é autoconsciente, se angustia face à morte. O medo relaciona-se com um objecto concreto;
- a angústia é difusa,
- é esse temor único, em última análise, do nada,
- da morte enquanto dissolução do eu.
Unamuno exprimiu-o com estas palavras: “O meu eu, ai que me roubam o meu eu!”
Hoje, predomina o tabu, o recalcamento, da morte. Nas nossas sociedades científicas e técnicas, urbanas e consumistas, hedonistas e invadidas pelo niilismo,
- a morte tornou-se realmente tabu.
- Ela é umas realidade quase obscena.
Repare-se, neste sentido, como se inverteu a relação com o sexo e com a morte:
- nas sociedades tradicionais, tabu era o sexo;
- hoje, tabu é a morte, talvez o último tabu.
Como é que uma sociedade que gira à volta da organização sócio-económica, determinada pelo individualismo concorrencial feroz e insolidário, onde os valores considerados são
- o prazer,
- o êxito,
- a juventude,
- a beleza,
- a eficácia,
- a produção,
- o lucro,
- acumulação de bens e fortuna,
- progresso e riqueza,
pode ainda acompanhar afectivamente
- os doentes,
- os velhos
- e os moribundos (agora, diz-se “pacientes terminais”)
- e suportar o supremo fracasso da morte?
Mas não se pense que se deixou de falar da morte por ela já não constituir problema. É exactamente o contrário que se passa:
- de tal modo a morte é problema,
- o problema para o qual uma sociedade que se julga omnipotente não tem solução
- que só resta a solução de ignorá-la, ocultá-la, reprimi-la.
Aquilo que provoca dor infinda e para que não há solução é recalcado.
Mas, quando uma sociedade precisa de afastar a morte do seu horizonte, temos aí um sinal de desumanização e alienação. Paradoxalmente, essa sociedade torna-se
- mortífera,
- tanatocrática
- e tanatolátrica.
Pode perguntar-se: ao contrário das aparências, não revelará a ocultação da morte precisamente um medo-pânico da morte que se pretende exorcizar? Viktor Frankl mostrou que
- “a angústia perante o vazio existencial e a neurose noógena de sentido
- estão às portas de quem por medo foge ao medo.”
O homem das nossas sociedades
- possui ingência de meios e bens materiais,
- mas vive no deserto de fins autenticamente humanos
- e de sentido que preencha a existência.
Sofre por falta de orientação existencial, tendo, por isso, medo dos aspectos negativos da existência. As sociedades da opulência actuais
- satisfazem necessidades materiais,
- ma não a vontade essencial, constitutiva, de sentido.
Preso do prazer imediato, o homem actual perdeu o sentido da totalidade, pelo qual o confronto com a morte inevitavelmente pergunta. A consciência da inevitabilidade de morrer abala na sua raiz a existência enquanto totalidade, convocando o ser humano para a pergunta absoluta, que não é mera curiosidade:
- Quem sou eu?
- Que será de mim?
- Qual o sentido da minha vida e da História?
- O que é que, em última análise, habita no seu núcleo?
Sem a consciência da morte, haveria filosofia, religião e exigência ética? Com a ocultação da morte, o ser humano pretende viver na ignorância do futuro, e perde o seu ser. Então é fácil a ética dissolver-se no simples utilitarismo e hedonismo.
Já Ortega e Gasset se queixava: “Esta é a questão: a Europa ficou sem moral”.
De facto, é confrontados com a morte que somos colocados perante
- a urgência da decisão,
- a unicidade, dramaticidade, densidade e responsabilidade irrevogável da vida
- e a questão do sentido total da existência.
Pela antecipação da morte,
- a vida é-nos dada como totalidade
- e no seu carácter de definitividade e ultimidade,
- numa só vida e com uma só morte,
- ambas irrepetíveis.
Sem essa antecipação,
- o homem fica na situação do animal,
- para o qual tudo se passa em “aquis” e agoras” sucessivos,
- sem possibilidade de totalização,
- e, portanto, regido exclusivamente pelos impulsos de prazer e desprazer imediatos.
Perante a angústia da morte,
- o homem actual remeteu-se para a morte neutra e abstracta,
- como estratégia para continuar a viver na vulgaridade,
- na dispersão banalizante
- e na banalização dispersante,
- na existência inautêntica,
- para cuja ameaça nos alertaram os filósofos Martin Heidegger e Sören Kierkegaard.
Por isso, é urgente reconquistar a sabedoria da meditação da morte, para que a existência readquira autenticidade, porque é a morte que faz a triagem
- entre o que verdadeiramente vale
- e o que realmente não vale,
- entre o decisivo e o banal,
- entre superficialidade e liberdade que liberta,
- entre ter e ser,
- entre o que verdadeiramente quero e o que é mera ilusão.
Na antecipação da morte, capto o valor único da pessoa, que vale mais do que todas as coisas: as coisas são meios, só a pessoa é fim, insubstituível. Assim, o pensamento da morte impõe-se,
- não como veneno para a vida,
- mas como antídoto contra a vulgaridade vaidosa e vazia da existência inautêntica.
É verdade que a consciência da necessidade de morrer me pode atirar para o abismo da dissolução nos prazeres imediatos: “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”.
Muitas vezes também,
- o poder devastador da morte
- serviu satanicamente de instância fundadora de poderes totalitários,
- tanto na ordem temporal como espiritual.
Mas é igualmente verdade que, na antecipação de todos os rostos mortos, se encontra talvez o único lugar autêntico da compaixão, da paz e da fraternidade, que, entretanto, se torna imperativo construir, evitando a catástrofe:
Somos mortais: logo, somos irmãos, como viu até Herbert Marcuse, que, dois dias antes da sua morte, já no hospital, confessou a Jürgen Habermas:
“Vês? Agora sei em que é que se fundamentam os nossos juízos de valor mais elementares: na compaixão, no nosso sentimento pela dor dos outros”.
Padre e professor de Filosofia
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