Eduardo Febbro – 17 Outubro 2018
Foto: Jair Bolsonaro e seus colaboradores com o lema de campanha: Brasil por acima de tudo, Deus acima de todos. Imagem: EFE.
É um plágio feio e vergonhoso dos lemas de Hitler: “Deutschland Über Alles”, e de Trump: “America first”.
A ficção é uma disciplina que depende da realidade. Esta, às vezes, costuma ser mais impressionante que todas as ficções juntas.
O Brasil que está a ponto de eleger Jair Bolsonaro como próximo presidente da República é uma das histórias reais mais fictícias que se possa conjecturar.
Sua investigação jornalística publicada em francês por Editions du Cerf, Jésus t’aime(Jesus te ama), é a crônica resplandecente e rigorosa de um movimento de vagas raízes teológicas que foi trepando pela coluna vertebral do país humilde e periférico abandonado pelo Estado, a Igreja Católica e a própria esquerda.
A nação que nos anos 60 viu nascer a teologia da libertação perdeu para o que a autora chama de “a teologia da prosperidade” e suas eloquentes e disparatadas encenações: a Judá Cola substitui a Coca-Cola, Bolsonaro é um santo ao lado de Satanás, quer dizer, o PT, os pastores das igrejas evangélicas são os novos milionários do Brasil e os proprietários dos principais meios de comunicação que colocaram a serviço do candidato que saiu à frente no primeiro turno.
Longe das radiografias fáceis, a investigação jornalística de Lamia Oualalou demonstra que o apogeu dos evangélicos é uma forma de resposta à ausência do Estado, que seu enraizamento na região urbana periférica responde ao distanciamento da Igreja Católica dessas áreas e que sua pavorosa influência política se apoia no abandono das classes mais vulneráveis por parte de uma esquerda que as deixou órfãs. Jesus te ama é um livro oriundo da raiz mais profunda do Brasil, onde a jornalista (Le Figaro, Mediapart, Europe 1, Le Monde Diplomatique) viveu muitos anos.
Lamia Oualalou traça o caminho paradoxal de uma dupla vitória, a dos evangélicos e Bolsonaro, paralela à derrota da esquerda e da Igreja do Papa Francisco.
A entrevista é de Eduardo Febbro, publicada por Página/12, 16-10-2018. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Com os resultados do primeiro turno das eleições no Brasil e o peso considerável que os evangélicos tiveram nela, é possível dizer que há uma expansão dos evangélicos na América Latina?
Sim, há uma expansão no México, na Argentina, no Chile. No Brasil, vemos a consequência da influência dos evangélicos diretamente nas eleições: os pastores evangélicos convocaram para votar em Bolsonaro. Hoje, temos uma boa parte da população brasileira que não só é evangélica como também segue o que o pastor diz. Isto teve e terá um impacto muito complicado, porque o PT não sabe falar com os evangélicos. Esse foi um dos grandes erros que cometeu no passado.
Em sua pesquisa, você demonstra que essa expansão dos evangélicos é uma resposta à ausência do Estado… e algo mais.
Houve vários fatores combinados. Por um lado, pouco a pouco a Igreja Católica foi desaparecendo dos lugares mais populares, sobretudo das novas cidades e favelas que foram criadas em uma velocidade enorme, após os anos 70. A Igreja Católica tem aqui um problema de presença urbana:
- nas favelas e cidades emergentes,
- a Igreja Católica não entra.
Nesse mundo suburbano, pobre, com gente oriunda por exemplo do Nordeste, não há lugares de socialização. A única coisa que existe é o templo evangélico, onde podem cantar, fazer amigos, deixar seus filhos. Não estão presentes
- o Estado com seus auxílios (saúde, trabalho, educação),
- nem a Igreja Católica,
- mas, sim, os evangélicos que costumam prestar alguns desses serviços.
Os evangélicos, no Brasil, ocuparam o espaço do Estado com o consecutivo impacto cultural e político que isso acarreta: as pessoas só ouvem a rádio evangélica, veem o canal evangélico, participam dos grupos evangélicos do Facebook e WhatsApp. As pessoas vivem fechadas nesse mundo. E, claro, vivem nesse círculo porque os partidos e movimentos progressistas, o PT por exemplo, abandonaram estas pessoas. Por fim, o que aconteceu é que foram cortadas as pontes para dialogar com as pessoas humildes.
Que enorme e doloroso paradoxo! O Brasil foi a terra onde se forjou a Teologia da Libertação e hoje se tornou o berço evangélico, que você define como uma “teologia da prosperidade”.
Esta é uma Lista dos pastores evangélicos mais ricos do Brasil segundo a revista norte-americana Forbes. Na primeira posição, está o bispo Edir Macedo, que tem uma fortuna estimada em dois bilhões de reais, segundo a revista. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_dos_pastores_evang%C3%A9licos_mais_ricos_do_Brasil_(Forbes)
Nº | Pastor | Fortuna | Igreja |
---|---|---|---|
1ª | Edir Macedo | US$ 950 milhões | Igreja Universal do Reino de Deus |
2ª | Valdemiro Santiago | US$ 220 milhões | Igreja Mundial do Poder de Deus |
3ª | Estevam e Sônia Hernandes | US$ 190 milhões | Igreja Renascer |
4ª | Silas Malafaia | US$ 150 milhões | Assembléia de Deus |
5ª | R. R. Soares | US$ 125 milhões | Igreja Internacional da Graça de Deus |
A lógica da teologia da prosperidade é fascinante porque
- diz ao membro da Igreja que, basicamente,
- tem direito a tudo: à saúde, a uma boa vida material.
- E isso agora mesmo e não na próxima vida!
- E se não já não tem isso é porque não sabe exigir.
Isto implica uma mudança no que diz respeito à relação com Deus: Deus tem que te dar isso e você só precisa saber pedir. E para pedir a ele, você deve
- fazer parte do grupo evangélico,
- pagar
- e rezar.
E, ao final, de alguma forma funciona:
- quando os evangélicos dizem “deixa de beber e você vai encontra um trabalho”,
- as pessoas acabam trabalhando mais e melhor sem estar bêbadas.
- Por isso, as pessoas acabam vendo que há um impacto positivo em suas vidas,
- ainda que aquilo que obtenham seja mínimo.
A esquerda brasileira parece que também não entendeu o tema da teologia da prosperidade.
Não, claro que não e isso foi outra tragédia.
- A esquerda interpretou a teologia da prosperidade de forma muito básica.
- Fez a leitura dela unicamente como uma adaptação do neoliberalismo.
- É certo que há uma parte de consumismo, mas também existe uma forte lógica de solidariedade.
Hoje, se pagam as consequências: o que começou com Deus se tornou um enorme movimento moralista, anti-PT, anti-intervenção do Estado.
Os evangélicos estão em uma lógica de consumo capitalista. Não obstante, é preciso ressaltar que esse era o discurso de todo o país. Inclusive nos anos de Lula se dizia: “agora todos os brasileiros podem ser cidadãos porque têm acesso a um cartão de crédito” (Guido Mantega, ex-ministro da Fazenda). Para muita gente, os anos de Lula deram mais legitimidade à teologia da prosperidade. Esse discurso se apoderou de todo o país.
- Ser evangélico também é uma forma de ascensão na escala social.
- Nem o trabalho, nem a política, nem o sindicalismo permitem isso.
Os evangélicos fizeram um trabalho de penetração setor por setor: seduziram os atletas, os atores, os surfistas, a polícia, o crime organizado, etc. Setorizaram sua expansão.
De fato, não há uma Igreja evangélica, mas muitas. Seu único ponto em comum é a forte personalidade dos pastores. Os evangélicos têm uma visão de marketing sobre a sociedade.
- Fazem uma Igreja que interessa as pessoas que jogam futebol,
- outra Igreja para os gays porque estão excluídos,
- outra Igreja mais rigorosa
- e uma mais permissiva.
Isto acaba tendo uma força incrível porque você sempre acaba encontrando uma Igreja do seu gosto.
Estão igualmente em todas as esferas de poder:
- no sistema judiciário,
- na política (têm 90 deputados),
- na polícia.
Se forem à página da polícia militar, verão que
- uma parte das ajudas sociais estão organizadas pelos evangélicos.
- São majoritários até nas prisões.
- No Rio de Janeiro, das 100 representações religiosas que estão presentes nas prisões, 92 são evangélicas. O
Estado permite isso porque perdeu sua capacidade de intervenção.
Com Bolsonaro e seus apoios evangélicos estamos diante de uma dupla derrota: a do PT e a do Papa Francisco.
Acredito que quando veio ao Brasil o Papa Francisco se deu conta de que era muito tarde. As imagens da viagem do Papa com milhões e milhões de pessoas correspondiam a bairros católicos. Quando se perguntava aos evangélicos o que pensavam de Francisco, muitos deles não sabiam quem era o Papa. E estamos falando do primeiro país católico do mundo.
Além disso,
- para não perder terreno,
- uma parte da Igreja Católica acaba em muitos casos imitando a Igreja Evangélica.
- O Papa teve que aceitá-los. A única maneira de mudar a situação atual é com trabalho de base.
Contudo,
- os bispos que estão no Brasil foram nomeadas pelos dois papas anteriores (Bento XVIe João Paulo II)
- e hoje não repercutem o que Francisco ordena.
Derrota também do PT, claro. Como a esquerda brasileira abandonou as populações pobres, esta população foi cada vez mais para a direita. Além disso, a campanha se articulou em torno do WhatsApp, detalhe que o PT também não entendeu.
Em suma, Bolsonaro não estaria onde está sem as contribuições dos evangélicos. Estes derrotaram o PT nos templos antes das eleições.
Ele entendeu muito bem como falar com eles.
- Não é evangélico (sua mulher sim),
- mas aceitou toda uma parte do circo evangélico:
- pediu a um Pastor que o batizasse (foto) e comparece com frequência aos atos evangélicos.
Neste momento de crise e de medo, ele vem com este discurso de ordem, de matar os bandidos.
A isto se acrescenta o trabalho de demonização do PT que os pastores empreenderam. Nos templos se diz
- que a crise e a recessão são culpa de satanás,
- e esse satanás é o PT.
Apresentam o PT
- como se fosse um partido radical,
- quando na realidade é de centro-esquerda.
Distribuem uma retórica que nada tem a ver com a realidade e as pessoas acreditam. Além disso, os evangélicos trabalharam o tema dos meios de comunicação.
A segunda televisão do país é propriedade de Edir Macedo, o Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus(IURD).
Macedo pôs todo o seu aparelho midiático a serviço de Bolsonaro. O poder de Bolsonaro irá depender muito do poder dos pastores evangélicos. O PT tenta às pressas se aproximar desse eleitorado, mas é tarde. O que precisaria fazer
- é desconstruir a imagem dos pastores
- e demonstrar que são bandidos,
- que são as principais fortunas do país.
Mas isto não se realiza em algumas semanas.
Leia mais:
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