Jean Tible – 14 Setembro 2018
Foto: Outras Palavras
Segundo ele, “a crise que já era grande se aprofundando numa situação que é perigosa, pois os atores não cabem mais nas instituições e não se vê nenhuma possibilidade imediata de transformação destas, abrindo espaços para saídas autoritárias”.
Eis o artigo.
Luiz Inácio Lula da Silva polariza as eleições presidenciais desde o segundo turno de 1989. Mesmo impedido de concorrer, continuará sendo o personagem principal da disputa desse ano. São oito eleições seguidas e quase três décadas de presença constante no topo da agenda política: um fenômeno mundial. Sua prisão visa impedir o que seria uma muito provável vitória eleitoral em outubro nesse golpe que se desdobra em várias fases e que prossegue seu curso; sua condenação se dá em num contexto de atropelos na justiça – grampos ilegais, condução coercitiva desnecessária, prazos acelerados, delações premiadas suspeitas, provas inexistentes…
Injustiça
O que significa e nos ensina essa exclusão de Lula do pleito e a caça a esse corpo?
Podemos pensar, por um lado, que o país não comporta nem mesmo um processo moderado de mudanças e um pacto mínimo de diminuição das nossas aberrantes desigualdades. Não querendo ceder absolutamente nada, as classes dominantesromperam o contrato básico eleitoral (ao tirar Dilma do cargo político máximo sem haver crime de responsabilidade). Desrespeitaram, assim, as regras elementares e jogaram baixo. Esse continuum escravocrata não tolera as brechas criadas e conquistadas – provocando uma tragédia com o Brasil, jogando-o numa espiral recessiva e numa sobreposição de crises (política, econômica, social, existencial). A fome – seu fim como símbolo maior das conquistas do período Lula – volta a rondar muita gente. [1] A austeridade, criminosa em qualquer canto do planeta, ganha outras camadas de perversidade por essas bandas.
Isso é ruim, inclusive para os donos do dinheiro e capital. Estariam eles agindo contra seus interesses? Sim, se pensarmos que os negócios vão mal. Não, pois o negócio deles é outro – como disse na quente década de 1970 italiana o Comitê Operário de Porto Marghera, ainda mais importante do que ganhar dinheiro é comandar (ou não perder poder);
O que devemos dizer antes de tudo é que é falso o lugar comum de que os patrões exploram os trabalhadores para se enriquecerem. Esse aspecto sem dúvida existe, mas a riqueza dos patrões não é em nada proporcional ao poder deles. Por exemplo, Agnelli [dono da FIAT], em proporção aos automóveis que produz, deveria andar vestido de ouro, porém ele se contenta com um barco e um avião privado, o que um outro patrão com uma fábrica bem mais modesta do que a FIAT pode muito bem se permitir. O que interessa a Agnelli é a conservação e o desenvolvimento do seu poder, que coincide com o desenvolvimento e o crescimento do capitalismo: quer dizer, o capitalismo é uma potência impessoal e os capitalistas agem como seus funcionários. (…) O capitalismo está substancialmente fundamentado, sobretudo, em conservar essa relação de poder contra a classe trabalhadora e usa o seu desenvolvimento para reforçar sempre mais esse poder. [2]
Por outro lado, numa linha que não necessariamente exclui a anterior, esse esclarecido setor (o andar de cima) percebeu uma mudança funda (e em certo sentido irreversível) em curso. Todo um tecido de vidas, de formas de existir e habitar as vias, vielas, aldeias, caminhos se formou nos últimos anos.
Territórios libertos, às vezes mais fugazes, outros mais duradouros – sempre importantes. Marchas, grupos, associações, festas, hortas, ocupações, ações e criações mil constituem a irrupção singular de novas subjetividades
- preta, LGBTQ+,
- trabalhadora,
- periférica,
- feminista,
- indígena,
múltiplas que desperta medo (todos os levantes brasileiros foram seguidos de uma brutal repressão – a revolta do malês de 1835 como um dos inúmeros exemplos). O golpe (que segue) como uma peculiar contra-revolução, desencadeada pelo temor da exuberância vital dos
- corpos livres,
- insubmissos,
- descolonizados,
- não domesticados.
Daí as reações identitárias (branca, masculina, heteronormativa) que pululam e os ataques constantes às principais esferas de atuação (cultura, educação) dessas emergências.
Dois eventos trágicos que ocorreram esse ano (o assassinato de Marielle e a perseguição política e prisão do Lula),
- embora sejam acontecimentos envolvendo gerações diferentes, causas específicas e magnitude distintas,
- se conectam porque o recado que o país dá para a população é o seguinte:
- que os mal nascidos não têm lugar na política. [3]
Estamos vivendo uma profunda crise política. A credibilidade do sistema é quase nula.
Para compreendê-la, temos que retomar os acontecimentos de junho de 2013 que completaram 5 anos.
Estes
- abriram um novo ciclo político
- e sua conjunção posterior com a crise econômica
- e de perspectivas para a população
- só aguçou um rechaço generalizado que ali se esboçou.
Não surpreende que
- os partidos tradicionais do sistema político não tenham levado isso a sério,
- mas um deles, a ala esquerda do sistema político (o PT),
- poderia ter interpretado os sinais das ruas de forma mais aguçada, pois daí vêm suas origens.
Ao não conseguir ou querer seguir esse caminho, o PT contribuiu ao bloqueio de uma renovação imprescindível. Aí se expôs talvez o principal ponto fraco do projeto:
- Lula e o PT ajudaram decisivamente a abrir brechas,
- mas conjugando-as com uma falta de urgência em transformar as instituições
- produziram um curto-circuito.
Esse paradoxo se expressa na (por ora) última entrevista de Lula na qual, em certos momentos,
- fala que seu governo provocou quase uma revolução pacífica,
- mas reiteradamente reafirma sua confiança nas instituições (pois ir contra estas seria seguir uma via revolucionária que ele rechaça, ao associá-la à luta armada).[4]
Analisando o atual panorama político, brasileiro e latino-americano (já que estão intimamente conectados e indicam desafios que dialogam),
- essa aposta de Lula faz sentido?
- O que nos dizem os processos contra os 23 do Rio, os 18 de São Paulo e outros assassinatos?
- Uma política institucional que exclui essas expressões de esquerda, tanto as radicais quanto as moderadas, fomenta caminhos não-democráticos…
Perspectivas
Vemos essa crise que já era grande se aprofundando numa situação que é perigosa, pois
- os atores não cabem mais nas instituições
- e não se vê nenhuma possibilidade imediata de transformação destas,
- abrindo espaços para saídas autoritárias.
Apesar dos acordos empresariais-midiáticos-judiciários (dentro e fora do Brasil), os golpistas não conseguiram convencer a população – predominaram num dado momento, mas logo afundaram com seu desastroso governo ilegítimo.
Nisso reside sua “derrota estratégica” [5] – que tem uma longa trajetória:
- quando consultados,
- brasileiras e brasileiros não costumam carimbar nacionalmente com seu voto agendas anti-populares,
- numa certa constante desde 1945. [6]
A partida está em curso.
É verdade que (apesar dos protestos),
- não se ativou uma pulsão suficiente para impedir a injusta prisão de Lula,
- mas todas as pesquisas indicam um desejo coletivo predominante em votar nele e vê-lo de volta ao governo:
- eis um exemplo nítido da potência e limite do lulismo.
O contexto é delicado, no Brasil e no mundo.
A extrema-direita está presente em
- cinco governos europeus,
- Filipinas,
- Israel
- e ainda Trump nos EUA.
Isso ganha facetas preocupantes aqui,
- dado nosso histórico de campeões mundiais dos genocídios não interrompidos (essa máquina de moer gente – Darcy Ribeiro),
- e onde expressões desavergonhadas da direita extrema (res)surgem.
A isso se soma a perigosa volta de um papel ativo político dos militares, com uma banalização progressiva desde meados dos anos 1990 das operações de GLO (garantia da lei e da ordem) e de indiciamentos de acordo com a vetusta Lei de Segurança Nacional.
Sendo impossível a candidatura de Lula, Fernando Haddad surge como favorito à vitória na minha leitura.
- O deixarão ganhar?
- Estão as forças democráticas prontas para a situação que pode se configurar no país?
- Esse caldo de coletivos e movimentos que vem se formando nos últimos anos e as organizações tradicionais de esquerda estão preparadas para barrar ímpetos autoritários?
Criemos os caminhos de lulas libertos.
Notas:
Escrevi esse texto a partir de um convite de Everaldo de Oliveira Andrade e Jean Pierre Chauvin para um livro-manifesto que ambos estão organizando. Agradeço a leitura e comentários de Martha Kiss, Alana Moraes, Ramon Szermeta e Hugo Albuquerque a uma primeira versão.
[1] Fome oculta: a rotina de quem sofre com a falta de alimentos
[2] A recusa do trabalho – Comitato Operaio di Porto Marghera
[3] Em Curitiba, pais de Marielle falam sobre violência sofrida pela filha e por Lula
[4] Luiz Inácio Lula da Silva. A verdade vencerá: o povo sabe por que me condenam. São Paulo, Boitempo, 2018.
[5] Zé Dirceu volta para a peleja. O encontro do líder petista com a mídia independente
[6] André Singer. Lulismo em crise: um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016). São
Jean Tible
Leia mais:
- Junho de 2013 – Cinco Anos depois. Demanda de uma radicalização democrática nunca realizada. Revista IHU On-Line Nº. 524
- A esquerda e a reinvenção da política. Um debate. Revista IHU On-Line Nº. 523
- A volta do fascismo e a intolerância como fundamento político. Revista IHU On-Line Nº. 490
- A esquerda dividida por Junho de 2013 e a possibilidade de construir novas conexões. Entrevista especial com Jean Tible
- Uma trilogia para repensar os consensos que paralisam a esquerda. Entrevista especial com Jean Tible
- Vertigens de junho
- O 18 de brumário brasileiro
- Maio de 68, Junho de 2013
- Junho de 2013. Uma oportunidade perdida para construir uma alternativa de esquerda entre jovens trabalhadores precarizados. Entrevista especial com Sean Purdy
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