Frei Bento Domingues, O.P. – 15/04/2018
Imagem: Paróquia São Judas Tadeu
“Parece que a maioria das pessoas recusa o niilismo. Não aceita que a morte seja o fim de tudo. No vocabulário cristão, a ressurreição impôs-se, mas continua a ser difícil exprimir a significação dessa gloriosa metáfora“.
1. Uma biografia procura dar a conhecer o percurso entre o nascimento e a morte. A possibilidade de observar o desenvolvimento da vida intra-uterina é relativamente recente. Esta banalidade não pode ser esquecida na leitura das narrativas em torno da ressurreição de Cristo.
Depois da morte, restam apenas as marcas que o falecido deixou nas suas obras e na memória dos vivos. No entanto, o imaginário da vida depois da morte sempre suscitou e alimentou insólitas “histórias” de terror e consolação[i]. Os “mapas” da geografia do Além e das crenças nos poderes invisíveis são abundantes na originalidade de cada povo e cultura.
- Parece que a maioria das pessoas recusa o niilismo.
- Não aceita que a morte seja o fim de tudo.
- No vocabulário cristão, a ressurreição impôs-se, mas continua a ser difícil exprimir a significação dessa gloriosa metáfora[ii].
Quando lemos e proclamamos, na Eucaristia, trechos das chamadas narrativas da ressurreição de Cristo (cujo facto ninguém presenciou, nem poderia presenciar), ficamos sempre mergulhados em muitas perplexidades.
- Por um lado, no dizer de S. Paulo, se não há ressurreição, Cristo também não ressuscitou e, se Cristo não ressuscitou, estamos ligados a nada ou, apenas, à memória do que foi e nunca mais volta.
Recordar o exemplo que Jesus de Nazaré nos deixou – a figura mais extraordinária da humanidade – deve encher de alegria crentes, agnósticos e ateus. Para os cristãos, esvaziar a sua humanidade é um atentado contra a humanização de Deus.
- Por outro lado, as narrativas que falam de Jesus depois da morte enchem-nos de dúvidas e todas as exegeses aumentam as dificuldades. O que é contado aconteceu de facto, ou não são mais do que criações de uma imaginação delirante?
Nessa escrita, o verosímil e o impossível parecem constituir a originalidade do seu tecido. A actuação de Jesus, umas vezes é apresentada à imagem do que aconteceu durante o seu percurso terreno, noutros casos a linguagem é de ruptura completa.
- Como mostrar que Jesus ressuscitado continua a ser o mesmo que viveu com os discípulos e que agora vive numa dimensão completamente nova e indizível?
- Como pode atingir-nos em todos os tempos e lugares e conviver com todos os seres humanos de todas as épocas da história?
Os narradores tiveram de recorrer a todos os recursos da imaginação para exprimir o que supera a nossa experiência intra-histórica. A linguagem simbólica é muito mais realista do que a linguagem das ciências empíricas. Quanto mais poético mais real. A música é a sua alma e apenas ela pode sugerir o que nenhuma linguagem pode conter.
2. Numa pequena tertúlia, surgiu a opinião de que essa observação era uma escapatória. Agora, as novas tecnologias oferecem e antecipam algo de muito mais milagroso e sofisticado do que as peripécias das narrativas e aventuras sobre a ressurreição.
Como sou uma nulidade acerca das possibilidades das novas tecnologias, abstenho-me do ridículo de usar as suas linguagens na interpretação dos textos do Novo Testamento.
Além disso, o uso que a liturgia católica faz desses textos não é para resolver problemas do passado nem para dar contributos à Quarta Revolução Industrial[iii]. Pretende responder a esta simples questão: Jesus Cristo é ou não nosso contemporâneo? Umas vezes situamo-lo no passado, naquele tempo, ou no céu, à direita do Pai, numa espécie de férias prolongadas.
Nas próprias orações das missas repete-se Ele que é Deus convosco. O Emmanuel, o Deus connosco, nessas expressões
- acaba por viver sem nós,
- situado no passado ou no “etéreo”.
Não tem de ser assim.
3. A arte de entrosar o passado e o presente foi-nos oferecida por S. Lucas [4]. Escreveu um conto — os Discípulos de Emaús — como se fosse acerca do passado para dizer o que sempre acontece numa comunidade cristã. Imaginou dois dos discípulos,
- tristes e desiludidos pelo que aconteceu ao seu Mestre
- e sem esperança na ressurreição prometida.
O interessante do conto é que o próprio Jesus entrou no grupo e na discussão do que tinha sido o seu julgamento.
Eles estranham a ignorância e a distracção deste forasteiro e explicaram-lhe, com todos os pormenores, o que Lhe tinha acontecido. Este mostra-se muito interessado. Acabam por acrescentar: «é verdade que algumas mulheres, que são dos nossos, nos assustaram; foram ao sepulcro e vieram dizer que tiveram umas visões e que Ele está vivo. Os homens verificaram a narrativa das mulheres, mas não O viram.»
Aí, o forasteiro explicou-lhes que não estavam a entender o que tinha acontecido. Não se dá por achado e explicou-lhes, a partir das Escrituras, o que a Esse personagem dizia respeito.
Estando os discípulos perto da aldeia para onde iam, Jesus fez de conta que seguia viagem. Pediram-lhe para ficar com eles. Ficou e tomou conta da casa e da mesa. Tomou o pão partiu-o, distribuiu-o e deixaram de O ver.
O espanto: enquanto O viram, não O viram. Quando O não viram, reconheceram-no no gesto eucarístico.
Este é um verdadeiro conto exemplar.
- Jesus Cristo é o clandestino da vida humana.
- Não damos por Ele,
- mas Ele anda sempre connosco.
A celebração da Eucaristia implica uma ponte entre o quotidiano e a celebração. Mas sem o acolhimento do desconhecido não acontece nada. Certamente que Jesus não tinha uma forma especial de partir pão. Mas é Ele que é o pão da vida.
A celebração semanal da Eucaristia serve
- para não perder a memória de Jesus,
- a transformação do presente
- e a abertura à esperança.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público,15. 04. 2018
Fonte: https://www.publico.pt/2018/04/15/sociedade/opiniao/o-imaginario-pascal-do-alemtumulo-1809821].
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Notas:
[i] José Mattoso, Poderes Invisíveis. O Imaginário Medieval, Círculo de Leitores, 2013
[ii] Cf. Padre Anselmo Borges, O que é ressuscitar?, DN 06.04.2018
[iii] Klaus Schwab, A Quarta Revolução Industrial, Lenoir/Público, 2017
[iv] Lc 24, 13-35
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