“Nada é mais aterrorizante do que a violência que brota da pretensão de possuir integralmente a Verdade. A violência que se situa do lado da Verdade está na origem de todas as formas de barbárie. Q
uanto mais firme é a convicção de estar do lado da Verdade, mais a ação violenta encontra sua plena justificação. Assim, a Verdade se torna – como Nietzsche mostrou – um ídolo a se servir fanaticamente.”
A opinião é do psicanalista italiano Massimo Recalcati, professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 06-04-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A violência se assemelha a uma alucinação, porque
- oferece a ilusão de realizar o próprio desejo sem qualquer mediação,
- em uma instantaneidade psicótica;
- ela gostaria de alcançar seu objetivo sem passar pelo amplo e tortuoso circuito do diálogo.
Onde há violência, de fato, toda forma de diálogo se torna impossível.
A palavra
- não circula,
- mas é aniquilada, humilhada, suprimida.
A violência gostaria de mostrar toda a inconsistência e a aleatoriedade da palavra. Gostaria de ser o ferro contra o vento. O que não exclui que possa existir uma violência própria da palavra: as palavras podem ser duras e impiedosas como balas. Mas, mesmo nesse caso – assim como para o estatuto alucinado da violência –, elas gostariam de
- atingir seu alvo imediatamente,
- sem debate,
- sem interlocução.
Um insulto ou um slogan raivoso não pode ser discutido, mas apenas empunhado como uma arma. Não encontramos, talvez, aqui, o terreno psiquicamente mais elementar do qual a violência se origina?
- Morte da Lei da palavra,
- morte do diálogo,
- morte da relação com o Outro.
Quando se chega à passagem para o ato da violência é porque a Lei da palavra foi subvertida. É um fato que o discurso educacional deveria levar a sério.
Ensinar aos nossos filhos o respeito pela Lei da palavra deveria ser a primeira tarefa de todo percurso de formação. O que não significa que não possam existir – como a história ensinou – expressões diferentes da violência:
- a violência dos opressores
- ou da desigualdade social
- não pode ser assimilada à daqueles que reagem a ela.
No entanto, o recurso à violência sempre
- rompe traumaticamente a Lei da palavra
- que é a única Lei que torna a vida humana.
Mesmo quando – como aconteceu, por exemplo, com a guerra partigiana – o recurso à violência visava a restaurar a dignidade ao direito revogado da palavra.
A Lei da palavra exclui que haja uma representação totalizante da verdade.
A pluralidade das línguas
- não é apenas um dado cultural,
- mas também descreve a existência de Verdades diferentes
- ou, se se preferir, a inexistência de uma única Verdade.
Nada é mais aterrorizante do que a violência que brota da pretensão de possuir integralmente a Verdade. A violência que se situa do lado da Verdade está na origem de todas as formas de barbárie. Quanto mais firme é a convicção de estar do lado da Verdade, mais a ação violenta encontra sua plena justificação. Assim, a Verdade se torna – como Nietzsche mostrou – um ídolo a se servir fanaticamente.
O grito de guerra (santa) “Deus o quer!” que armava a mão dos cruzados ou o ditado maoísta – retomado pelo extremismo italiano nos anos 1970 – de que
- é suficiente atingir um
- para educar cem caminham
paradoxalmente na mesma e idêntica direção.
Qual? Em uma direção fundamentalista, não laica, se por cultura laica se entende – como Freud entendia, definindo a própria psicanálise como “laica” – uma atitude intelectual e ética que ignora as verdades absolutas e imperecíveis.
- Se, de fato, a Verdade se escreve com V maiúscula,
- se ela se dá aos nossos olhos como totalmente revelada,
- se ela não for acompanhada por qualquer senso do mistério,
- não existe mais limite algum à afirmação brutal e violenta da nossa Verdade.
Nesses casos, a violência
- perde seu caráter impulsivo, irracional, intermitente,
- para se identificar com uma verdadeira concepção de mundo.
É o ponto de passagem que transfigura a violência em uma verdadeira missão redentora.
Os terroristas que assassinaram Aldo Moro impiedosamente fizeram isso para desferir um golpe político-militar no coração do Estado. Mas só puderam fazer isso a partir da convicção
- de deter a Verdade sobre o que era útil à Itália para resistir às “forças da reação”
- e levar a bom termo um percurso autenticamente revolucionário.
É a paixão ideológica e fanática pela Verdade que armou a mão deles.
A Verdade da Causa, de fato,
- não entra no debate democrático,
- não revela seu fundo incerto,
- não tolera a pluralidade das línguas,
- mas se identifica loucamente com uma única bandeira.
Enquanto o conflito político não apaga a dignidade humana do próprio antagonista, o espírito de todo fundamentalismo, estando desprovido de espírito laico, continua convencido
- da própria superioridade ética,
- de encarnar a expressão de outro gênero de humanidade,
- de possuir uma Verdade que coincide perfeitamente com a militância pela própria Causa.
O terrorismo manifesta, nesse sentido, a essência mais própria da violência fundamentalista: na era do terror,
- todos nos tornamos alvos dos fanáticos da Verdade,
- porque não somos nada diante da Verdade absoluta da sua Causa.
Por isso, não é raro encontrar terroristas desprovidos de qualquer sentimento de culpa. Sua mão foi guiada diretamente por Deus ou pela Causa que eles serviram de modo sacrificial.
Nunca se deveria esquecer o núcleo sadomasoquista da mentalidade terrorista:
- eu sacrifico a minha vida à Causa (masoquismo),
- mas esse sacrifício me dá o direito de fazer da vida dos outros aquilo que eu quero (sadismo).
O terrorista
- age na mais total transparência da Verdade,
- porque quer escapar da vertigem da dúvida em relação à Verdade.
Diferentemente, o espírito laico da psicanálise mostra que
- somos todos estrangeiros a nós mesmos,
- sem uma casa própria,
- sem relações com uma Verdade universal,
- divididos, cindidos, sempre distante de nós mesmos.
Por isso, ela é um grande antídoto para as guerras religiosas de todas as espécies.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/577731-a-arma-letal-da-verdade-artigo-de-massimo-recalcati
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