Os deuses do Mercado, do Patriarcado e do Fundamentalismo são as novas metamorfoses da crença no Ser Superior. Essa mudança explica as três violências exercidas em seu nome: a estrutural, a machista e a religiosa

JUAN JOSÉ TAMAYO – 28 de março de 2018
Tradução: Orlando Almeida
Imagem: Deus morreu? ENRIQUE FLORES
Nietzsche não foi o primeiro a usar a expressão “Deus morreu”. A sua origem é encontrada num texto de Lutero: “Cristo morreu / Cristo é Deus / Por isso que Deus morreu”.
Hegel inspira-se nele na Fenomenologia do espírito, onde afirma que o próprio Deus morreu como manifestação do sentimento doloroso da consciência infeliz. Em Lições sobre filosofia da religião, refere-se a uma canção religiosa luterana do século XVII num contexto similar: “O próprio Deus jaz morto / Ele morreu na cruz”.
É provável que Nietzsche, filho e neto de pastores protestantes, a conhecesse e até a tivesse cantado no Gottesdienst. Mas foi a sua própria formulação que adquiriu relevância filosófica e exerceu maior influência na atmosfera sociológica moderna.
São dois os textos mais significativos em que Nietzsche faz o anúncio da morte de Deus. Em Assim Falou Zaratustra, quando o reformador da antiga religião iraniana desce da montanha, e se encontra com um velho eremita que se tinha retirado do barulho mundano para se dedicar exclusivamente a amar e louvar a Deus, atitude que contrasta com a de Zaratustra que diz amar apenas os homens.
Depois de deixar o eremita, ele comenta consigo mesmo: “Será possível! Este velho santo na sua floresta ainda não ouviu nada de que Deus morreu”.
Ao chegar à primeira cidade, encontrou uma multidão de pessoas reunidas no mercado, às quais falou desta forma: “Em outros tempos o crime contra Deus era o maior crime, mas Deus morreu e com ele morreram também os seus ofensores. Agora a coisa mais horrível é cometer um crime contra a terra”.
Em A gaia ciência, Nietzsche narra a morte de Deus através de uma parábola carregada de empatia. Um homem louco vai correndo para a praça do mercado em plena luz do dia com uma lanterna e gritando sem cessar:
“Estou à procura de Deus! Estou á procura de Deus!”. O homem torna-se motivo de chacota das pessoas ali reunidas, que não levam a sério a busca angustiada do louco e debocham dele, fazendo-lhe perguntas em tom de zombaria: “Será que está perdido? […] Será que se extraviou como uma criança? […] Ou está se escondendo? Será que tem medo de nós? Embarcou? Emigrou? Ao que o louco responde: “Nós o matámos, nós e eu! Somos todos seus assassinos!
O louco, fora de si, entrou em várias igrejas onde entoou o seu requiem aeternam deo. Toda vez que o expulsavam e lhe pediam explicação da sua conduta, o louco respondia: “O que são estas igrejas, senão os túmulos e os monumentos fúnebres de Deus?”
Nietzsche qualifica o anúncio da morte de Deus como “o maior dos acontecimentos recentes”, mas o louco reconhece que chega “cedo demais”.
A fé do mercado é hoje uma fé “monoteísta”, com uma divindade ciumenta que não admite rival
O anúncio de Nietzsche tornou-se realidade? Eu acredito que apenas em parte. Certamente, está havendo um avanço da descrença religiosa nas nossas sociedades secularizadas e a ausência de Deus paira por toda parte. Mas, ao mesmo tempo, assistimos a outro fenômeno: o das diversas metamorfoses de Deus. A título de exemplo, vou referir-me a três: o Deus do Mercado, o Deus do Patriarcado e o Deus do Fundamentalismo.
O deus do mercado

Imagem da internet
O Mercado tornou-se uma religião “monoteísta”, que deu origem ao Deus-mercado. Já Walter Benjamin o tinha percebido com grande lucidez, num artigo intitulado O capitalismo como religião, que afirma que o cristianismo, ao tempo da Reforma, se converteu em capitalismo e “este é um fenômeno essencialmente religioso”.
Tocar o capitalismo ou simplesmente mencioná-lo é como tocar ou questionar os valores mais sagrados. O que Benjamin diz do capitalismo é aplicável hoje ao neoliberalismo, que se configura como um sistema rígido de crenças e funciona como religião do Deus-Mercado, que suplanta o Deus das religiões monoteístas.
Ele é um Deus ciumento
- que não admite rival,
- que proclama que fora do Mercado não há salvação
- e se apropria dos atributos do Deus da teodiceia: onipotência, onisciência, onipresença e providência.
O Deus-mercado exige o sacrifício de seres humanos e da natureza e manda matar todos os que se recusam a prestar-lhe culto.
O anúncio de Nietzsche de que “Deus morreu” foi cumprido só em parte
O deus do patriarcado

Imagem: Anarquista
Os atributos aplicados a Deus são em sua maioria varonis, estão vinculados à masculinidade hegemônica e estão relacionados com o poder. A masculinidade de Deus leva diretamente à divinização do homem. Assim, o patriarcado religioso legitima o patriarcado político e social.
A teóloga feminista alemã Dorothee Solle critica as fantasias falocráticas projetadas pelos homens sobre Deus, questiona a adoração do poder tornado Deus e pergunta:
“Por que os seres humanos adoram um Deus cuja qualidade mais importante é o poder, cujo interesse é a submissão, cujo medo é a igualdade de direitos?
- Um Ser a quem se dirige a palavra, chamando-o “Senhor”;
- mais ainda, para quem o poder não é suficiente, e os teólogos têm que atribuir-lhe a onipotência!
Por que vamos adorar e amar um ser que não ultrapassa o nível moral da cultura atual, mas mais do que isso, a imobiliza?”.
Em nome do Deus do patriarcado, pratica-se a violência de gênero, que no ano passado causou mais de 60.000 feminicídios.
O deus dos Fundamentalismos

Imagem: Pensar al Sur
Os fundamentalismos religiosos desembocam frequentemente no terrorismo, fenômeno que perpassa a história da humanidade na forma de guerras de religiões que são justificadas apelando para um mandato divino.
O filósofo judeu Martin Buber tem razão quando afirma que Deus é
“a mais vilipendiada de todas as palavras humanas. Nenhuma foi tão mutilada, tão maculada.
- As gerações humanas rasgaram essa palavra.
- Mataram e deixaram-se matar por ela.
- Esta palavra carrega as suas impressões digitais e o seu sangue.
- Os homens desenham um fantoche e escrevem embaixo a palavra ‘Deus’.
- Matam-se uns aos outros e dizem: “Fazemos isso em nome de Deus”.
Matar em nome de Deus é transformar Deus num assassino, na certeira observação de José Saramago, que o demonstra no romance Caim por meio de um passeio através dos textos da Bíblia hebraica.
Deus sob o assédio do Mercado, sob o poder do Patriarcado e sob o fogo cruzado dos Fundamentalismos. O resultado é a violência estrutural do sistema, a violência machista e a violência religiosa, as três exercidas em nome de Deus.

Juan José Tamayo
é professor titular da Cátedra de Teologia e Ciências da Religião, na Universidade Carlos III de Madrid. O seu último trabalho é Teologías del Sur. El giro descolonizador (Trotta, 2017).
Fonte: https://elpais.com/elpais/2018/03/26/opinion/1522079873_884931.html
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