Vale a pena dizer algo muito do espírito: as pessoas simples, muitas vezes sem saber defini-lo bem, através da religiosidade popular, manifestam a sua fé, celebram-na e defendem-na e não se limitam ao que diz o clero.
Quando o Papa Francisco esteve na Colômbia em setembro do ano passado, em seu discurso ao Comitê Diretivo do CELAM, referiu-se com contundência ao clericalismo:
- Primeiro, apontando-o como uma das tentações – ainda presente – da Igreja e mostrando que o clericalismo leva a uma concepção da Igreja como uma burocracia que se auto-beneficia.
- E, no mesmo discurso, disse que é imperativo superar o clericalismo que infantiliza os leigos e empobrece a identidade dos ministros ordenados.
Na sua viagem ao Chile, em janeiro deste ano, voltou a lembrar que
- o clericalismo surge dessa falta de consciência
- de que todos somos Povo de Deus
- e o ministro é um servidor e não dono.
Por isso, lembrou que os leigos não são peões nem empregados do clero, nem precisam repetir “como papagaios” o que ele diz.
O clericalismo está extinguindo o fogo profético que a igreja é chamada a testemunhar no coração das pessoas. O papa recomendou que
- se vele contra a tentação do clericalismo,
- especialmente nos seminários e em todo o processo formativo.
O que está em jogo
- é uma evangelização significativa
- e não a auto-preservação do clero em mundos ideais
- que nada têm a ver com a realidade.
Estas são duas das muitas intervenções que o Papa fez sobre o clericalismo. Mas essas palavras estão penetrando na consciência do nosso clero e do resto do Povo de Deus? Por parte do clero, é necessária uma grande humildade para reconhecer que algo desse clericalismo os afeta. O texto de Mateus poderia ajudá-lo muito na busca de uma sempre maior fidelidade à vocação recebida.
Neste texto, Jesus critica os escribas e os fariseus:
- “Observai e fazei tudo o que eles dizem,
- mas não façais como eles,
- pois dizem e não fazem. (….)
- Gostam dos primeiros lugares nos banquetes
- e das primeiras cadeiras nas sinagogas.
- Gostam de ser saudados nas praças públicas
- e de ser chamados mestres pelos homens” (Mt 23, 3-7) “.
Precisamente por causa dessa realidade que era vivida no seu tempo, no evangelho de Mateus, Jesus pede aos seus o contrário:
- “Mas vós não vos façais chamar mestres,
- porque um só é o vosso preceptor,
- e vós sois todos irmãos.
- E a ninguém chameis de pai sobre a terra,
- porque um só é vosso Pai, aquele que está nos céus.
- Nem vos façais chamar de mestres,
- porque só tendes um mestre, o Cristo.
- O maior dentre vós será vosso servo” (Mt 23,8-11).
Mais ainda, o bispo de Roma em 2014, em seu desejo de uma igreja mais humilde e próxima do povo, decidiu abolir os títulos honoríficos, entre eles o de Monsenhor (o Papa Paulo VI, em 1968, tinha suprimido outros títulos).
O título de monsenhor permanece apenas para os “Capelães do Papa” e depois de completados 65 anos de idade. No entanto, esta medida não tem caráter retroativo; por isso, os que já o têm podem mantê-lo (claro que, depois do que foi dito, seria muito positivo que os que o têm renunciassem a usá-lo, não?).
Sem dúvida, na história da Igreja,
- muitos bispos e sacerdotes com títulos ou sem eles conseguiram manter uma humildade a toda a prova e foram pastores com “cheiro de ovelha”.
- Mas muitos outros não e, por isso, a insistência do Papa.
Por parte do resto do povo de Deus, também há um grande trabalho a ser feito. Sabemos que os leigos foram tratados como membros de segunda categoria. Em outras palavras,
- não tiveram a palavra,
- não foram consultados,
- foram ensinados a ser submissos diante do clero
- e não receberam uma formação adequada para torná-los mais empoderados na sua fé.
Mas vale a pena dizer algo muito do espírito:
as pessoas simples,
- muitas vezes sem saber defini-lo bem,
- através da religiosidade popular,
- manifestam a sua fé,
- celebram-na e defendem-na
- e não se limitam ao que diz o clero.
Em suma, tudo isso
- não é para confrontar o clero com os leigos,
- nem para negar a importância do ministro ordenado na comunidade eclesial,
- nem para deixar de distinguir as diferentes vocações e ministérios numa Igreja toda ela servidora.
É para continuar impulsionando essa igreja “humilde, missionária e em saída” que se destacou mais claramente com este pontificado e que nos remete diretamente ao Evangelho.
Imagem do Bom Pastor, nas Catacumbas romanas
Sabemos bem que este horizonte foi marcado pelo Vaticano II, na Constituição Lumen Gentium, ao propor
- uma Igreja Povo de Deus
- que possibilitasse a igualdade fundamental que o batismo dá,
- desenvolvendo a partir daí a diversidade dos ministérios, todos eles para o serviço da comunidade.
Para muitos, é desconhecido o fato de que, três semanas antes do encerramento do Vaticano II, nas catacumbas de Santa Domitila, na periferia de Roma, um grupo de padres conciliares assinaram um compromisso que é conhecido como “O Pacto das Catacumbas“.
Nele, esses padres se comprometeram, entre outras coisas,
- a recusar serem chamados, verbalmente ou por escrito, por nomes e títulos que expressem grandeza e poder (Eminência, Excelência, Monsenhor)
- e a compartilharem a sua vida, na caridade pastoral, com os seus irmãos em Cristo (sacerdotes e leigos)
- para que o seu ministério constitua um verdadeiro serviço.
Com Francisco, o espírito renovador, que soprou profeticamente no Vaticano II, torna a fazer-se sentir. Além disso, este ano celebram-se os 50 anos da II Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe (Medellín, 1968), onde o dinamismo libertador e comprometido com os pobres foi uma opção forte.
Ou seja, o espírito sopra por toda a parte. Poderemos então – entre muitos outros aspectos – libertar-nos do clericalismo?
É um desafio difícil, em que haverá quem resista, mas oxalá que isso possa acontecer porque esse é o caminho alegre para uma Igreja mais fiel ao evangelho porque é disso, definitivamente, que Jesus nos incumbe.
Consuelo Vélez
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