Entrevista com Lucetta Scaraffia sobre “Le Monde de la Bible”.
Nicolas Senèze – 7/03/2018
Imagem: christcenteredmall.com
Lucetta Scaraffia, historiadora que durante décadas estudou a realidade feminina em relação à tradição cristã (e diretora de “Mulheres Igreja Mundo”, a revista mensal do jornal L’Osservatore Romano, da qual é editorialista e consultora editorial), explica nesta entrevista no último número de “Le Monde de la Bible” como, no curso dos séculos, a Igreja foi pouco a pouco apagando o papel de apóstola de Maria Madalena em favor da sua figura de pecadora arrependida.
A ENTREVISTA:
Para a senhora que estudou a fundo as relações entre as mulheres e a Igreja, Maria Madalena é mais a pecadora ou a apóstola?
Gostaria de começar com uma recordação pessoal. Quando eu era jovem, em Milão, depois de maio de 1968, muitas mulheres nos círculos feministas italianos davam à própria filha o nome de Madalena.
Para elas, era claramente uma antítese de Maria: tratava-se de
- contrapor à figura da mulher obediente
- a figura da mulher livre e pecadora.
Foi então que comecei a interessar-me por Maria Madalena, que, eu penso, foi uma das figuras mais manipuladas da história. Tanto por parte tanto da Igreja como das feministas, entre outras coisas.
Eugenio Prati: Cristo e Maria Maddalena – 1904 –L’Osservatore Romano
Por que, na sua opinião, há este duplo olhar sobre Maria Madalena?
Maria Madalena é uma figura forte desde os primórdios do cristianismo. Mas,
- numa sociedade patriarcal,
- que Jesus ressuscitado tenha aparecido primeiro a uma mulher, confiando-lhe a missão de anunciar aos apóstolos a sua ressurreição – a mais alta missão possível! –
- constituiu um problema para os homens de seu tempo.
Isto traduziu-se de diversas maneiras. Por exemplo no gnosticismo, a primeira heresia cristã, que tinha grande interesse por Madalena: os gnósticos pensavam que Cristo tinha transmitido um ensinamento secreto, recolhido na Pístis sophía. Madalena aparece aí como uma apóstola a título pleno, que chega a opor-se a Pedro, a ponto de vencê-lo depois de se tornar um homem, ou melhor, uma espécie de ser andrógino.
Com Maria Madalena põe-se, por outro lado, a questão da sexualidade de Jesus, um verdadeiro filão para toda uma série de autores sensacionalistas, a começar por Dan Brown …
Se Jesus tivesse tido relações sexuais com mulheres, isso teria sido sabido! Nos evangelhos, ouvem-se as críticas dos fariseus porque ele comia e bebia “com os publicanos e com os pecadores” [Mateus 9, 11]; então pode-se imaginar que, se ele tivesse uma mulher, isso seria conhecido.
De qualquer forma, não acho que para ele a ausência de uma mulher expressasse antes de tudo uma rejeição radical da sexualidade. Mas havia o risco de uma família hereditária. Se tivesse tido um filho, a identidade de Filho de Deus estaria ameaçada e isso teria marcado o fim do cristianismo.
De resto, são conhecidas as dificuldades no seio da Igreja primitiva, entre os que vinham do paganismo e os judeu-cristãos agrupados em torno da família natural de Jesus. Não, na verdade, se Jesus tivesse tido filhos, seria sabido!
A questão dos relacionamentos familiares é de qualquer modo importante porque
- o fato de que Jesus, depois da sua ressurreição, tenha escolhido aparecer a Madalena primeiro,
- e não à sua mãe, está de fato em contradição com as tradições familiares da época.
Daí surgiu toda uma série de lendas segundo as quais
- Jesus teria aparecido primeiro em segredo a Maria
- e só depois a Madalena;
era uma forma de salvaguardar as relações familiares tradicionais. Mas essas histórias não são relatadas nos textos canônicos.
Por isso, eu penso que, se os evangelhos, escritos por homens – e por homens da época em que a mulher era considerada como tendo uma dignidade inferior – preservaram a tradição de que Jesus apareceu primeiramente a Madalena, é porque realmente eles não podiam fazer de outra maneira!
Maria Madalena penitente – Imagem: SNPC
Por que então acabou se impondo a imagem de Maria Madalena como pecadora?
Começou-se a assimilar a figura de Madalena à de duas outras Marias presentes no Evangelho:
- a irmã de Marta [cf. Lucas 10, 38-41]
- e a prostituta que lhe lavou os pés com as suas lágrimas [cf. Lucas 7,36-50].
Maria de Betânia, irmã de Marta, é também irmã de Lázaro, amigo de Jesus [cf. João 11,1-45]: é portanto uma figura quase de família que faz com que a sua proximidade com Jesus se torne menos perigosa e menos inquietante.
Quanto à prostituta,
- é fácil lançar sobre ela um véu de suspeição
- e permitir assim que Maria Madalena esteja menos em competição com a figura de Maria.
Também deve ser enfatizado que as tradições do oriente e do ocidente estão em oposição sobre este ponto: o Oriente cristão festeja Maria de Betânia e Maria de Magdala separadamente, ao passo que o Ocidente, a partir do século IV, juntou-as com a prostituta na figura de Maria Madalena. Este expediente transformou Maria Madalena numa mulher arrependida que chora pelos seus pecados e portanto deixa de ser a missionária encarregada de anunciar a notícia da ressurreição.
Qual o motivo desse expediente?
Escolher a imagem da pecadora arrependida
- permite esconder o afeto de Jesus pelas mulheres,
- que ele ao contrário amava muito.
Mesmo aquelas com uma vida “irregular” são sempre muito importantes em todos os Evangelhos. Jesus vê que as mulheres
- amam mais do que os homens,
- ue entendem o amor melhor do que os homens.
- Tal é a mulher samaritana, a primeira pessoa a quem ele anuncia que é o Messias [cf. João 4, 26].
Mesmo se ele teve uma vida desregrada – o evangelho nos diz que ela teve cinco maridos; e “o que tens agora não é teu marido”, diz-lhe Jesus –
- ela é uma mulher que busca amor
- e essa é a coisa mais importante para Jesus.
Dizer que Madalena é uma prostituta
- é, então, uma forma de diminuí-la,
- mas também mostra a proximidade de Jesus com estas mulheres que estão em busca de amor,
- mulheres que ele amou muito
- e que estão muitas vezes apagadas no evangelho,
- mostrando quanto era incompreendido na época o lugar que Jesus lhes dava.
De resto, não se pode excluir que Jesus tenha tido com mulheres outras relações não relatadas pelos evangelhos.
Mas teria sido realmente impossível esconder Maria Madalena, uma vez que foi uma figura central na vida de Jesus.
Assim, transformá-la em pecadora
- permitiu cancelar o seu papel de apóstola durante dois mil anos
- e bloquear o papel das mulheres na Igreja.
Esse cancelamento foi completo na Igreja?
Sim. Com exceção, talvez, da França, onde uma tradição popular
- se apoderou da figura de Maria Madalena,
- confundindo-a talvez com a figura de Maria Egipcíaca, a santa da Palestina que viveu na luxúria até se retirar para uma gruta no deserto.
Uma tradição diz que Maria Madalena teria chegado ao litoral da Gália e teria começado a evangelizá-la, antes de terminar os seus dias numa gruta no deserto de Sainte-Baume.
Fazer de Maria Madalena a evangelizadora da Gália permitia à Igreja da França reivindicar uma origem apostólica
- em pé de igualdade com Roma (Pedro),
- com Bizâncio (André)
- ou com a Espanha (Tiago),
mesmo que neste caso se trate de uma mulher. Foi assim que a tradição popular a acolheu como apóstola, enquanto a Igreja a forçava ao papel de pecadora.
Na prática, como se expressou esse papel?
Um exemplo é o dos numerosos institutos criados ao longo da história e destinados
- às pecadoras,
- às prostitutas,
- às jovens que tinham “pecado”
- e que, mais ou menos forçadas, escolhiam arrepender-se com uma vida de tipo religioso.
Quase todas aquelas casas, que as convertiam a uma boa vida de família, estavam sob o patrocínio de Maria Madalena, incluindo as de viúvas, que por sua vez eram suspeitas porque conheciam o sexo. As virgens, ao contrário, iam para outros institutos, a maioria sob o patrocínio de Maria.
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As “madalenas” da Irlanda (filme) – foto divulgação
Aliás, vem à lembrança o filme “Magdalene” [2001] sobre a terrível condição das jovens nestas instituições, no século XX na Irlanda…
Felizmente não havia apenas isso! Havia também muitos conventos onde as coisas iam bem. Na Itália, em muitos deles
- ensinava-se uma profissão às mulheres
- ou até mesmo se lhes dava um dote para que se casassem.
A preocupação era apenas de oferecer a elas uma vida familiar honesta e regular.
Outro exemplo do desenvolvimento da figura de Maria Madalena como pecadora é o da pintura. Embora a maioria das modelos dos pintores fossem prostitutas, em Roma contudo era proibido retratá-las. De fato não se podia admitir que houvesse prostitutas na cidade do papa!
Então pintavam-se
- prostitutas “venezianas”
- ou Maria Madalena como pecadora arrependida.
Era também uma forma de os pintores passarem conteúdos eróticos, com grandes decotes e cabelos vermelhos, sinal da paixão sexual.
Por que a figura de Maria Madalena como apóstola voltou ao primeiro plano?
Nos últimos anos, muitas mulheres exegetas
- fizeram uma releitura dos evangelhos
- e começaram a protestar.
O trabalho delas permitiu
- entender melhor as relações de Jesus com as mulheres,
- ver melhor o lugar dos vários personagens que compõem a figura atual de Maria Madalena
- e redescobrir o seu papel de apóstola.
Restaurar a verdade.
Mas o mesmo vale para Maria:
- fez-se dela um exemplo de obediência e humildade que todas as mulheres deveriam seguir.
- Mas Maria é acima de tudo um exemplo de coragem!
Essa jovem aceita ficar grávida ainda antes de se casar, mesmo sabendo que assim corria o risco de ser lapidada: ela precisou de uma coragem incrível. Mas, durante séculos, ninguém enfatizou esse aspecto.
Em 10 de junho de 2016, o Vaticano elevou a memória litúrgica de Santa Maria Madalena ao nível de festa litúrgica e publicou um novo prefácio para aquela que agora é “a apóstola dos apóstolos”.
Por que motivo esta decisão é importante?
Trata-se precisamente de uma decisão do Papa Francisco. Que ele tenha dado a Maria Madalena o título de “apóstola dos apóstolos” é fundamental! Para mim,
- colocar Madalena no mesmo nível dos apóstolos
- é até mais importante do que ordenar mulheres sacerdotes,
- porque atribui às mulheres uma igualdade ainda mais profunda no campo da evangelização.
Penso que é uma decisão tão importante quanto a de Paulo VI que, em 1970, atribuiu a Teresa d’Ávila e a Catarina de Siena o título de Doutoras da Igreja.
Eu acredito que é uma decisão litúrgica e teológica que não será possível cancelar e a partir da qual se poderá chegar à plena igualdade em todas as áreas.
Nicolas Senèze
Fontes: http://www.osservatoreromano.va/it/news/le-mille-manipolazioni-di-maddalena
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