Pe. Alfredo Gonçalves – 11/03/18
Foto: slate.com
“a fé amadurece com os pés no solo úmido e escuro de realidades adversas e contraditórias, podendo, por isso mesmo, ganhar asas e levantar voo na tentativa de contribuir com a construção da utopia do Reino de Deus.”
No dia 13 de março de 2018, o Papa Francisco completa cinco anos de sua eleição à cátedra de Pedro. Como definir este quinquênio de intenso pontificado? Podemos arriscar uma frase de efeito:
- por uma parte, encíclicas, exortações e mensagens tão simples, profundas e concretas quanto um olhar, um toque, um abraço, uma presença amiga;
- por outra parte, ações, visitas e gestos que valem uma encíclica, ou um tratado sobre a Boa Nova do Evangelho.
Como explicar essa transparente congruência entre a palavra e o comportamento? O pontífice parece desmentir o provérbio italiano “Tra il dire e il fare c’è di mezzo il mare” (entre o dizer e o fazer, no meio existe o mar).
Evidente que boa parte dessa coerência mergulha suas raízes em um percurso místico disciplinado e perseverante, à moda dos exercícios espirituais da Companhia de Jesus. Aqui a razão se mantém respeitosamente aquém da tentativa de entender a relação profunda entre Deus e a alma humana.
Outras razões, porém, trazem alguma luz às mudanças que o Papa Francisco vem imprimindo no interior da Igreja. Comecemos, por exemplo, com a experiência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), particularmente na América Latina e Caribe.
Nesse tipo de vida eclesial de vizinhança e proximidade,
- a Palavra de Deus
- e a realidade de injustiça e opressão
- se comunicavam e se interpalavam reciprocamente.
À medida que a leitura dos textos bíblicos iluminava a existência real, esta passava a ser objeto de um processo ativo de transformação.
As mudanças, por sua vez, embora lentas e cheias de contrastes, ajudavam a reinterpretar o sentido dos livros sagrados. Instalava-se, desse modo, o que veio a ser conhecido como “círculo hermenêutico”.
A Bíblia ilumina a vida e esta confere um significado mais vivo à Palavra de Deus, que volta a jogar nova luz sobre a realidade, e assim sucessivamente. A experiência eclesial das CEBs, por outro lado, vinha acompanhada por uma leitura científica da fé e da comprensão histórica, social e política.
Entrava em cena a Teologia da Libertação (TdL). Tratava-se de uma forma crítica de analisar essa relação estreita entre a fé e a vida, enriquecida com
- as novas formas de ler e interpretar os livros bíblicos,
- nova exegese,
- nova cristologia
- e nova teologia.
Daí o desdobramento da religião cristã em uma participação crescente nas ações de caráter socio-transformador da sociedade vigente.
A análise,
- ao mesmo tempo que se aprofundava através da releitura da Palavra de Deus e da contribuição das ciências sociais,
- conferia vigor sempre novo e profético ao compromisso pastoral e socio-político.
Também neste caso funcionava o “círculo hermenêutico”:
- a leitura teórica iluminava a práxis histórica
- e esta levava a uma reinterpelação da teoria,
- a qual, por sua vez, aprofundava a visão de mundo
- e, simultaneamente, a urgente necessidade de uma ação engajada, e assim por diante.
Além das CEBs e da TdL, distintas regiões da América Latina e Caribe formaram o berço de uma série de “pastorais sociais”. Constituíam
- uma forma de ação inserida no interior da estrutura da Igreja,
- voltada para categorias ou grupos específicos de pessoas empobrecidas, indefesas e em geral à margem dos benefícios sociais.
Alguns exemplos:
- pastoral da terra,
- pastoral afro-brasileira,
- pastoral dos migrantes,
- pastoral operária,
- pastoral da criança,
- pastoral do menor,
- pastoral dos indígenas,
- pastoral da mulher marginalizada,
- pastoral dos pescadores…
Por trás de cada pastoral, havia um pequeno exército, o qual, à luz dos textos bíblicos, tentava entender seus problemas e desafios, buscando saídas conjuntas.
Se a essas três fontes somarmos
- a efervescência acadêmica, com seus intelectuais orgânicos,
- os movimentos sociais e estudantis
- e o sindicalismo combativo
– teremos um retrato aproximado do contexto eclesial e histórico onde o Papa Francisco desenvolveu sua atividade pastoral, seja como sacerdote religioso, bispo ou cardeal.
Em semelhantes circunstâncias, as páginas evangélicas são lidas com o coração de quem possui atrás de si uma dura e turbulenta travessia. Interpretadas a partir dessa situação concreta, tais páginas ganham um brilho bem mais intenso e luminoso.
Mas não é só isso! Também a fé amadurece com os pés no solo úmido e escuro de realidades adversas e contraditórias, podendo, por isso mesmo, ganhar asas e levantar voo na tentativa de contribuir com a construção da utopia do Reino de Deus.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
Roma, 24 de fevereiro de 2018
Fonte: Enviada pelo autor, pelo e-mail:
vicariogenerale@scalabrini.org
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