Frei Bento Domingues, O.P. -18/02/18
Foto: education.gov.gy
“No mundo católico, o pecado dos pecados era o que estava ligado ao sexo. O pecado económico, ecológico, racial – veja-se o tráfico humano, a destruição do planeta, a privação de casa, de trabalho, de saúde primária, etc. – nem pecado era!”
1. Da religião da tristeza resvalou-se para a tristeza da religião. Os primeiros gestos, palavras e atitudes do Papa Francisco mostraram que era possível virar essa página: a da Igreja e a da sociedade.
Não queria fazer nada sem Deus e sem os irmãos. Mas o Deus de que fala e vive não é o da tristeza e da ameaça. Os irmãos convocados não são, apenas, os praticantes dos rituais católicos.
É bem conhecido que, em muito pouco tempo, enviou ao episcopado, ao clero, às pessoas consagradas e a todos os fiéis leigos uma convocatória para levarem o Evangelho da Alegria ao mundo actual. Inscreveu-se, deste modo, no caminho aberto por Jesus de Nazaré, assumido por João XXIII e esboçado no Vaticano II. Entretanto, o mundo mudou e está a mudar com uma velocidade estonteante.
Para Klaus Schwab, entre os muitos e diversificados desafios fascinantes que enfrentamos, o mais intenso e importante é
- como compreender e definir a nova revolução tecnológica,
- que implica nada menos do que a transformação de toda a humanidade.
Estamos no início de uma revolução que alterará radicalmente a maneira como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos. Na sua escala, amplitude e complexidade, o que considera ser a Quarta Revolução Industrial é diferente de tudo o que a humanidade viveu antes[i].
Se não estamos no paraíso – o mundo é de muito poucos e o sofrimento é de muitos – os impactos positivos desta revolução não podem fazer esquecer os negativos e os desconhecidos.
É, no entanto, uma alegria contar com um Papa que,
- em vez de paralisar as energias dos católicos,
- lança uma esperança de que, todos juntos, poderemos fazer face aos desafios das loucuras da dominação económica, política, social e religiosa.
O poder do Papa é
- o de acordar o que há de melhor nas pessoas, sejam elas quais forem,
- e de convocar, crentes e não crentes, para uma mudança radical que, na linguagem da caminhada da Igreja, se chama Quaresma e Ressurreição[ii].
2. Está a difundir-se a ideia de que Bergoglio anda a minar as bases da própria sociedade e da história humana, isto é, a destruir a Família. O currículo deste argentino, quando foi eleito Papa, era o de um pastor que conhecia os percursos mais aceites e os mais mal vistos, segundo os critérios de um Direito Canónico pouco especializado no primado do amor e da alegria das pessoas.
Por vezes, não se percebia se a instituição matrimonial
- era para a felicidade das pessoas
- ou para manter inalterável uma instituição especializada em normas de exclusão.
Estava longe da palavra libertadora de Cristo:o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado.
Francisco, consciente das transformações que atingem todas as sociedades e culturas, não se fixou, apenas, na sua longa experiência.
Depois de consultar muitos casais, padres, bispos e cardeais, publicou um documento aberto para que todos procurem, a partir do concreto, – e mesmo sabendo a fragilidade de tudo o que é humano – os caminhos que fazem do encontro do homem e da mulher, com toda a família, a experiência da Alegria do Amor[iii].
Chamar-lhe um texto da destruição é, simplesmente, ridículo. É, pelo contrário, uma luz à procura de mais luz. Importa encontrar os caminhos que erradiquem
- as tristezas
- e as opressões
que transformaram a sexualidade – uma bênção divina do amor humano e das suas expressões sexuais – numa solicitação ao pecado.
O próprio sacramento do matrimónio foi entendido como um modo de tornar lícita uma união de natureza impura: a união sexual do homem e da mulher[iv].
As dificuldades em concretizar e prosseguir a pastoral aberta pelo Papa Francisco, sobre o acesso dos divorciados recasados aos sacramentos, radica, precisamente, na recusa de aceitar a união sexual como bênção. É evidente que toda a actividade humana, enquanto exercício da liberdade, pode desviar-se e atraiçoar-se.
A sexualidade pode ser um exercício de opressão, de violência, de exploração, pecado gravíssimo. Mas propor a um casal a abstinência sexual não é a forma de reconhecer a sexualidade como bênção.
No mundo católico, o pecado dos pecados era o que estava ligado ao sexo.
O pecado económico, ecológico, racial – veja-se
- o tráfico humano,
- a destruição do planeta,
- a privação de casa, de trabalho, de saúde primária, etc.
– nem pecado era!
Por causa de se entender mal um grande sacramento, acabou-se por esquecer a primordial bênção divina da família.
3. É como tal que aparece no Génesis. Nascer numa família é normal desde há muito tempo. Através de uma análise de ADN, pesquisadores coordenados por Wolfgang Haak, da Universidade de Adelaide (Austrália), identificaram quatro corpos como sendo uma mãe, um pai e os seus dois filhos, um de 8 ou 9 anos e outro de 4 ou 5 anos. É uma família com uma idade de 4.600 anos que não casou pela Igreja. Segundo o registro genético molecular já identificado, esta é considerada a família mais antiga no mundo. Seria puro milagre que uma realidade humana com vários modelos, segundo a história dos povos e culturas, fosse uma instituição sem problemas, um casamento de anjos.
A história do cristianismo é marcada por lutas periódicas contra as tentações dualistas:
- a dos gnósticos,
- dos maniqueus,
- dos cátaros.
É difícil acreditar num Deus humanado. Que o corpo de Jesus de Nazaré seja corpo de Deus. O corpo é um dom, não uma maldição[v].
Dizem que na Pastoral da Família o tempo de namoro é fundamental. Mas não se pode concluir que os problemas ficam todos resolvidos, de uma vez para sempre, com a celebração do sacramento. Como fazer do casamento um processo de toda a vida?
Creio que nenhum padre, bispo, cardeal ou papa dispõe de uma solução pronta a servir. O melhor é escutar e escutar sempre.
Mas sobretudo dar-se conta de que
- os sacerdotes do casamento são os casais
- e são eles os mais responsáveis pela Pastoral da Família, presente e futura.
Vai ser longo o caminho para vencer o clericalismo.
O humor não faz mal ao amor à família. Em Granada, encontrei um pequeno azulejo com estes dizeres: família só a Sagrada e, mesmo esta, na parede pendurada.
Frei Bento Domingues
Fonte: https://www.publico.pt/2018/02/18/sociedade/opiniao/a-familia-nasce-de-uma-bencao-divina-1803392
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