Anselmo Borges -03/11/17
1. Eu nunca tinha visto o Auditório da Reitoria da Universidade de Coimbra com tanta gente, professores e estudantes. Mais de 600 pessoas. Para ver e ouvir um dos últimos sobreviventes dos campos de concentração, Werner Reich, conhecido como “o Mágico de Auschwitz”, 90 anos.
Ele, que “viu o pior do pior” – neles morreram 12 milhões de pessoas, não só judeus -, pediu: “Se virem algo errado, falem. Se não disserem nada, porque acham que não vos diz respeito, estão enganados.”
2. Também fui convidado para dizer umas palavras. Mas o que é que se pode dizer numa circunstância destas, na presença de um sobrevivente do horror pura e simplesmente? Invade-nos o pudor. Lembrei-me da proposição 7 de uma das obras filosóficas fundamentais do século XX, Tractatus logico-philosophicus, de L. Wittgenstein: “Sobre aquilo de que se não pode falar devemos calar.”
2. 1. Visitei os campos de Dachau e de Auschwitz-Birkenau. São espaços sagrados, onde o que se celebra é a memória, a memória das vítimas inocentes. E que nunca mais se repita o que pura e simplesmente não pode ser, o que nunca devia ter acontecido…
2. 2.Joseph Ratzinger, chamado aos 17 anos para o serviço militar do Reich, foi desertor e prisioneiro dos americanos. Já o Papa Bento XVI esteve em Auschwitz e fez um discurso deveras dramático e emocionante:
“Tomar a palavra neste lugar de horror, de crimes contra Deus e contra o ser humano sem precedentes na História, é quase impossível, e é particularmente difícil e deprimente para um cristão, para um Papa que procede da Alemanha. Num lugar como este faltam as palavras; no fundo, só há espaço para um atónito silêncio, um silêncio que é um grito interior para Deus:
- Porque te calaste?
- Porque quiseste tolerar tudo isto?
- Onde estava Deus nesses dias?
- Porque se calou?
Não podemos perscrutar o segredo e o mistério de Deus, só fragmentos, e enganamo-nos quando queremos converter-nos em juízes de Deus e da História. O nosso grito dirigido a Deus tem de ser ao mesmo tempo um grito que penetra no nosso próprio coração para que desperte em nós a presença oculta de Deus, para que o poder que depositou nos nossos corações não fique coberto ou sufocado em nós
- pelo egoísmo,
- pelo medo dos homens,
- pela indiferença
- e pelo oportunismo.”
É necessário elevar esse grito até Deus particularmente no momento actual,
“no qual parecem surgir novamente nos corações dos homens todas as forças obscuras:
- por um lado, o abuso do nome de Deus para justificar uma violência cega sobre pessoas inocentes
- e, por outro, o cinismo que não reconhece Deus e que ridiculariza a fé nele.
Gritamos a Deus para que leve os homens a arrepender-se e a reconhecer que a violência não cria paz, mas suscita mais violência, um círculo de destruição no qual, no final de contas, todos perdem”.
O Papa Francisco também esteve em Auschwitz. Como peregrino. Em silêncio. Não disse uma palavra.
Afinal, o novo do horror sem precedentes dos campos de concentração foi a técnica ao serviço da morte, da morte em massa, o que obriga a pensar sobre o lugar da técnica e “a dialéctica do Iluminismo”.
Transportados por esse horror, os autores da Escola Crítica de Frankfurt viveram atenazados pela “tristeza metafísica”:
- por um lado, o Holocausto impedia-os de acreditar em Deus,
- por outro, sem Deus, o que fazer com as vítimas inocentes?
Há um clamor que atravessa a História, pedindo justiça, há uma dívida incomensurável para com elas, porque são vítimas, inocentes, e não viveram. Sem Deus, quem paga essa dívida e salva? Por isso, invocaram a transcendência.
Theodor Adorno escreveu: “Todo o pensamento que se não decapita desemboca na transcendência”,
Max Horkheimer escreveu Die Sehnsucht nach dem ganzen Anderen (o anelo pelo totalmente Outro),
Walter Benjamin argumentou que a História não é pensável a-teologicamente, sem a teologia, e alentava uma “débil esperança messiânica”.
(foto: blog.comshalom.org/carmadelio)
2. 4. Elie Wiesel, sobrevivente do Holocausto e prémio Nobel da Paz, com a mesma dialéctica:
- “Auschwitz não se pode compreender com Deus;
- Auschwitz não se pode compreender sem Deus…
- Auschwitz é o mais recôndito do mistério de Deus.”
Viktor Frankl, outro sobrevivente, deixou uma obra essencial: O Homem em Busca de Sentido.Nela, reflecte sobre o mais fundo do inconsciente:
- não é o prazer (Freud),
- não é o poder (Adler),
- mas precisamente a busca de sentido, e sentido final.
O homem tudo suporta, se tiver um sentido para a vida. Constatou que sobreviviam os que ainda tinham um sentido para a sua existência. E notou que muitos entraram nos fornos crematórios – é o calafrio – com uma oração nos lábios. E teorizou sobre o sentido último em Deus, na obra Der unbewusste Gott (o Deus inconsciente).
2. 5. A religião é uma ilusão? Digo que
- a fé é sobretudo um combate,
- como reza esta espécie de testamento de um judeu que morreu em 1943 no gueto de Varsóvia, encontrado mais tarde:
“Creio no Deus de Israel, embora ele tenha feito todo o possível para que não acredite… Deus ocultou o seu rosto ao mundo. As folhas em que escrevo estas linhas vou encerrá-las nesta garrafa vazia e escondê-la aqui entre os tijolos da parede, debaixo da janela. Se alguém a encontrar um dia e ler estas linhas, talvez entenda o sentimento de um judeu – um entre milhões – que morreu como abandonado de Deus, esse Deus no qual acredita tão firmemente.”
2. 6. Os cristãos são discípulos de um crucificado, Jesus Cristo, que morreu gritando a Deus numa oração que atravessa os séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”, e acreditam que ele está vivo em Deus, na vida plena de Deus.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Anselmo Borges
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/o-magico-de-auschwitz-8891123.html
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